27/03/2020

Margarida do rio seco

Andar num vale seco e silencioso onde antes fluiu um rio causa alguma estranheza. O chão, de rocha bem polida, é ondulado, e o percurso ao longo do barranco encaixado é sinuoso, alimentando a cada dúzia de passadas a euforia, ou o receio, da surpresa ao virar da esquina. A impressão inicial é a de estarmos num lugar hostil que, por constantemente nos recordar o caudal de outrora, tem um carácter indeciso, como se a qualquer momento a água pudesse voltar a jorrar, submergindo-nos. Mas basta olhar para as paredes do barranco para se ter a certeza de que esse não é risco que corramos: são inúmeras as plantas que exigem solo enxuto que, uma vez desaparecido o rio, ousaram colonizar esses taludes, e nos vão tranquilizando com a sua presença.

Visitámos o Barranco del Agua, em Anaga, numa tarde quente com céu encoberto. No início da caminhada uns magros pingos de chuva salpicaram-nos, prometendo uma frescura que afinal não se concretizou. Mas na vertente sombreada do barranco notava-se o efeito dessa rara humidade, pois empoleirados em patamares onde o sol não incide e a temperatura é mais amena notavam-se uns poucos exemplares de Ranunculus cortusifolius em flor, o mesmo que encontramos abundantemente nas ilhas chuvosas dos Açores. Algures a meio do passeio vimos esta margarida de folhas carnudas e um verde inesperado num local tão árido, com grandes capítulos dispostos em corimbo.


Gonospermum revolutum (C. Sm.) Sch. Bip.



O género Gonospermum é endémico das Canárias e é quase verdade que a cada ilha coube a sua espécie, diferindo sobretudo no tamanho das inflorescências e na maior ou menor segmentação das folhas. O Gonospermum canariense é endémico das ilhas ocidentais do arquipélago (El Hierro e La Palma) e é um arbusto que pode ultrapassar 2 metros de altura; do G. ferulaceum, famoso pelos corimbos densos de flores, há registo apenas na Gran Canaria; o G. fruticosum, conhecido como corona de la reina, é a espécie mais frequente (dispersão talvez ajudada pela jardinagem), e pode ver-se em Tenerife, La Gomera, El Hierro e La Palma. Temos ainda o G. gomerae, endemismo de La Gomera, e o G. revolutum, com inflorescências menos densas, que só existe no norte de Tenerife, desde Roque Bermejo até Punta del Hidalgo.

O G. revolutum já se chamou Lugoa revoluta mas, depois de alguma controvérsia e estudos de genética molecular, o género Gonospermum passou a abrigar, desde 2001, algumas espécies antes incluídas em Lugoa e Tanacetum. Trata-se de uma herbácea perene, de base lenhosa, com cerca de meio metro de altura e cujas folhas, dispostas em vistosa roseta basal e ao longo da haste floral, exibem margens curvadas para a face inferior. É uma espécie legalmente protegida, classificada como vulnerável na lista vermelha da flora vascular espanhola.

20/03/2020

Vulnerária brigantina



Anthyllis vulneraria subsp. sampaioana (Rothm.) Vasc.



Do centro de Bragança à aldeia de Alimonde são 12 quilómetros por uma estrada com curvas moderadas que, contornando a vertente norte da serra da Nogueira, nos permite um vislumbre de alguns bonitos carvalhais de Quercus pyrenaica. Ainda mal saímos da cidade, já uma placa na estrada nos convida a exprimir, algo prematuramente, o nosso deleite com a paisagem observada: Gostei, proclama a tabuleta. Embora evitando a estridência das maiúsculas e do ponto de exclamação, quem colocou a tabuleta teve a arrogância de dar voz ao que presume serem os nossos sentimentos. Ou afinal não é bem assim, pois várias fontes asseguram que o Gostei da placa é mesmo o nome de uma povoação. Comemorará tão singular topónimo algum remoto visitante ilustre que, no final da estadia, terá proclamado, qual César em tempos de paz, vim, vi e gostei?

Deixemos o mistério para ser deslindado por algum historiador local em opúsculo editado pela junta de freguesia, e avancemos até Alimonde. No início de Junho já a Primavera vai dando sinais de cansaço, mas nos taludes florescem ainda algumas orquídeas tardias. Em vários pontos, o amarelo sulfuroso do Alyssum serpyllifolium denuncia a presença de rochas ultrabásicas. Já perto de Alimonde, em local onde os desbastes frequentes depauperaram a vegetação arbustiva, um amarelo mais vivo cobre centenas de metros quadrados de uma ladeira, penetrando no interior de um pinhal. Trata-se da versão para substratos ultrabásicos da vulnerária (Anthyllis vulneraria), uma leguminosa rasteira, com folhas pinadas e flores de cálices insuflados agrupadas em glomérulos terminais, que encontramos, sob múltiplos disfarces, em ecologias muito diversas, incluindo terrenos calcários, rochas costeiras e dunas.

Um olho não treinado em subtilezas botânicas satisfaz-se com esta diferença óbvia: no nosso país, a vulnerária brigantina é a única com flores amarelas; as outras (as das praias do noroeste ou as dos calcários do centro, por exemplo) têm-nas geralmente vermelhas ou rosadas, havendo ainda, em Trás-os-Montes, uma vulnerária anual de aspecto débil, A. vulneraria subsp. lusitanica, que dá, frequentemente, flores de cor creme. Por essa Europa fora, contudo, ou mesmo apenas na Península Ibérica, a cor das flores é fraco critério para distinguir as dezenas de subespécies de A. vulneraria. A subespécie nominal, que não ocorre nos países ibéricos mas é a mais abundante nas zonas costeiras dos países do norte da Europa, dá normalmente flores amarelas (veja-se esta foto tirada na Cornualha, em Inglaterra). Nos Pirenéus há plantas de flores amarelas que são diferentes das de Bragança, embora as opiniões a esse respeito sejam desencontradas. E ao longo da Cordilheira Cantábrica, em substratos calcários, encontra-se a subsp. alpestris, igualmente de flores amarelas.

Como se explica tal variabilidade dentro de uma só espécie? Sabe-se que a Anthyllis vulneraria tem uma forte tendência para a autogamia. Com isso, as diversas populações ficam reprodutivamente isoladas, acabando por desenvolver peculiaridades morfológicas que podem justificar algum reconhecimento taxonómico. Nem todos os autores valorizam por igual essas variações: as subespécies reconhecidas por uns podem não o ser por outros, e o âmbito geográfico de certa subespécie pode ser mais ou menos amplo de acordo com a interpretação que dela se faz. O exemplo da A. vulneraria subsp. sampaioana é esclarecedor: para alguns, trata-se de um endemismo das rochas ultrabásicas do nordeste português; para o revisor do género na Flora Iberica, exactamente a mesma subespécie ocorre nos Pirenéus e nos Alpes.

13/03/2020

Uma espécie de justiça

Na obra Species Plantarum (1753), de Lineu, pode ler-se na página 15 a primeira descrição da Justicia hyssopifolia, endemismo das ilhas de Tenerife e La Gomera. O texto, em latim como era obrigatório e é ainda hoje recomendado (embora se permita o inglês), informa que se trata de uma espécie com folhas linear-lanceoladas e flores bilabiadas axilares, solitárias e de cor esbranquiçada — contrastando com a maioria das espécies de Justicia, que se prezam pelas flores garridas em arranjos muito vistosos. Quanto ao habitat, fica precisamente in insulis Fortunatis, designação feliz e realmente apropriada para as ilhas Canárias.


Justicia hyssopifolia L.


Ironicamente, foi no Barranco do Inferno, em Tenerife, que vimos estes exemplares de Justicia hyssopifolia. A visita a este barranco, com muitas rochas em tons claros a encandear os passeantes incautos sem óculos escuros, e um micro-clima escaldante e quase desértico, é paga. Cada visitante recebe então um mapa com a duração máxima permitida em cada troço do percurso e um capacete devidamente desinfectado que deverá usar para se proteger de possíveis derrocadas de pedras. A duração da visita é controlada por olheiros que, ao longo do barranco, evitam que os visitantes saiam dos trilhos, colham plantas e flores ou façam demasiado ruído, se concentrem, estragando, em locais de maior biodiversidade, ou nadem nas piscinas na base da cachoeira que é servida como troféu no fim do passeio — magrinha mas muito apreciada dada a sua raridade nesta ilha sem rios. Com a demora para observar as inúmeras plantas em detalhe, e o respeito devido pela fotografia perfeita, ultrapassámos em muito o tempo recomendado de permanência no barranco. Valeu-nos um grupo grande de alemães idosos cujo avanço no caminho foi frequentemente nulo ou mesmo negativo, e que devolveram os capacetes muito depois de nós.

Justicia é dos géneros mais populosos da família Acanthaceae, com cerca de 900 espécies conhecidas. Crê-se que tenha origem nas regiões de clima quente temperado, alimentando na América, África e Índia várias espécies de borboletas (como a Anartia fatima). Apesar de tão disseminada, e de o arquipélago da Madeira estar próximo, não há registo de endemismos conhecidos da família Acanthaceae nessas ilhas.

06/03/2020

Salada de estrelas

São duas as estrelas, ambas de Lanzarote, que hoje disputam a nossa atenção. A referência aos corpos celestes não está apenas em Asteriscus, nome do género a que as plantas pertencem e que significa pequena estrela, mas também na própria família, Asteraceae, em que elas estão filiadas. É curioso assinalar que as estrelas não seriam para aqui chamadas se há dez ou vinte anos falássemos das mesmas plantas: em vez de Asteriscus, elas integravam então o género Nauplius; e a família Asteraceae era designada por Compositae. Dessas mudanças, a segunda reflecte apenas uma actualização da nomenclatura, em obediência à regra de que o nome de cada família botânica deve derivar do género que a tipifica e não de alguma característica morfológica das plantas da família (assim, tal como Compositae passou a Asteraceae, que vem de Aster, também Leguminosae passou a Fabaceae, que vem de Faba, e Palmae passou a Arecaceae, que vem de Areca). Quanto à substituição de Nauplius por Asteriscus, isso não corresponde a uma mudança de género, mas sim a uma absorção de um género por outro. Entendeu-se que não havia diferença relevante entre Nauplius e Asteriscus, passando os dois géneros a ser um só; e, para o género resultante da unificação, as regras da nomenclatura botânica impuseram o uso do nome mais antigo, que é Asteriscus. Ao mesmo tempo que era reforçado com novas aquisições, o género Asteriscus via-se despojado de algumas das suas espécies emblemáticas, entre elas uma das plantas mais bonitas da Costa Vicentina, que mudou de Asteriscus maritimus para Pallenis maritima. O resultado da dança de nomes é que nove das dez espécies actuais de Asteriscus eram antes Nauplius. E quatro delas são endémicas (ou quase endémicas) das ilhas Canárias.


Asteriscus intermedius (DC.) Pit. & Proust [= Nauplius intermedius (DC.) Webb]


À excepção de uma herbácea anual (A. aquaticus), os Asteriscus são plantas de caules lenhosos que formam pequenos e intrincados arbustos, com folhas sésseis, mais ou menos espatuladas, dispostas em espiral. As brácteas involucrais são longas e verdes, semelhantes às folhas, e os capítulos de centro amarelo exibem numerosas lígulas também amarelas – brancas apenas no caso do A. schultzii.

O Asteriscus intermedius (em cima) é muito frequente em Lanzarote, e é provável que seja endémico dessa ilha, sendo dúbia a sua presença em Fuerteventura. Tem uma atraente folhagem acetinada e floresce mais intensamente entre Janeiro e Junho. Os seus abundantes capítulos amarelos têm de 2,5 a 3,5 cm de diâmetro. Em Fuerteventura existe uma espécie endémica semelhante, A. sericeus, de capítulos maiores e folhas mais largas.

O Asteriscus schultzii (em baixo) compensa o porte rasteiro pela beleza da floração. Tem uma distribuição mais ampla do que o seu congénere – ocorre em Lanzarote, Fuerteventura e no sudoeste de Marrocos – mas é raro e com populações muito esparsas, e à escassez populacional junta-se a ameaça da colheita para fins ornamentais. Em Lanzarote está apenas presente na zona de Famara, tanto sobre areias como entre os matos ralos que revestem a base das falésias.


Asteriscus schultzii (Bolle) Pit. & Proust [= Nauplius schultzii (Bolle) Wiklund]

01/03/2020

Namorando a avenca



Vista de cima, a ilha Gran Canaria parece uma concha redonda largada no oceano, com um pico vulcânico (las Nieves) com cerca de 2000 metros de altura situado mais ou menos ao centro. Dada a proximidade da costa norte de África (a apenas 150 quilómetros), não surpreende que seja mais verde a norte; a sul, há uma extensão impressionante de dunas (de Maspalomas) que lembram as do deserto do Sahara. Como as outras ilhas do arquipélago, esta é uma terra de barrancos pedregosos, quentes e secos, onde decerto noutras eras correram rios fartos. A Gran Canaria é, porém, uma das ilhas das Canárias com mais espaços naturais protegidos e um maior número de reservas ambientais classificadas pela biodiversidade que ainda conservam. E a lista de endemismos desta ilha é invejável, incluindo vários géneros que não ocorrem nas demais ilhas, como o desta planta que encontrámos, acompanhada por avenca, numa escarpa ressumante na Degollada de Tasartico, no sudoeste da ilha.


Camptoloma canariense & Adiantum capillus-veneris


Camptoloma canariense (Webb & Berthel.) Hilliard [= Sutera canariensis Sunding & G. Kunkel]


Do género Camptoloma, conhecem-se apenas duas espécies além da da Gran Canaria, uma de África e outra com uma região de distribuição mais a leste. Mas este género está ainda em arrumação, e até o nome actualmente aceite para a espécie canariense é recente, de 1991. Estas são plantas de folhagem quebradiça e muito penugenta, de base algo lenhosa, cujas folhas ovadas com margens crenadas formam tapetes, como acontece com alguns fetos em taludes húmidos. A floração da Camptoloma da Gran Canaria decorre oficialmente entre Setembro e Novembro mas, por sorte, havia ainda algumas flores para vermos em Dezembro. São solitárias e de pé longo, com corola tubular enfeitada por uma venação violeta que encontramos com frequência nos géneros Linaria e Antirrhinum, antes incluídos na mesma família Scrophulariaceae.

O nome Camptoloma, proposto pelo botânico inglês George Bentham em 1846, talvez aluda ao bordo (loma) curvado (kamptos) das flores. Como se faltassem nomes para distinguir os inúmeros seres do planeta, é também, desde 1874, a designação dada a um género de lindas traças de asas tigradas.