27/04/2025

Pequeno mato azul



Por causa da prevenção dos incêndios, em Abril, seja mês chuvoso ou seco, começa o corte drástico da vegetação herbácea nos taludes das estradas. Há que eliminar as plantas, culpadas por atiçarem o fogo. Para optimizar esta tarefa (embora não o custo dela, pois alimenta generosamente inúmeras empresas ditas de jardinagem), ainda há quem as destrua (ilegalmente, supomos) com herbicida. De benefício duvidoso, estas medidas têm tirado carácter à nossa Primavera: em vez da profusão de flores e tonalidades, caracteriza-a agora a paisagem monotonamente castanha, sem plantas, sem passarada, sem joaninhas e sem abelhas. Há quem alerte para o mal que estas práticas provocam aos ecossistemas, e por tabela à agricultura e à nossa saúde, mas o medo dos incêndios sobrepõe-se ao bom senso. Nas Canárias, felizmente, ainda não se usa este barbear agressivo dos taludes. Por isso, há por lá estradas magníficas, bordejadas de vegetação, onde se circula devagar para se apreciar devidamente a natureza.

Dicheranthus plocamoides Webb


Este é um endemismo canariense que só ocorre em ladeiras rochosas e soalheiras de La Gomera e Tenerife, em geral orientadas a norte, entre os 200 e os 1200 m de altitude. Trata-se de uma planta com 20-100 cm de altura, de perfil arredondado, base lenhosa e ramos jovens de textura herbácea, que chama a atenção pela folhagem azulada. O género Dicheranthus é monoespecífico, e destaca-se na família Caryophyllaceae por ser arbustivo. O epíteto específico plocamoides refere-se à semelhança da folhagem destas plantas (conhecidas como falsos balos de risco), frequentemente pendular, com a do género Plocama (o verdadeiro balo).

Notem na 2ª e 3ª fotos como as folhas são suculentas e as inflorescências densas, embora as flores sejam minúsculas (de uns 2 mm de comprimento) e sem corola. Estão, porém, protegidas por sépalas bicolores, que substituem perfeitamente as pétalas na tarefa de atrair os polinizadores. Mal se vê mas, em cada cimeira de flores, as sépalas das flores exteriores são membranosas e as das flores interiores parecem foices, com uma ponta aguçada. Que vantagem haverá para a planta nesta diferenciação?

As fotos foram captadas numa estrada do centro da ilha de La Gomera, a mais de 1100 m de altitude, onde em Maio ainda se sente bastante frio matinal.

12/04/2025

Ilha de assobios



Quando dos lábios nos sai um assobio imitando os acordes da última cançoneta que se nos infiltrou na cabeça, estamos, ainda que involuntariamente e sem destinatário definido, a comunicar. Todos os gestos que fazemos e actos que praticamos são formas de comunicação: reportam sobre o que nos vai na mente, mesmo que ninguém esteja interessado em decifrar tal informação. Dito isto, reconheça-se que tais formas de comunicar só costumam transmitir informações rudimentares: que estamos alegres ou tristes ou distraídos, ou que vimos algo que nos enfureceu ou assustou. Haver uma linguagem elaborada toda ela feita de assobios, por exemplo, já suscita reacções de dúvida e estranheza: não será história inventada por ficcionistas? Trata-se até de enredo assaz batido, o da linguagem secreta usada por um grupo de resistentes (ou por um povo oprimido) para se organizar na luta contra a tirania.

É sabido que em La Gomera existe ou existiu uma linguagem de assobios, herdada dos Guanches que habitaram a ilha antes da colonização espanhola. A orografia explicaria essa evolução, já que transpor os muitos barrancos que sulcam a ilha é complicado, e os assobios se ouvem melhor ao longe do que os gritos das mais estridentes cordas vocais. Por razões análogas, os povos indígenas norte-americanos inventaram a comunicação por tambores ou por sinais de fumo, e sobre estes meios os assobios têm a vantagem da portabilidade: a qualquer momento, sem necessidade de acender fogueiras ou de carregar tambores às costas, cada assobiador está apto a enviar as suas mensagens.

Agora que a distância não é óbice à comunicação, nem há opressores de quem esconder o que é comunicado, é natural que os assobios de La Gomera tenham caído em desuso, ou só sobrevivam como produto turístico. E talvez o assobiador para turista ouvir já nem se preocupe em compor mensagens com nexo, pois afinal ninguém o entende. Certa vez, na nossa visita à ilha, um senhor idoso assobiou para nós — ou falou connosco aos assobios. Parecia afável, pode apenas ter-nos desejado bom dia, mas a mensagem não passou.

Silene bourgeaui Webb ex Christ


Podemos contudo confirmar que em La Gomera existe um assobio que é próprio da ilha e não se encontra em mais sítio nenhum. Não é um assobio sonoro, mas sim vegetal, e o reconhecimento da sua existência só está ao alcance dos falantes de português. Chamando nós assobios às plantas do género Silene, a esta Silene bourgeaui só podemos dar o nome de assobio-de-La-Gomera, enquanto que os espanhóis, a quem igual trocadilho está vedado, lhe chamam insipidamente canutillo gomero.

A Silene bourgeaui é um pequeno arbusto de base lenhosa, com hastes floríferas erectas de uns 30 cm de altura. As flores são brancas, viradas para cima, e no aspecto geral este assobio é bem mais compacto e arrumadinho do que a S. pogonocalyx, outro endemismo canarino (esse de La Palma e de El Hierro) que já aqui mostrámos. A S. bourgeaui floresce entre Fevereiro e Maio, e vive em escarpas rochosas do centro e norte de La Gomera. Encontrámo-la em boa quantidade na Fortaleza de Chipude, que é um respeitável maciço rochoso sobranceiro à povoação com o mesmo nome.

05/04/2025

Ensaiões de La Gomera III & IV



Os ensaiões de haste não ramificada podem escolher entre dois modelos vincadamente contrastantes. No primeiro — exemplificado pelo Aeonium appendiculatum, que mostrámos no fascículo anterior desta série — as plantas têm um «tronco» bem definido, acastanhado, despido de folhagem, encimado por um saiote de folhas onde se aninha ampla inflorescência mais ou menos semiesférica. No segundo modelo, a roseta de folhas está colada ao solo e dela emerge uma haste floral verde e folharuda de alto a baixo, com as folhas reduzindo-se a pouco mais que escamas à medida que sobem. Nesse caso as flores podem concentrar-se no topo da haste (como sucede no Aeonium aizoon e no Aeonium aureum) ou formar uma inflorescência alongada, aproximadamente cónica. É essa última a opção do Aeonium canariense, representado em La Gomera pela subespécie latifolium, que é o primeiro dos ensaiões hoje aqui ilustrados.

Aeonium canariense subsp. latifolium (Burchard) Banares
Conhecido como pastel de risco na sua ilha natal, o nome vernáculo da planta não se refere a indisposições gástricas que afligiriam quem lhe comesse as folhas, mas sim à forma achatada (ou empastelada) da sua roseta basal, e à sua predilecção por zonas rochosas ou falésias (riscos em espanhol). Prefere lugares abrigados em ambiente florestal, como sejam clareiras da laurissilva, e por isso está confinada à fresca e arborizada metade norte de La Gomera. Outras versões do Aeonium canariense têm flores de diferentes cores (por exemplo, a subsp. canariense, restrita a Tenerife, tem flores de cor creme) ou rosetas não espalmadas de aspecto bem distinto (caso da subsp. virgineum, da Grã-Canária). Todas estas plantas possuem inegável valor ornamental, mas são avessas ao cultivo e não costumam sobreviver em condições que não reproduzam com exactidão o seu habitat natural.

Aeonium castello-paivae Bolle


O segundo ensaião de hoje, Aeonium castello-paivae ou bejequillo gomero, também um endemismo gomerense, vive entre os 200 e 1100 m de altitude em sítios escarpados e em geral soalheiros. Hibrida frequentemente com o A. decorum (que apresentámos no fascículo anterior), e de facto não difere muito dele: fica-se pelos 50 cm de altura, é assaz ramificado, e as suas folhas agrupam-se em rosetas de 4 a 7 cm de diâmetro nas extremidades dos galhos. As hastes florais são algo erectas e alongadas, e as flores, em tons de verde ou de bege, com pétalas estreitas, estão reunidas em cachos terminais. Florece entre Maio e Junho — e, ao que consta, dá-se bem em jardins, ainda que seja pouco cultivado. A ouvidos portugueses o epíteto castello-paivae não pode deixar de chamar a atenção, e a suspeita é prontamente confirmada: trata-se de uma homenagem a António de Costa Paiva (1806-1879), académico e naturalista portuense que viveu muitos anos na Madeira, feito barão de Castelo de Paiva em 1854 por ordem de D. Pedro V.