19/12/2017

A prímula mais alta


Primula elatior (L.) Hill


As convulsões que têm afligido Espanha, ameaçando a sua integridade, são o resultado inevitável das más partilhas feitas pelos primeiros reis ibéricos. Na senda da deriva independentista da Catalunha, veio há semanas a público uma proposta do parlamento andaluz de se criar uma Grande Andaluzia, agregando-se à província com esse nome os demais «países andaluzes»: Múrcia, Algarve e Alentejo. Portugal não deve ficar mudo e quedo face a estas pulsões expansionistas que ameaçam reduzi-lo e retalhá-lo. Sim, deve afirmar desde já a vontade firme de anexar a Andaluzia — ou, em versão diplomática, a calorosa disposição de acolher a Andaluzia e as suas gentes, se elas enveradarem por uma trajectória secessionista face a Madrid. Mas não deve ficar por aqui. Que a Galiza não faça parte de Portugal é um erro crasso denunciado há muitos séculos por patriotas portugueses e galegos. Este é o momento de agir: Portugal cumpre o seu destino histórico e, ao mesmo tempo, remedeia a sua vergonhosa penúria em espécies do género Primula.

Os números são de uma triste eloquência: temos uma única espécie, Primula acaulis, quando, sem contar híbridos nem subespécies, em Espanha há oito, na Europa 33, e na China e Himalaias mais de 300. Unindo-nos à Galiza passaríamos a ter três. Sem ser bom, ajudaria a atenuar a injustiça. A mais alta das prímulas (é isso que garante, com algum exagero, o epíteto específico), Primula elatior, faria parte do enxoval, acompanhada pela Primula veris (se o seu latim anda tremido, saiba que aquele veris não significa que esta prímula seja mais verdadeira que as outras, mas sim que floresce na Primavera, como aliás fazem quase todas). Ficaríamos ainda privados desta jóia, mas ganharíamos alento para novas conquistas.

A P. elatior, que encontrámos nas Astúrias e na Cantábria, é mais frequente no norte de Espanha, ao longo dos Pirenéus e da cordilheira cantábrica; no resto da Península, só aparece na serra Nevada e, muito esporadicamente, em algumas serras do Sistema Central ibérico (Gredos e Guadarrama). As suas flores são pálidas como as da P. acaulis e surgem agrupadas na extremidade de hastes erectas como na P. veris; as suas folhas muito rugosas, reunidas em roseta basal, são também uma média entre as folhas das duas outras espécies. É natural que se levante a suspeita: será a P. elatior, não uma verdadeira espécie, mas um híbrido da P. verna com a P. acaulis? A resposta é negativa, pois o híbrido entre as duas ocorre naturalmente, acompanhado pelos seus progenitores, em grande parte da Europa; e, como podemos confirmar nesta página, não tem a cara da P. elatior, embora faça lembrar. As flores são mais pequenas, exibem manchas escuras na base das pétalas, e não estão todas viradas para o mesmo lado como sucede na P. elatior; além disso, os cálices são claramente diferentes (compare com a 3.ª foto acima) e as hastes florais mais curtas.

13/12/2017

Flores vorazes



Pinguicula grandiflora Lam.


As plantas do género Pinguicula vivem em geral em solos pobres, complementando a dieta com o que de nutritivo vá caindo nas suas folhas rígidas e suculentas. Alguns insectos, julgando ver gotas de água nas glândulas espalhadas na superfície das folhas, aproximam-se delas, descobrindo tarde de mais que a água é afinal uma cola que os aprisiona sem redenção. Uma vez agarrada a presa, as folhas recurvam as margens formando uma taça, e um segundo tipo de glândulas segrega enzimas que digerem o que a planta finalmente absorverá através de minúsculos orifícios. Neste processo, também as folhas se deterioram, mas a planta faz nascer outras sem demora. Para que os polinizadores não sejam comidos por engano, as flores são solitárias e surgem no topo de hastes altas com corolas bastante vistosas. Nunca fiando, as da P. grandiflora são também grandes, as maiores que já vimos neste género, ainda que parecidas com as da P. vulgaris.

Há um outro pormenor que só dissecando uma flor se conseguiria ver. Como já notou pelas fotos, a flor é tubular, com dois lóbulos e um esporão contendo umas gotinhas de néctar. Os estames com o pólen estão escondidos no tubo, e um estigma de duas faces cobre-os como uma tampa. O arranjo é tal que, se uma abelha quiser lamber o néctar ou recolher o pólen, terá de se roçar na face exterior do estigma (a única polinizável), deixando lá o pólen que trouxe de outra flor; pelo contrário, a face adjacente ao pólen não é receptiva, o que impede a auto-fecundação.

Morando habitualmente junto a fontes de água, estas plantas adaptaram-se sabiamente às vantagens (muitos insectos esvoaçantes e incautos por perto) e aos riscos inerentes a uma tal vizinhança. Por exemplo, as cápsulas que guardam as inúmeras sementes podem manter-se fechadas caso haja demasiada humidade no ambiente, o que poderia arruinar as sementes ou impedi-las de se dispersarem pelo vento. Além disso, em algumas espécies as sementes nascem com coletes salva-vidas que lhes permite flutuarem se tombarem na água.

Como todos os prodígios, não há muitas espécies de Pinguicula. Das cerca de oitenta conhecidas (quase todas da América Central e do Sul), só uma dúzia é nativa da Europa, delas ocorrendo nove na Península Ibérica e apenas duas em Portugal.

05/12/2017

Saponária dos assobios


Saponaria ocymoides L.


A grande vantagem de planearmos os passeios ao milímetro é podermo-nos desviar vários quilómetros da rota traçada. Se o improviso correr mal, se aquele desvio que por impulso fazemos afinal não se revelar compensador, podemos sempre retroceder e conformarmo-nos com o que estava previsto. O planeado é apenas a rede de segurança, um último recurso para que o passeio valha a pena. Mesmo nesta época dos satélites, do Google Earth e do GPS, os caminhos só se conhecem caminhando, e muitos vezes, quando pisamos o local que antevíramos nas imagens aéreas, percebemos que o melhor de dois caminhos é aquele que não tínhamos mapeado.

Em Maio, na nossa semana de vagabundagem pela cordilheira cantábrica, quisemos visitar a cascata de Las Pisas, em Soncillo, na província de Burgos. O trilho até lá, embrenhando-se por um bosque cerrado, era difícil de adivinhar pelas imagens aéreas, mas pareceu-nos que partiria de Villabascónes, um povoado com cinco ou seis casas convertido ao turismo de habitação. Erro nosso, como poderíamos ter verificado pelo mapa geográfico de Espanha (disponível aqui). Seguimos teimosamente o caminho errado, esperando que ele, dando-se conta do equívoco, guinasse à esquerda e se dirigisse para a cascata. Quando compreendemos que nunca chegaríamos a ela, já tínhamos sido seduzidos pelo ribeiro (arroyo Saúl, informa o mapa) que o caminho insistia em acompanhar, e tornara-se-nos tão impossível retroceder como a um marinheiro arrastado pelo canto da sereia. Havia faias, freixos, amieiros e... tílias, uma novidade para quem, como nós, só as conhecia domesticadas em jardins. Ervas-pombinhas (Aquilegia vulgaris) e madressilvas (Lonicera sp.) acrescentavam azul e amarelo à exuberância do verde; e, nos pontos onde o caminho se afastava do leito encaixado do ribeiro, deu-se o nosso feliz reencontro com o raríssimo (em Portugal) Aphyllanthes monspeliensis, que se empoleirava nos taludes soalheiros.

A certa altura o caminho cruzava um viaduto e desembocava numa estrada, seguindo o exemplo do ribeiro que, no mesmo ponto, desaguava num rio de caudal já respeitável (rio Nela, afluente do Ebro). Quebrara-se o feitiço e já podíamos inverter a marcha. Logo antes do viaduto, atrás do portão de uma casa decrépita, um cão triste ladrava para justificar a existência. Fingindo ir embora, esperámos que ele se calasse para ir, em bicos de pés, fotografar uma planta de flores cor-de-rosa, parecida com um assobio (assim chamamos nós às Silenes), que crescia num muro.

Dar nome à suposta Silene revelou-se intrincado, e o problema só se resolveu quando concluímos que não se tratava de uma Silene. Se fôssemos botânicos conscienciosos (mas nem botânicos somos), uma inspecção à lupa revelaria que a planta tinha apenas dois estigmas em cada flor, enquanto que as do género Silene têm três (ou raramente cinco) — fotos aqui e aqui. Sendo nós irremediavelmente descuidados, acabámos por nem registar esse detalhe crucial nas fotos. Como iríamos adivinhar estar em presença de uma prima da Saponaria officinalis? Uma planta peluda, de múltiplos caules decumbentes, agarrada a um muro, de flores diminutas: eis um retrato em tudo contrastante com o da erva-saboeira, que é glabra, tem caules erectos, flores e folhas grandes, e cresce em terrenos húmidos.

Em Espanha ocorrem cinco espécies de Saponaria, quatro delas ausentes de Portugal. Vendo-lhes as caras (espreite ao fundo desta página), concluímos que a Saponaria ocymoides, acima ilustrada, se integra bem no conjunto, e que quem mais destoa é a S. officinalis. A S. ocymoides ocorre em grande parte da Europa mediterrânica, desde os Balcãs até Espanha. É uma planta perene de 30 a 50 cm de altura, de base lenhosa nos exemplares mais idosos, que por vezes se apresenta com os caules muito emaranhados. O epíteto ocymoides refere-se à (hipotética) semelhança da planta com o manjericão (Ocimum basilicum).

28/11/2017

O verdadeiro sanguinho



Cornus sanguinea L.


A legislação portuguesa permite, a quem o deseje, alterar o seu nome, ainda que o processo exija uma justificação e não seja barato. As razões alegadas são as mais variadas, podendo simplesmente não se gostar do nome que se tem. Na taxonomia das plantas, a obrigação de se usar o nome válido mais antigo não permite tais brios. E, na verdade, mesmo que algumas designações nos soem estranhas, como a que Lineu escolheu para esta espécie, uma consulta ao dicionário revela que tais nomes são até apropriados. E, sendo frequentemente baseados em detalhes morfológicos, servem de etiquetas de memorização fácil e dão uma grande ajuda na identificação de plantas.

A designação Cornus sanguinea parece aludir a uma tragédia amorosa, recheada de traição e infidelidade, mas não se trata disso. Cornus também significa, em latim, cerejeira ou pilriteiro, ou os ramos jovens dessas e de outras árvores semelhantes. Com os das Cornus, tingidos de vermelho, faziam-se outrora varas ágeis e cestos afamados. Em português, o nome vernáculo atribuído a esta espécie é sanguinho-legítimo, para a distinguir de outros sanguinhos, como o sanguinho-de-água (Frangula alnus) ou o sanguinho-das-sebes (Rhamnus alaternus). Poderia chamar-se cornizo, digamos, por analogia com o termo espanhol cornejo, sendo então as bagas negras os cornizolos, mas não seria uma escolha popular portuguesa, para não falar da possível confusão com a cornalheira (Pistacia terebinthus). A palavra sanguinho, bizarro diminutivo para sangue criado para dar nome a uma cor (a da cornalina, um tom de vermelho claro que vemos nos ramos desta Cornus, e na folhagem antes de cair no Outono), parece ser especialmente estimada pelo nosso povo, que a usa amiúde. Em inglês chamam-lhe dogwood, em alusão a uma outra característica desta pequena árvore: a madeira do tronco é dura (como um osso), usada em cabos de ferramentas.

Esta é a única espécie de Cornus que ocorre espontaneamente na Península Ibérica. E, ao contrário de outras congéneres ornamentais de que já aqui falámos (C. florida, C. kousa, C. capitata...) com flores minúsculas esverdeadas agrupadas em inflorescências com brácteas vistosas, a C. sanguinea dá flores mais convencionais, com quatro pétalas brancas e estames salientes, reunidas em cimeiras achatadas. Os exemplares que conhecemos no nosso país (também a vimos, bem mais abundante, na Cantábria) moram em bosques ribeirinhos no concelho de Vinhais. Quase todos os actuais registos da espécie em Portugal são transmontanos, mas ela ainda vai aparecendo no baixo Mondego, em sebes que separam campos de cultivo.

21/11/2017

Erva de soldar ossos


Symphytum tuberosum L.


É pelos faiais da Cantábria que continuamos. Na primeira quinzena de Maio, as folhas ainda frescas das árvores deixam escoar breves farrapos de sol. As prímulas (Primula veris, Primula acaulis) e as hepáticas deram já por cumprida, com a produção de frutos, a lista de tarefas reprodutivas do ano; o alho-dos-ursos (Allium ursinum), o selo-de-Salomão e algumas orquídeas de bosque estão em plena azáfama de floração; e várias outras herbáceas se aprestam a iniciar a temporada. Neste último grupo se inclui o Symphytum tuberosum, a que chamaríamos consolda-menor caso existisse em Portugal. Não existindo, o nome foi usurpado por uma espécie muito diferente (Prunella vulgaris), embora o nome consolda-maior ainda seja, por lei, pertença do Symphytum officinale, igualmente ausente do nosso país. Ausente na natureza, entenda-se, pois ele terá sido, mesmo por cá, assiduamente cultivado graças a uma reputação medicinal que já vem da antiguidade.

Um dos usos terapêuticos do Symphytum está plasmado na própria palavra consolda. Acreditava-se que a ingestão de infusões com a planta ajudaria a sarar fracturas ósseas, fazendo com que os ossos partidos soldassem mais rapidamente. E o nome Symphytum, que provém do grego, significa, segundo a Flora Iberica, "fazer crescer juntamente", entendendo-se que nesse processo as partes fracturadas acabariam por fundir-se uma com a outra. Sabe-se hoje que estas plantas contêm de facto um tipo de molécula (alantoína) capaz de estimular o crescimento e reparação dos tecidos celulares, mas a sua toxicidade torna-as desaconselháveis para uso interno, já que podem causar sérios danos ao fígado. Para aplicação externa as contra-indicações não são tão assustadoras, e a planta poderá ser útil no tratamento de feridas cutâneas.

Nem todas as consoldas (ou melhor, nem todas as espécies de Symphytum) terão idênticas propriedades medicinais, e por isso de modo nenhum encorajamos o leitor à prática de medicina caseira pela colheita desta ou de outras plantas silvestres. Assinale-se, ainda assim, que o Symphytum tuberosum, embora menos afamado e muito menos cultivado do que o Symphytum officinale, também teve os seus usos na vertente solda ossos do herbalismo.

A consolda-tuberosa (chamemos-lhe assim) é uma herbácea vivaz de porte modesto, atingindo não mais do que um metro de altura, presente como nativa em quase toda a Europa ocidental (Portugal e Irlanda são excepções), que vegeta em bosques caducifólios húmidos e em margens de cursos de água. Para não entristecermos por a natureza nos ter negado contemplá-la no nosso país, lembremos que por cá há plantas da mesma família, como o chupa-mel (género Cerinthe), também de flores tubulares, que num juízo imparcial a suplantam largamente em beleza.

15/11/2017

Dona Genciana & C.ª

A ideia generalizada de que as abelhas estão apenas interessadas no néctar das flores, que recebem como pagamento pelo serviço de levar o pólen de umas plantas para outras, deve-se por certo a alguma desatenção quanto ao comportamento destes insectos. Tanto as flores como as abelhas precisam de pólen. O néctar, feito essencialmente de açúcar e água, dá energia às abelhas na sua lide diária; mas elas, e sobretudo as crias, precisam também de proteínas, e o pólen é a melhor fonte desse alimento que conhecem. Isto significa que, embora para a reprodução das plantas convenha que a abelha deposite noutras flores o pólen que leva, ela desdobra-se em mil cuidados para levar todo o pólen que puder para casa. Surpreende-nos que este paradoxal acordo entre espécies se venha mantendo com sucesso.

Este conflito de interesses quanto ao uso do pólen levou naturalmente a adaptações tanto nas flores como nos insectos. Nas flores há inúmeros mecanismos que reduzem o desperdício de pólen, seja pelo formato dos grãos de pólen que nem todos os insectos conseguem agarrar, ou pela posição da corola onde o insecto aterra de modo a que o pólen se deposite numa parte mais segura da abelha, ou ainda pela presença de zonas translúcidas nos tubos florais que guiam alguns visitantes até aos nectários enquanto passam despercebidos a outros. Tudo afinado para não se comprometer a capacidade de atrair os insectos adequados, enquanto se repelem os meros ladrões de guloseimas. Por seu lado, as abelhas tornaram-se mais eficientes na colheita e transporte do pólen, e a evolução deu-lhes a possibilidade de aprenderem depressa e bem quais as flores mais recompensadoras, em comunidades em que se copiam livremente as abelhas mais espertas.


Gentiana angustifolia Vill.



Gentiana verna L.


As plantas do género Gentiana são em geral polinizadas por abelhas, embora em algumas espécies haja também borboletas a ajudar no processo de fecundação. A morfologia e o ciclo destas espécies fornecem amplos exemplos das adaptações que mencionámos. O caso da G. pneumonanthe, de corolas pintalgadas de dourado, é especial: em alguns habitats, estabeleceu uma interacção peculiar com duas outras espécies, uma borboleta azul (Maculinea alcon), que desposita os seus ovos nos tubos da flor, e uma formiga vermelha (Myrmica scabrinodis), em cujas colónias as larvas da borboleta caem, se alimentam e crescem, libertando assim a planta dessas criaturas vorazes.

A Península Ibérica abriga várias espécies do género Gentiana, algumas anuais, outras bianuais ou perenes, que parecem preferir regiões frias — as que, neste canto sudoeste da Europa, vão rareando. É na Ásia, sobretudo nas montanhas chinesas, que se concentra a maioria das cerca de 360 espécies conhecidas. Nas fotos acima, as primeiras flores, vistas em afloramentos calcários da Cantábria, são versões gigantes da G. pneumonanthe; as outras, do pico Tres Mares, com corolas de bordos largos e quase planos, são muito mais pequenas e rasteiras, mas nascem em tapetes vistosos de um azul intenso (com os centros assinalados a branco) onde as abelhas se banqueteiam felizes.

07/11/2017

Irmã cantábrica

Havendo bons carvalhais na Cantábria, a verdade é que a árvore aí dominante nos bosques naturais mais bem conservados é a faia (Fagus sylvatica), que, a não ser em jardins ou em plantações florestais, não existe neste nosso rectângulo ocidental. Essa diferença em ponto grande anuncia outras diferenças em ponto pequeno: também os arbustos e herbáceas que revestem o sub-bosque são outros que não os que existem por cá. Com excepções importantes, como o Hypericum androsaemum, a Linaria triornithopora, a Daboecia cantabrica, o Polygonatum odoratum e a Aquilegia vulgaris. Essas espécies tão características dos nossos bosques nortenhos sentem-se igualmente em casa em habitats nemorais no extremo norte de Espanha — embora, em rigor, a versão da erva-pombinha (Aquilegia vulgaris) que se encontra na cordilheira cantábrica se distinga da nossa pelo maior tamanho das flores e pela sua diferente coloração.



Saxifraga hirsuta L.


Esta saxífraga, que encontrámos em bosques, taludes frescos, margens de ribeiros e de um modo geral em lugares húmidos permanentemente ensombrados, foi um desses casos em que ao reconhecimento se sucedeu a estranheza. O que reconhecemos, por serem exactamente iguais às da Saxifraga spathularis, que sabíamos frequentar lugares semelhantes, foram as hastes erectas, avermelhadas e peludas de onde brotavam inúmeras floritas brancas salpicadas de amarelo ou rosa. Mas as folhas de pecíolo longo e fino, limbo arredondado e hirsuto, cordiforme na base, não batiam certo com as folhas coriáceas, glabras e (quem diria?) espatuladas da S. spathularis. Essa variação foliar, de tão marcada, impunha que se tratasse de outra espécie. E assim era: a Saxifraga hirsuta teve a honra de ser baptizada por Lineu, que lhe pôde dar um nome inteiramente apropriado na sua simplicidade. Sorte de pioneiro, quando os nomes simples e óbvios ainda estavam todos por usar. Mas Brotero, que deu nome à Saxifraga spathularis, também não tem razões de queixa.

As folhas das duas espécies, S. spathularis e S. hirsuta, dispõem-se em rosetas basais compactas que vão surgindo espaçadamente ao longo dos rizomas, formando tapetes de extensão apreciável. Nos Pirenéus espanhóis ocorre uma terceira saxífraga ibérica muito semelhante a estas duas, a S. umbrosa, e já fora da Península Ibérica, desde a vertente francesa dos Pirenéus até aos Alpes, uma derradeira espécie, a S. cuneifolia, vem completar um quarteto de (quase) sósias.

Em quase toda a extensão da cordilheira cantábrica, a S. hirsuta é a única representante do quarteto, mas no extremo leste ela já se faz acompanhar pela S. umbrosa, e nas Astúrias, a caminho da Galiza, vai dando lugar à S. spathularis. Chegámos a ver as duas espécies nos taludes da mesma estrada, mas não, infelizmente, nos mesmos lugares, perdendo assim a oportunidade de observar possíveis híbridos. A hibridação é quase inevitável quando elas partilham o mesmo espaço: não parecem existir quaisquer barreiras genéticas entre as duas espécies, e os híbridos, ao contrário da norma, são férteis, capazes de se reproduzir por semente. Dito de outro modo, se (como muitas vezes se defende) fosse a interfertilidade a determinar o conceito de espécie, então a S. hirsuta e a S. spathularis seriam a mesma espécie, apesar das evidentes diferenças morfológicas entre elas.

Em teoria, esta promiscuidade pode fazer com que uma das espécies seja inteiramente assimilada pela outra, ou que as duas convirjam para uma forma intermédia. Não há grande receio de isso suceder na Península Ibérica, onde a área de contacto é pequena, mas na Irlanda, onde ambas também ocorrem, o perigo é real. Aí a S. spathularis é dominante e a S. hirsuta é rara, mas todos os núcleos conhecidos da segunda estão bem dentro da área de distribuição da primeira. Um artigo publicado em 2014 (ver aqui) concluiu que, na Irlanda, as populações híbridas já suplantam as de S. hirsuta; e que mesmo as populações tidas como desta espécie raramente são formadas por indivíduos "puros", tendo em média 20% do material genético herdado da S. spathularis.

Noutras paragens, a "extinção por hibridação" é uma ameaçada potenciada pelo aquecimento global, afectando em particular as espécies de alta montanha. O mecanismo é simples: espécies que, devido ao habitat inóspito, permanceram isoladas durante milénios, ganham a companhia de congéneres arrivistas que, com as temperaturas mais amenas, conseguem agora sobreviver em altitudes mais elevadas. Se houver compatibilidade reprodutiva, as segundas, mais versáteis, podem absorver as primeiras, assim se perdendo endemismos de distribuição muito restrita. Este tema foi explorado num artigo de 2015 com um título premonitório: The silent extinction: climate change and the potential hybridization-mediated extinction of endemic high-mountain plants.

01/11/2017

Nobreza figadal



Hepatica nobilis Mill.


Resolvamos juntos o exercício de identificar esta planta que, não ocorrendo em Portugal, é bastante frequente na metade leste da Península Ibérica, tanto em bosques como em taludes rochosos calcários resguardados por alguma sombra. É uma herbácea perene e algo peludinha, de porte rasteiro e flores solitárias (brancas, azuis ou arroxeadas) que nascem entre Março e Maio, quando os carvalhais ou faiais ainda não se cobriram de folhagem e alguma luz penetra até ao solo.

Comecemos por anotar o que é peculiar nas folhas: são basais, coriáceas, glabras mas de margens ciliadas, com as faces manchadas de púrpura, trilobadas e cordiformes na base (como o símbolo do naipe de paus nos baralhos de cartas). A morfologia das flores ajuda-nos a descartar algumas famílias (por exemplo, não se trata de um trevo pois faltam a quilha e o estandarte usuais nas flores das leguminosas). Além do arranjo simples e simétrico das tépalas (cinco ou mais), há inúmeros estames ao centro. O conjunto lembra-nos um tipo de anémona comum no Gerês. Temos, portanto, um palpite quanto à família: Ranunculaceae. É quanto basta para, consultando um guia de plantas (das Astúrias, mas poderia ser do Japão, não fosse o problema da língua), descobrirmos o nome do género (Hepatica, em alusão às manchinhas nas folhas, como as que marcam as faces de alguns doentes do fígado) e da espécie (nobilis, que indica fama, seja ornamental seja terapêutica).

Este género, de que se conhecem umas sete espécies no hemisfério norte (a mais recente é um endemismo chinês), é em algumas Floras incluído em Anemone, recebendo então a Hepatica nobilis a designação Anemone hepatica que Lineu lhe atribuiu. Há, porém, uma diferença relevante a separá-los: na Hepatica não existem folhas caulinares, havendo apenas três brácteas formando uma espécie de cálice na base das flores. Nestas não se vê sinal de néctar, e (diz quem sabe) são as formigas as responsáveis por dispersar as sementes. Estas são verdes quando maduras, e cada um dos numerosos aquénios (veja na 1.ª foto) contém exactamente uma.

24/10/2017

Cárice peluda


Fuirena pubescens (Poir.) Kunth


Porque o deserto não é uma praia esticada até ao infinito, os beduínos preferem envergar grossos capotes em vez de optarem pelo traje sumário dos banhistas. O mesmo princípio leva certas plantas adaptadas à secura extrema (como este cacto) a cobrirem-se de pêlos para se protegerem do sol e minimizarem as perdas de água. Inversamente, as plantas que vivem em ambientes alagados pouca necessidade têm de tal resguardo, esperando nós, por essa razão, que elas sejam glabras ou a caminho disso. Esta ciperácea, amante de charcos como tantas outras da sua família, não parece estar de acordo com tal dedução, embora também não seja dos contra-exemplos mais eloquentes. A parte hirsuta da planta, a que se refere o epíteto pubescens, concentra-se na bainha das folhas, nos pedúnculos e nas inflorescências, enquanto que a parte por vezes submersa, que é a base do caule, fraca pilosidade apresenta.

O nome Fuirena homenageia o médico e botânico dinamarquês Jorgen Fuiren (1581-1628), ainda que esse género, englobando umas 60 espécies, seja predominantemente tropical e do hemisfério sul. Dessa lista, a F. pubescens é a única espécie (tangencialmente) europeia, por surgir na Península Ibéria, Itália e algumas ilhas do Mediterrâneo (Córsega, Sardenha, Baleares, Chipre, etc.), mas de resto tem uma distribuição vastíssima, abrangendo quase toda a África, o Médio Oriente, a Ásia tropical, a Austrália, a Papua Nova Guiné e muitas outras ilhas do Pacífico. Em Portugal aparece sobretudo nos charcos e represas que pontuam as grandes extensões arenosas do Ribatejo e do Alto Alentejo.

Se o habitat não ajuda a diferenciar a F. pubescens de outras espécies semelhantes (Bolboschoenus glaucus e Schoenoplectus lacustris, por exemplo), podemos notar que ela, além de ser peluda como as outras não são, é uma planta de menor envergadura, não ultrapassando, em regra, os 75 cm de altura (o Bolboschoenus atinge facilmente 1 metro de altura, e o Schoenoplectus lacustris mais que duplica essa marca).

18/10/2017

Flores do arco-íris

Hibernar não é, como sabemos, um privilégio dos ursos. Nas montanhas que se cobrem de neve quase todo o ano, são inúmeras as espécies de plantas que, tendo começado por arriscar pouco sendo anuais, evoluíram para formas perenes ou que geram sementes que, como as princesas dos contos de fadas, adormecem por longos períodos sem perder a viabilidade. Adequar-se com prudência a esse habitat extremamente frio, que só permite uma espreitadela ao sol numa fracção mínima do ano, exigiu adaptações minuciosas, e decerto várias tentativas até ao sucesso. No caso do género Androsace, um dos poucos com espécies a viver acima dos 4000 metros, o que notamos hoje é que as rosetas basais de folhas cobertas de penugem da Androsace villosa sem dúvida a beneficiam, pois as almofadinhas de folhas agasalham melhor a base frágil da planta e asseguram estabilidade em fissuras rochosas de taludes inclinados e expostos. E também nos parece que, num habitat com tanta brancura, as flores alvas têm maior chance de sobreviver aos predadores, não deixando de ser avistadas pelos polinizadores graças ao centro da corola mais garrido (como é usual na família Primulaceae). E não diriam igualmente que formar tapetes de flores é um excelente plano para uma planta rasteira com flores minúsculas como estes jasmins-da-rocha?


Androsace villosa L.


Pois sim, acreditamos que estes aspectos morfológicos são adaptações ao ambiente, mas como se confirmam cientificamente estas opiniões? Fomos à procura de artigos científicos neste assunto, e encontrámos publicações de botânicos empenhados em comprovar que as condições climáticas nas montanhas do hemisfério norte ajudaram a moldar a forma e o ciclo de vida que hoje conhecemos em algumas espécies do género Androsace, criando oportunidades valiosas de colonização.

Para testar as inúmeras hipóteses sobre os possíveis mecanismos de pressão selectiva, houve que criar modelos matemáticos que simulassem vários cenários de evolução, a interacção gradual com o habitat e a variação mais ou menos aleatória das condições necessárias à viabilidade das plantas. Juntaram-se-lhes análises genéticas para aferir o grau de diversidade de várias espécies conhecidas neste género (que somam cerca de 110), adaptadas a distintas ecologias, e para quantificar outros sinais filogenéticos com valor estatístico. Em resumo, as conclusões dos cientistas revelam que é bastante provável que, neste caso, haja uma conexão relevante entre a ecologia e a evolução morfológica: quando as espécies ancestrais de Androsace, com regimes anuais, chegaram a zonas mais frias e de maior altitude sem poder retroceder, a forma almofadada da folhagem foi a inovação que lhes conferiu a resistência e a tolerância adequadas ao clima agreste.

As drásticas alterações climáticas que a humanidade está a impor à Terra, combinadas com a reduzida capacidade destas herbáceas de migrar rapidamente para outros nichos, podem levar a que estes ajustes ao clima e ao meio ambiente, que nos parecem tão fantásticos, as condenem afinal a desaparecer depois de milhões de anos de esforço de sobrevivência em regiões montanhosas dispersas, isoladas e antes fragmentadas pela neve. Com elas se apagará um legado notável na história geológica e evolutiva do planeta.

10/10/2017

Malva das ilhas douradas


Lavatera olbia L.


As ilhas douradas são as de Hyères, na Riviera francesa, destino de veraneio para gente abastada, um eterno pôr-do-Sol numa esplanada com palmeiras, brisa tépida, mar rumorejante embalando iates adormecidos. Foi lá, dois séculos antes de o turismo ser inventado, que esta Lavatera olbia ganhou o nome que hoje ostenta. Olbia era o nome grego da cidade de Hyères, e nestas coisas da taxonomia botânica já Lineu dava o exemplo ao preferir um nome obsoleto, numa língua morta, à designação vernácula. O que neste caso pode dar confusão, pois existe na Sardenha uma cidade que ainda hoje se chama Olbia, mantendo esse nome desde os primórdios da civilização helénica.

O postal turístico do Mediterrâneo exclui a chuva. Talvez a água que corre das torneiras e enche piscinas não venha do céu, mas de mananciais subterrâneos inesgotáveis, que não têm necessidade do mau tempo (como chamam os jornalistas aos dias de chuva) para serem recarregados. É com surpresa que aprendemos que esta Lavatera olbia, mediterrânica de baptismo, gosta de sítios com alguma humidade ou mesmo encharcados, como sejam as margens de pequenos rios ou ribeiras. Haverá tal coisa nas ilhas de Hyères, a maior delas com 7 Km de comprimento? Talvez a proximidade da água doce não seja, para esta malva, um requisito essencial. Lembramo-nos de a ver, há meia dúzia de anos, junto à ribeira da Fórnea, na serra dos Candeeiros. Nessa altura, como quase sempre, nenhuma água corria no leito pedregoso, mas a memória do efémero caudal de Inverno era suficiente para atrair umas tantas plantas higrófilas. O segundo encontro, em Alcobaça, aconteceu num mês de Maio chuvoso, com ribeiras extravasando dos leitos e inundando caminhos, e já não pudemos duvidar da predilecção deste arbusto pela água.

Arbusto muito ramificado, capaz de atingir dois metros e meio de altura, com flores de 5 a 7 cm de diâmetro, a Lavatera olbia, que se dá melhor em substratos calcários ou argilosos, ocorre na metade oeste da bacia mediterrânica, tanto no norte de África (Árgélia, Marrocos, Tunísia, Líbia) como na Europa (Itália, França, Espanha e Portugal). No nosso país está assinalada na Beira Litoral, Estremadura, Alentejo e Algarve. Pode confundir-se com a L. arborea, que no entanto é de menor porte, menos ramificada, apresenta flores com uma coloração diferente (as pétalas têm uma mancha escura, quase negra, na base), e prefere (embora não exclusivamente) areias litorais.

03/10/2017

Os ursos chamam-lhe um figo

Esta é época propícia ao fabrico de alguns licores e aguardentes, um expediente para aproveitar frutos demasiado maduros ou que não são suficientemente doces para outro tipo de consumo. Por exemplo, a safra do medronho (Arbutus unedo) não tardará a começar para que as bagas de casca rugosa e cor-de-fogo não se percam desfeitas no chão. O amadurecimento dos frutos, começados a produzir há um ano, decorre em paralelo com a floração do ano corrente, e por isso recolhê-los é tarefa que exige cuidados. Em poucos meses haverá nova aguardente de medronho, feita com mais paciência do que esforço. Na Península Ibérica só ocorre esta espécie de Arbutus, mas outrora em Espanha já houve outras duas: Arbutus alpina L., cujo fruto parece um apetitoso araçá negro, e Arbutus uva-ursi L., com bagas vermelhas muito vistosas e comestíveis, mas igualmente pouco saborosas em cru. Apesar das semelhanças com o medronho, estas duas espécies foram mudadas em 1825 para o género Arctostaphylos, mantendo-se os epítetos específicos. Ambas parecem apreciar solos calcários de montanha, e foi nesse tipo de habitat na Cantábria que vimos os exemplares das fotos.


Arctostaphylos uva-ursi (L.) Spreng.



Os arbustos de A. uva-ursi são de porte rasteiro e têm folhas persistentes, de textura coriácea, que se arranjam em hélice ao longo do caule. As flores nascem na Primavera em cachos de delicadas campainhas com os bordos revirados, um formato típico na família das ericáceas.

As referências sobre nomes botânicos que consultámos indicam que a designação genérica arctostaphylos significa literalmente cacho de uvas (staphyle) de urso (arktos). O epíteto uva-ursi diz exactamente o mesmo, mas em latim. Peculiaridades de um tempo em que o latim (com uns pozinhos de grego) era a língua culta obrigatória para quem queria comunicar em ciência, como é hoje o inglês.