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05/09/2025

Barranco Michelin



Usufruir de espaços naturais obriga-nos amiúde a usar caminhos que atravessam propriedades privadas. Isso não é problema de maior no norte e centro de Portugal ou nas ilhas, desde que evitemos causar estragos e fechemos todos os portões que tivermos de abrir, não vá algum gado escapar-se para onde não deve. Mas no sul do país, e em especial no Alentejo, a situação é bem diferente, parecendo às vezes que a única natureza que aí sobra para fruição pública é a faixa de poucos metros de largura encaixada entre o asfalto das estradas e as omnipresentes cercas de arame farpado; portões fechados à chave ou a cadeado são reforçados por avisos ameaçadores contra o acesso de intrusos. No sul de Espanha e nas Baleares o cenário é semelhante, com a novidade de a maioria dos espaços que poderíamos querer visitar estarem convertidos em cotos privados de caza: se pagássemos uma quota anual acederíamos a eles sem problemas, devidamente equipados com espingarda ao ombro para nos defendermos dos ataques de coelhos, perdizes e outros bichos ferozes.

No Parque Natural do Cabo de Gata-Níjar, em Almeria, e como é regra em qualquer espaço natural protegido europeu, existem vários percursos pedestres marcados, assim como lugares de acesso condicionado por razões de conservação da natureza. Inédito é que, com o aparente beneplácito das autoridades, uma empresa privada (a Michelin) se arrogue o direito de cortar, desde 2022, com vedação de arame e portão, o caminho público de acesso a uma das zonas mais cénicas do parque: a do Valle Perdido e do Barranco del Sabinar. A Michelin detém um centro de ensaios de pneus com vários quilómetros quadrados que confina com o limite norte do parque e é delimitado por altíssima cerca. O caminho agora vedado situa-se no exterior dessa cerca, em terrenos que integram o parque. É como se o Barranco del Sabinar tivesse sido instituído como zona de protecção total de acesso interdito, tendo as autoridades do parque, em vez de assumirem uma decisão que talvez se justificasse, delegado na dita empresa, ao abrigo de um espúrio respeito pela propriedade privada, a execução dessa impopular medida.

Lavatera maritima Gouan


Como o Barranco del Sabinar, tanto quanto sabemos, não foi rebaptizado Barranco Michelin e ainda faz parte do Parque Natural do Cabo de Gata-Níjar, considerámos que a Michelin não tinha o direito de nos barrar o caminho e desrespeitámos a proibição de passagem. É possível rodear a vedação se nos desviarmos umas centenas de metros, mas gente esguia como nós consegue rastejar debaixo do portão. Entre a vegetação que vimos no caminho destacavam-se extensos matos de palmeira-anã (Chamaerops humilis), a surpreendente presença de uma escorcioneira (Scorzonera angustifolia) que costumamos encontrar em Trás-os-Montes, muita canafrecha (Ferula communis) erguendo ao alto, como fogo-preso, as suas bolas de flores amarelas, e uma encosta forrada de alto a baixo com Lavatera maritima (fotos acima), planta vulgar na metade oeste da bacia mediterrânica mas que em Portugal, por só existir na serra da Arrábida, integra a Lista Vermelha da Flora. Havia ainda grandes contingentes de duas espécie de limónio que se misturavam no maior dos impudores, e que ilustramos nas fotos em baixo: o de flores roxas (Limonium sinuatum) é o mais cultivado do seu género para fins ornamentais; o de flores brancas (Limonium lobulatum), menos afamado mas não menos elegante, tem folhagem e porte parecidos, mas distingue-se pelas hastes mais largamente aladas.

Limonium sinuatum (L.) Mill.



Limonium lobatum (L. f.) Chaz.


A maior recompensa botânica do passeio aguardava-nos justamente no barranco do Sabinar: um minúsculo malmequer de flores brancas, de não mais que 5 cm de altura, folhas lobadas semi-carnudas, e hastes simples rematadas por capítulos solitários, cobria uns poucos metros quadrados de terreno. Não tivemos dúvidas de que era esse o nosso primeiro encontro, e quem sabe o último, com tão delicada formosura. Tratava-se, soubemos depois, do Mauranthemum decipiens, planta anual que só existe no norte de África (Marrocos e Argélia) e no sudeste de Espanha — e que, a julgar pelo escasso número de avistamentos (não consta de dois portais bastante completos sobre a flora europeia e mediterrânica, Photoflora e Flora silvestre del Mediterráneo), é franca­mente rara. O género Mauranthemum, aparentado com Leucanthemum mas em escala miniatural, reúne quatro espécies distribuídas pela Península Ibérica e pelo norte de África, apenas duas delas (M. decipiens e M. paludosus) ocorrendo em Espanha. Segundo a chave do género na Flora Iberica, as folhas bipinatissectas que se observam numa das fotos em baixo provam inequivocamente que o que vimos foi mesmo Mauranthemum decipiens.

Mauranthemum decipiens (Pomel) Vogt & Oberpr.

05/08/2025

Barranco de la Garrofa, 2.ª parte



A jusante do viaduto da auto-estrada e de uma outra ponte que vista de perto revela ser um aqueduto (sem água), prosseguimos a exploração botânica das margens do rio de areia. Estamos no barranco de La Garrofa, província de Almeria, a uns 700 metros da linha de costa. É Abril, as temperaturas têm estado amenas, choveu na véspera e voltará a chover nos próximos dias; as plantas aproveitam para cumprir o seu ciclo de vida antes de se recolherem para suportar o estio, que nestas paragens começa cedo. As que hoje mostramos estão bem equipadas para sobreviver às altas temperaturas, seja pela hibernação (perdendo a parte aérea na estação desfavorável), seja sob a forma de sementes (por serem plantas anuais). Todas elas, afinal, têm populações de ambos os lados do Mediterrâneo: é como se fossem plantas africanas que, na Europa, apenas admitam viver no sul da Península Ibérica.

Teucrium pseudochamaepitys L.


Este elegante têucrio de aspecto felpudo, de seu nome Teucrium pseudochamaepytis, tem das flores mais vistosas do seu género. Com folhas peludas e distintamente trifoliadas, é uma planta de porte modesto que, apesar das hastes florais erectas, não vai além dos 40 cm de altura. Vive em lugares pedregosos áridos sobre substratos básicos, e é frequente no Algarve.

Allium subvillosum Salzm. ex Schult. & Schult. f.
Alhos há muitos, e a distinção entre eles nem sempre se faz à vista desarmada. O Allium subvillosum é outra especialidade ibero-norte-africana que em Portugal está confinado ao Algarve. Além de morar em barrancos pedregosos, também é habitual encontrá-lo em dunas. Não fossem a sua distribuição e ecologia, poderia a um olhar mais distraído confundir-se com outros alhos de flor branca como o A. neapolitanum e o A. massaessylum. Ajuda notar que essas espécies têm folhas glabras e que o Allium subvillosum, em obediência ao epíteto específico, as tem com margens ciliadas. Há um outro alho branco, A. subhirsutum, com uma distribuição mediterrânica mais ampla mas não presente em Portugal, que visualmente é quase indistinguível do A. subvillosum. Para uma distinção segura, recomenda a Flora Iberica que analisemos a túnica que reveste o bolbo, o que obviamente não pode ser feito sem que o desenterremos. Sacrificar uma planta por motivo tão fútil é prática que não podemos recomendar.

Silene secundiflora Otth


As duas últimas convidadas de hoje nunca foram vistas no reino de Portugal e dos Algarves, e quem quiser encontrá-las tem mesmo de ir a Espanha ou a Marrocos. A Silene secundiflora é uma planta anual, rasteira, de folhas basais espatuladas. As flores de pétalas rosadas e bífidas seguem o figurino habitual no género Silene, pelo que a planta é mais fácil de reconhecer quando já frutificada, com os cálices insuflados em forma de balão, de cor leitosa, com listas de um castanho avermelhado. Também a vimos nas Baleares, em Menorca, igualmente sobre calcários mas num habitat mais fresco.

Senecio malacitanus Huter


Por último, temos um Senecio ou erva-loira que faz lembrar, de modo alarmante, o sul-africano Senecio inaequidens. Esse potencial invasor chegou ao litoral minhoto no início deste século e, desde então, tendo-se embora expandido consideravelmente pelo nosso território, ficou algo aquém das previsões mais pessimistas; disseminado também por várias províncias espanholas, ainda não parece ter sido avistado em Almeria. No portal iNaturalist, diversas observações no sul de Espanha de um alegado S. inaequidens (por exemplo, esta e esta) referem-se de facto ao Senecio malacitanus, nosso convidado de hoje, que é endémico do sul de Espanha e do norte de África (Argélia e Marrocos). A distinção entre as duas espécies nem sequer é problemática: como se pode observar nesta foto, as folhas do S. inaequidens são auriculadas na base (têm dois apêndices laterais bem desenvolvidos que abraçam o caule), e esse carácter, como se comprova na última foto acima, está ausente no S. malacitanus. Além do mais, as folhas do S. malacitanus são mais estreitas e têm margens claramente revolutas. Desfeita a confusão, fica no entanto a perplexidade por duas espécies morfologicamente tão afins terem origens geográficas tão distantes.

28/07/2025

Por um punhado de plantas



Acontece-nos, por vezes, não descobrir os termos precisos para descrever uma paisagem. Veja-se o exemplo do deserto de Tabernas que, apesar de ser uma região muito seca, não tem apenas vegetação xerófila rudimentar, como deveria para honestamente poder chamar-se deserto. É-nos permitido, contudo, apelar a meias-palavras: semi-deserto de Tabernas, querendo de facto dizer quase-deserto. O que me faz lembrar um fim de tarde, com a minha irmã a chegar a casa de um longo dia de escola no ensino básico, trazendo na mochila a avaliação de uma ficha de História: Mau+. Indiferente à aflição geral com tal desaire, a questão que então a minha irmã quis ver definitivamente esclarecida foi a do papel do sufixo: Mau+ é melhor ou pior do que Mau? Pois neste deserto-que-ainda-não-o-é, a biodiversidade é notável, com muitas espécies que se adaptaram à aridez, ao solo pobre, arenoso ou margoso, e ao ambiente quente e salino. Quem sabe, talvez essa vegetação exuberante impeça a tempo que o meio-deserto se torne num por inteiro. Não é, por isso, claro se o prefixo semi prevê o futuro ou se narra o passado deste habitat.

Euzomodendron bourgaeanum Coss.


O saramago das fotos é um dos melhores exemplos de vegetação xerófila adaptada a este quase-deserto. Trata-se de um endemismo de Almería, que já foi mais abundante. A semelhança entre esta aridez e a dos desertos da América do Norte (embora aqui não existam cactos) levou à construção, entre 1950 e 1980, de cenários para filmes de faroeste e afins, o que dizimou inúmeros exemplares desta espécie. Por um punhado de dólares, com Clint Eastwood; Era uma vez no oeste, com Henry Fonda e Claudia Cardinale; Lawrence da Arábia, com Peter O'Toole; Cleópatra, com Elizabeth Taylor, e Indiana Jones e a Última Cruzada, com Harrison Ford e Sean Connery, são alguns dos culpados.

Notem como a morfologia das flores é parecida com as das espécies do género Coincya que conhecemos por cá. O Euzomodendron, porém, é arbustivo, lenhoso e perene, muito ramificado, com folhas carnudas onde se espetam pêlos espinhosos, e longas raízes que lhe permitem sobreviver em habitat extremamente seco. Pode atingir 1 m de altura e floresce no fim do Inverno. No Verão, as plantas perdem quase todas as folhas e reduzem-se a troncos ressequidos. Euzomodendron é um género monoespecífico e, dizem, uma relíquia do Jurássico. O epíteto bourgeanum homenageia o naturalista francês Eugène Bourgeau (1813-1877), que colheu amostras desta planta numa viagem à província de Almería em 1851.

Senecio flavus (Decne.) Sch. Bip.


Esta asterácea é outro indício de que não estamos num deserto de dicionário, feito apenas de areia, vento e dunas. Depois de calcorrear taludes e montes, eis-nos chegados ao vale de um rio, com vestígios de ter aqui corrido água há poucas semanas. E é no bordo, a refrescar-se no lodo arenoso, que esta herbácea anual, com não mais de 30 cm de altura mas bastante ramificada, se dá bem. Sobressairia o tom de amarelo intenso das inflorescências caso elas abrissem mais, e é precisamente a essa tonalidade que o epíteto específico flavus alude. As folhas são carnudas, de cor púrpura na face inferior, tendo as mais baixas um pecíolo longo enquanto as superiores abraçam o caule — o que faz com que as folhas pareçam abanicos. As populações europeias desta espécie estão em Espanha, havendo registos da sua ocorrência em Murcia e Almería e em algumas das ilhas Canárias.

Limonium echioides (L.) Mill.


Em local próximo, ainda no fundo arenoso-argiloso do rio, havia inúmeros exemplares de deste Limonium, planta anual da bacia do Mediterrâneo que em Portugal continental ocorre, embora seja rara, entre o cabo Espichel e o Barlavento Algarvio. Era Abril, e pudemos finalmente ver-lhe as flores.

Astragalus alopecuroides subsp. grosii (Pau) Fern.


Florindo também entre Março e Abril, este Astragalus perene, robusto e peludinho, de enormes flores amarelas, foi outra agradável surpresa do já-nada-convincente-deserto de Tabernas. Aprecia matos ralos sobre substrato calcário. É mais um endemismo do sudeste da Península Ibérica, onde o género Astragalus abriga mais de 40 espécies.