Anémona das neves
Anemone pavoniana Boiss.
Estávamos no local errado e no dia errado, e os dois erros, cancelando-se um ao outro, permitiram-nos ver uma flor impossível. No início de Maio, a Anemone pavoniana, endémica da cordilheira cantábrica, não deveria estar em flor a 2000 metros de altitude, quando ainda os picos se cobriam por esfarrapados mantos de neve em degelo acelerado. E de facto não estava: as duas plantas que encontrámos, abrindo cada uma a sua flor como quem espreita cautelosamente por cima de um muro, vinham apenas fazer o reconhecimento do terreno. E o terreno não conferia com aquele que lhes é prescrito nos manuais. A Flora Ibérica, prestigiada publicação à qual todas as plantas do reino de Espanha e da república de Portugal devem obediência, determina que a espécie vive apenas em rochas calcárias, inexistentes no Pico Três Mares e nos cumes vizinhos. Dando-se conta do equívoco, e sob ameaça de pesada coima, era natural que estes emissários, de volta à base, alertassem os seus companheiros para a inadequação do lugar. É pois de crer que, mesmo depois de toda a neve derreter, mais nenhuma destas anémonas tenha ousado florir por essas bandas.
Quem quiser ver a Anemone pavoniana em floração na altura própria, e num habitat mais conforme às preferências decretadas para a espécie, deve aguardar pelo início de Junho e visitar então um dos muitos afloramentos calcários que preenchem o extremo norte da Península, desde o País Basco às Astúrias. Com caules que podem atingir os 50 cm de altura (as que vimos, ainda incipientes, dificilmente chegavam aos 10 cm) e flores brancas de 3 a 4 cm de diâmetro, esta é uma das sete espécies ibéricas do seu género. Para lá dos Pirenéus, em França, Itália e nos Balcãs, surge uma sósia da A. pavoniana, a A. baldensis, moradora em prados alpinos. Não sendo fácil detectar diferenças entre as duas com base apenas em fotos, é irresistível apontar que a (acidental?) presença da primeira no Pico Três Mares parece mais de acordo com a ecologia da segunda.
2 comentários :
Olha que acaso tão bonito! E que local e hora errados, mas tão certos. Deve ser o tal assunto da escrita por linhas tortas e que dá bem. Para o prazer de quem olha e vê uma florinha tão bonita e impossível. Mas é que existe mesmo. É verdadeira. Ou foi. E, embora de caule mais curto, nada lhe falta em beleza. Está lá inteira.
Parabéns pelo achado
"A Flora Ibérica, prestigiada publicação à qual todas as plantas do reino de Espanha e da república de Portugal devem obediência"
Fantástico...então a parte da coima, bem (!)...
Rir-se com textos sobre plantas não é para todos, mas (felizmente) faço parte do grupo!
Obrigada pelo vosso fenomenal trabalho,
Paula
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