26/09/2017

Anémona das neves


Anemone pavoniana Boiss.


Estávamos no local errado e no dia errado, e os dois erros, cancelando-se um ao outro, permitiram-nos ver uma flor impossível. No início de Maio, a Anemone pavoniana, endémica da cordilheira cantábrica, não deveria estar em flor a 2000 metros de altitude, quando ainda os picos se cobriam por esfarrapados mantos de neve em degelo acelerado. E de facto não estava: as duas plantas que encontrámos, abrindo cada uma a sua flor como quem espreita cautelosamente por cima de um muro, vinham apenas fazer o reconhecimento do terreno. E o terreno não conferia com aquele que lhes é prescrito nos manuais. A Flora Ibérica, prestigiada publicação à qual todas as plantas do reino de Espanha e da república de Portugal devem obediência, determina que a espécie vive apenas em rochas calcárias, inexistentes no Pico Três Mares e nos cumes vizinhos. Dando-se conta do equívoco, e sob ameaça de pesada coima, era natural que estes emissários, de volta à base, alertassem os seus companheiros para a inadequação do lugar. É pois de crer que, mesmo depois de toda a neve derreter, mais nenhuma destas anémonas tenha ousado florir por essas bandas.

Quem quiser ver a Anemone pavoniana em floração na altura própria, e num habitat mais conforme às preferências decretadas para a espécie, deve aguardar pelo início de Junho e visitar então um dos muitos afloramentos calcários que preenchem o extremo norte da Península, desde o País Basco às Astúrias. Com caules que podem atingir os 50 cm de altura (as que vimos, ainda incipientes, dificilmente chegavam aos 10 cm) e flores brancas de 3 a 4 cm de diâmetro, esta é uma das sete espécies ibéricas do seu género. Para lá dos Pirenéus, em França, Itália e nos Balcãs, surge uma sósia da A. pavoniana, a A. baldensis, moradora em prados alpinos. Não sendo fácil detectar diferenças entre as duas com base apenas em fotos, é irresistível apontar que a (acidental?) presença da primeira no Pico Três Mares parece mais de acordo com a ecologia da segunda.

19/09/2017

Uma távoa para el-rei


Dois dos últimos teixos (Taxus baccata L.) dos Açores


Há por toda esta ilha em redondo muita e grossa madeira de cedro, sanguinho, ginja, pau branco, faias, louros e, sobre toda, a madeira de teixo, somente no Pico, dos teixos que estão sobre a freguesia da vila de São Roque, da banda do norte, légua e meia da dita vila para dentro da serra, onde se acham paus de teixo muito direitos, que parecem paus de pinho e quase servem para mastros de caravelas pequenas, e de grossura no pé até (...) palmo e meio, e daí, adelgaçando para cima, pera a ponta, a modo de paus de pinho, e na nascença deles, da semente que deles cai, como semente de tamujo, não parecem senão pinhos. Há troncos destes que acham ainda agora debaixo da terra, de oito e dez palmos de comprido e de três palmos de largo, os quais servem pera escritórios e mesas muito ricas e fasquiaria de escritórios, por ser madeira de muito preço, pela qual razão se não corta, senão com expressa provisão do provedor da Fazenda de Sua Majestade, e da que é avaliada na Alfândega paga o que a colhe a metade ou, de duas távoas, uma para el-rei, de seus direitos.
Gaspar Frutuoso (1590). Saudades da Terra (Livro VI, capítulo 41)
O teixo, talvez por prometer durar até ao dia do juízo final, era plantado tradicionalmente nos cemitérios. Apesar da sua longevidade, é de entre as nossas árvores nativas uma das mais raras e perseguidas. Em todo o território nacional, só na serra do Gerês existem populações viáveis, capazes de subsistir e de se reproduzir sem ajuda humana. Na serra da Estrela conhecem-se apenas indivíduos isolados, que têm sido duplicados por estaca para reintrodução na natureza. O gradual desaparecimento do teixo em espaços naturais não se deve apenas, como poderia julgar-se pela citação de Gaspar Frutuoso, ao seu uso em marcenaria de luxo. Houve uma perseguição activa por parte dos pastores, que, sabendo-o altamente venenoso, receavam as consequências mortais para o gado que dele fizesse refeição.

O teixo também é nativo dos Açores e da Madeira, e também nesses arquipélagos, pelas mesmas razões que ditaram a sua sorte no continente, ele se fez de uma extrema raridade. A última contagem, reportada em artigo publicado já em 2017, indicava que na Madeira existiam 58 indivíduos adultos, acantonados em ravinas inacessíveis. O relevo menos acidentado das ilhas açorianas não proporcionou igual refúgio — e, de todas as ilhas onde se sabe ter existido (Corvo, Flores, Faial, Pico, São Jorge e São Miguel), só no Pico, onde ocorria em maior quantidade e a sua madeira foi explorada até meados do século XVIII, o teixo não está ainda extinto. Só quando o último teixo morrer, de pé ou tombado, de morte natural ou provocada, é que se pode declarar o óbito da espécie. São quatro ou cinco as árvores que resistem, meio decrépitas, afastadas umas das outras, incapazes de dar semente.

O Jardim Botânico do Faial, apostado em evitar o previsível desfecho funesto, lançou um 2013 um projecto de reprodução vegetativa desses últimos teixos açorianos. O objectivo final é recriar populações que possam perpetuar-se sozinhas. No início de 2017, trinta jovens teixos foram plantados no Pico, em terreno controlado pelos serviços regionais do Ambiente (ver notícia aqui e aqui). É um novo futuro para uma árvore que parecia condenada. Só falta, literalmente, que o projecto dê frutos — ou seja, que entre as árvores clonadas haja indivíduos dos dois sexos (coisa que ainda não se sabe) para ser possível a produção de sementes. Poderão um dia as futuras gerações de açorianos, contemplando rebentos de teixo, concordar com Gaspar Frutuoso em como eles se parecem com jovens pinheiros?

A quem se interrogue sobre a importância de salvar nas ilhas uma espécie que, com maior ou menor abundância, é espontânea em quase toda a Europa, duas respostas se podem dar. A primeira, generalista, é que qualquer extinção local de uma espécie representa um empobrecimento do mundo natural, com consequências que não sabemos avaliar. A segunda é que, tanto no caso do teixo como no de outras espécies que colonizaram as ilhas, a estirpe insular representa um património genético distinto do da continental, mesmo que isso não tenha reconhecimento taxonómico nem se traduza em diferenças morfológicas óbvias. E na verdade, segundo um artigo publicado em 2010 (Taxus baccata in the Azores: a relict form at risk of imminent extinction), o teixo açoriano, além da sua especificidade genética, distingue-se pelo menor tamanho das folhas. O autores do artigo concluem mesmo que ele representa uma linhagem mais antiga do que os actuais teixos do continente europeu e do norte de África.

Numa terça-feira de Agosto, faz hoje quatro semanas, Pedro Casimiro (director do Jardim Botânico do Faial) e Cátia Freitas (uma das responsáveis pelo Banco de Sementes do JBF) apresentaram-nos esses venerandos e ameaçados teixos. Nunca poderemos retribuir por igual tamanha amabilidade. A expedição, algures no Pico, a uns novecentos e tal metros de altitude, foi acompanhada por uma chuva mansa, que esmoreceu gradualmente, e por um nevoeiro algo mais persistente que nos impediu de tirar fotos decentes. Os três exemplares que planeávamos visitar, representando 3/4 dos teixos conhecidos na ilha, situam-se todos em manchas de arvoredo rodeadas por pastagens de bovinos. A postura agressiva de umas tantas vacas em defesa das crias ditou um desvio do percurso, ficando assim um dos teixos por visitar. O prémio foi terem o Pedro e a Cátia descoberto um teixo que nunca tinham visto, o que representa um reforço de 25% da população conhecida da espécie. Será esse o teixo-fêmea que faltava detectar? Prémio adicional foi termos encontrado, no vale encaixado de uma ribeira sem água, um solitário exemplar de Euphrasia grandiflora, espécie raríssima no Pico. E fartámo-nos de ver erva-do-capitão (Sanicula azorica), mas sem surpresa para ninguém.

Devíamos talvez ficar agradecidos às vacas por tão frutuosa alteração de planos. Sucede que foi a monocultura da vaca, intensificada a partir dos anos 80 do século passado com os subsídios comunitários, a ditar em pouco mais de 20 anos uma redução de 50% do que restava da vegetação natural dos Açores, desbastada a eito para a abertura de pastagens. O processo foi particularmente notório e intenso na ilha do Pico. De modo que estes fragmentos de bosques delimitando pastagens, ainda que belos, são parte de uma coisa muito maior que se perdeu para sempre, e que há trinta ou quarenta anos ainda existia. Tudo para fazer as vacas felizes.

13/09/2017

Trovisco rosado

De acordo com estudos experimentais que simulam a rotina de polinizadores, as abelhas têm uma preferência inata por certas cores, aquelas que nas flores costumam estar associadas a mais néctar, ou a um néctar mais nutritivo, ou a outras recompensas. Esta é uma enorme vantagem para a abelha iniciante na lida de recolha de alimento, como o é um mapa actualizado numa viagem a uma região mal conhecida. Mas, de facto, a cor da flor não é a única preocupação da abelha. A visão das abelhas em voo só lhes permite identificar a que flor se dirigem quando já estão quase em cima dela. E, nesse momento, há que corrigir o ângulo de navegação, manter o equilíbrio enquanto reduzem a velocidade, localizar um lugar vago e seguro na flor (que não raro abana com o vento) para aterrar, e fazê-lo sem a danificar. Se a flor for perfumada e exibir uns salpicos de cor que contrastem, assinalando o caminho até ao néctar ou ao pólen, a manobra é naturalmente mais fácil. Se, apesar de seguirem o mapa, a flor onde aterram for afinal desconhecida mas se revelar um pote de guloseimas, as abelhas não desperdiçam a oportunidade de lá voltar: sacrificando a rapidez da colheita, memorizam os traços mais significativos da flor, apreendem demoradamente as mudanças de parâmetros da cor com o ângulo de abordagem e a incidência da luz, e traçam uma rota optimizada para a reencontrar (algo que os instrumentos de GPS não sabem ainda fazer sozinhos).

Pelo que vemos por aí, as plantas mantêm constante a cor das suas flores, e este é talvez o sinal mais fiável para o polinizador as identificar. Mas a longo prazo, algumas alterações genéticas podem introduzir variações que se revelam lucrativas, e a selecção natural tenderá a valorizar as características da flor que mais agradam aos visitantes. As primeiras flores, que se acredita terem sido esverdeadas, evoluiram para atrair polinizadores; por isso, o modo como estes vêem e distinguem as cores determinou a paleta dominante (amarelo, violeta, branco, vermelho) que hoje reconhecemos nas flores silvestres. Nos troviscos, de que em Portugal há registo de duas espécies, a Daphne laureola e a (muito mais comum) Daphne gnidium, só conhecíamos flores brancas ou de cor creme. Na nossa visita à Cantábria em Maio aprendemos que este género sabe tirar proveito de mais cores.


Daphne cneorum L.



Circulávamos numa estrada íngreme no Parque Natural dos Collados del Asón, ladeada por montes calcários, quando, pelo rabo do olho, nos pareceu ver umas manchas de um tom de rosa invulgar. Parámos, claro, para averiguar, e foi uma agradável surpresa descobrir uma população magnífica deste trovisco com flores carmim. É da natureza humana apreciar o que é belo e raro: já se sabe que, se por cá as flores de Daphne fossem cor-de-rosa, seriam as esbranquiçadas que nos entusiasmariam. Mas ainda não estava tirada a terceira fotografia do novo trovisco, e já a polícia de trânsito surgia ao fundo da ladeira para inquirir daquele estacionamento inusitado. Felizmente havia mais exemplares no topo da estrada, e a sessão de fotos pôde aí completar-se em sossego. Notem como as folhas são coriáceas e formam arbustos rasteiros, com as flores (sem pétalas; o tubo rosa, muito perfumado, é feito de sépalas) agrupadas em grinaldas nos ápices dos ramos. Nesta excelente página sobre a flora do Mediterrâneo listam-se mais algumas espécies de Daphne com flores invulgares.

05/09/2017

Pensamentos roxos



Viola bubanii Timb.-Lagr.


Tal como o sedentarismo provoca a obesidade, também a domesticação fez inchar as violetas de forma doentia, a ponto de elas renegarem as origens e passarem a chamar-se amores-perfeitos. Houve um tempo em que essas flores, banalizadas em canteiros geométricos e arrumadinhos, eram o epítome do kitsch, do colorido extravagante, do gosto preguiçoso e padronizado. O que ofendia não era cada amor-perfeito em si (embora alguns exagerassem nas cores e no tamanho) mas o uso desregrado dessas flores e a ausência de quase tudo o resto. Porém essa fase, que durou décadas, pretence ao passado, e hoje em dia já compensa gastar tempo a admirar amores-perfeitos nos poucos locais onde ele resiste. Não passou a haver maior variedade de flores em espaços públicos, muito pelo contrário, mas agora o que se vê são petúnias. Petúnias de todas as cores e só petúnias, em jardins públicos, em floreiras à porta dos restaurantes, em rotundas pequenas e grandes, em tristes varandas suburbanas.

Os amores-perfeitos pertencem ao género Viola, e foram criados ao longo dos séculos XIX e XX, por hibridação e selecção, a partir de espécies como a Viola tricolor, Viola lutea e Viola altaica. O nome violeta, usado para designar as pequenas flores silvestres, pareceu aos horticultores insuficiente para abarcar as novas e avantajadas flores de jardim. Daí que cada língua tenha inventado para elas um termo novo mais ou menos evocativo: em português amores-perfeitos, em francês pensées, em castelhano pensamientos, em inglês pansies. Tirando o nome português, os outros têm a mesma raiz, e derivam todos do nome francês: "pansy" resulta da tentativa (falhada) dos ingleses de dizer "pensée", e até nestas coisas de flores foram os franceses, e não os espanhóis, que estiveram na raiz do pensamento.

O pensamento, na acepção castelhana do termo, deveria pois referir-se apenas às violetas cultivadas. No entanto, a crer no portal Anthos, há quem assim designe também as violetas silvestres. Ainda que seja educativo lembrar que essas velhas aristocratas descendem de floritas plebeias, é pena que se perca, na linguagem corrente, a diferenciação entre as duas linhagens. Mas esse é um problema dos espanhóis, não nosso.

Problema nosso é que esta violeta ou pensamiento de flores tão distintivas, de seu nome Viola bubanii, que acenando-nos numa berma de estrada nas Astúrias nos obrigou a uma paragem de emergência, também deveria existir em Portugal, no Parque de Montesinho, e nos últimos anos ninguém tem dado por ela. Será que apenas por cá esteve em visita efémera, na década de 1980, para que Carlos Aguiar pudesse então assinalá-la [PDF — ver pág. 133] como novidade para a flora portuguesa? Também em Espanha ela não é abundante, distribuindo-se muito esporadicamente pelas montanhas de Orense, Léon e cordilheira cantábrica, e atravessando com dificuldade a fronteira francesa.

Para uma violeta silvestre, a V. bubanii tem flores grandes, de 2 a 3 cm de diâmetro, que se apresentam com um ar muito vertical e empertigado, rematadas por um esporão cónico bem afiado. É uma planta perene, de solos ácidos, que vive em prados de montanha ou, a altitudes mais baixas, sob abrigo de matos em sítios com alguma humidade.