27/06/2023

Açoriano tropical

Grammitis azorica (H. Schaef.) H. Schaef. [fotografada na Terceira]


Entre 1998 e 2001, o botânico Hanno Schaefer levou a cabo, no Faial, nas Flores e em Santa Maria, um exaustivo trabalho de campo que lhe permitiu o mapeamento praticamente completo da vegetação vascular dessas ilhas. Entre as novidades então aportadas à flora açoriana sobressaem o trovisco-macho de Santa Maria e, no extremo oposto da escala de tamanhos, um feto epífito diminuto, de poucos centímetros de comprimento, morador dos hiper-húmidos bosques de juníperos com turfeira que preenchem as cotas elevadas da ilha das Flores. Ainda que estreitamente aparentado com Grammitis marginella, feto tropical cuja área de distribuição abrange Jamaica, Costa Rica e partes do Brasil, o feto descoberto nas Flores singulariza-se pela menor pubescência das folhas, pela presença de pêlos glandulosos ao longo das margens, e pelas frondes de menor tamanho e de ápice obtuso. Estas características diferenciadoras bastaram para que o novo feto fosse oficialmente reconhecido como endémico do arquipélago, primeiro como subespécie de Grammitis marginella, mais tarde como espécie autónoma sob o nome de Grammitis azorica. Embora houvesse suspeitas da sua ocorrência noutras ilhas, até 2013 só havia a certeza da sua presença nas Flores. Nesse ano, Rui Bento Elias e Fernando Pereira encontraram dois exemplares na Terceira, ambos epífitos de Juniperus brefivolia mas em dois lugares afastados; e em 2021 os mesmos botânicos da Universidade dos Açores descobriram no Pico dois exemplares de G. azorica, também em lugares distintos. Assim, apesar de haver apenas quatro exemplares adicionais a atestá-lo, sabe-se hoje que a G. azorica vive em pelo menos três ilhas dos Açores: Flores, Terceira e Pico — as mesmas onde está assinalado o único outro feto da família Grammitidaceae na flora açoriana, Ceradenia jungermanioides (foto em baixo).

Estes dois fetos açorianos de ascendência caribenha são fáceis de distinguir mesmo a olho nu: a Ceradenia jungermanioides tem as frondes mais estreitas, compridas e hirsutas, enquanto que as da Grammitis azorica apresentam margens conspicuamente debruadas a negro. Esse é aliás um carácter distintivo do género Grammitis, que já abrangeu centenas de espécies mas foi em anos recentes drasticamente reduzido, cifrando-se em pouco mais de 20 espécies: a maioria das que se mantiveram exibe folhas com margens sublinhadas a traço preto, como se vê nestes exemplos.

As latitudes a que estão situadas as ilhas, e as temperaturas moderadas que nelas se sentem, não autorizam que se chame tropical à floresta húmida açoriana. No entanto, a humidade exacerbada, a abundância de epífitos (não só fetos e musgos, mas também plantas com flor), o solo encharcado e movediço, a profusão de grandes fetos no sub-bosque — tudo isso cria uma ambiência que talvez só encontre paralelo nas florestas tropicais do Novo Mundo. Não será apenas a menor distância para o continente americano a explicar que estes fetos da familia Grammitidaceae tenham colonizado os Açores mas não a Madeira nem as Canárias. É que são muito poucas as afinidades entre a laurissilva da Madeira (e das Canárias) e a floresta endémica dos Açores — à qual, e também pela circunstância de a árvore dominante ser uma conífera, é por isso inapropriado chamar laurissilva, como muitos autores fazem.

Na 3.ª edição (de 2021) do seu livro Flora of the Azores — A Field Guide, H. Schaefer diz da Grammitis azorica ser provável que ela venha a extinguir-se nos próximos anos. Os escassíssimos exemplares que têm sido encontrados reforçam a ideia de que a planta tem grande dificuldade em reproduzir-se, e é também sabido que o desenvolvimento de um único indivíduo maduro, com produção regular de frondes, é um processo que demora anos, e que só pode desenrolar-se em habitats isentos de perturbações. No artigo de 2001 em que reportava a descoberta da planta nas Flores, Schaefer informava ter apenas encontrado 22 exemplares em toda a ilha. É provável que a maioria deles já não exista: à acção dos colectores sem escrúpulos, que nunca hesitam em colher os últimos exemplares de uma espécie ameaçada (sobretudo em locais onde a fiscalização é inexistente ou ineficaz), junta-se a destruição e degradação dos habitats provocadas pela abertura e alargamento de estradas nas zonas ambientalmente mais valiosas da ilha.

Pela sua inacessibilidade e por se situarem em zonas protegidas, os lugares do Pico e da Terceira onde a espécie foi descoberta têm ficado a salvo de agressões, e não há razões para supor que a alta qualidade desses habitats esteja ameaçada. Há assim uma esperança razoável de que a Grammitis azorica sobreviva nessas ilhas, mesmo quando já tiver desaparecido das Flores.

Ceradenia jungermanioides (Klotzsch) Bishop [fotografada no Pico]

20/06/2023

Oliveirinha de bagas vermelhas

Tournefort, o botânico francês a quem se atribui o mérito de uma definição rigorosa de género para as plantas, chamou-lhe Chamaelea — que é como quem diz de pequeno porte. Anos depois, Lineu mudou-lhe o nome para Cneorum tricoccon. Sem dar explicações sobre esta decisão (pelo menos não se conhece registo de nenhuma, diz a Flora Ibérica), é plausível que Lineu tenha notado que estas plantas podem afinal atingir 1,8 metros de altura (digamos, o tamanho de uma pessoa alta), e que entendesse ser mais relevante que a designação aludisse a dois outros pormenores da morfologia nesta espécie: a parecença da folhagem com a da oliveira (daí o Cneorum) e o facto de os frutos se agruparem em três lóculos, cada um com uma ou duas sementes (tri + coccon, claro). Nome algo enganador, porém, já que esta espécie pertence à família Rutaceae, a mesma das laranjeiras e dos limoeiros.

Cneorum tricoccon L.


Originária da região mediterrânica, é frequente nas ilhas Baleares, em matos e pinhais próximos do litoral e com solo calcário. Mas é, ou sempre foi, rara no resto da Península Ibérica, e dela não há registo em Portugal.



Da outra espécie do género Cneorum actualmente aceite pelos botânicos, Cneorum pulverulentum, endémica do arquipélago das Canárias, já aqui vos demos alguma informação. Num curioso retorno ao passado pré-Lineu, algumas Floras designam a espécie das Canárias como Neochamaelea pulverulenta. Note-se como na mudança de género, de Cneorum para Neochamaelea, houve simultaneamente uma fuga ao nome antigo, rejeitado por Lineu, e uma mudança da categoria morfossintática do epíteto específico. Como disse?, perguntará o leitor, franzindo o sobrolho. É uma expressão sofisticada e obscura do dicionário, tem razão, até porque quer apenas informar que do masculino pulverulentum se passou ao feminino pulverulenta. Não sabemos por que razão botânica esta distinção de sexo nas palavras é essencial. Lineu, contudo, cuja obra foi quase toda escrita em latim e para quem o binómio género/espécie, se bem escolhido, era a chave do sucesso da taxonomia, decerto aplaudiria este desvelo gramatical.

09/06/2023

Vulnerária arbustiva



Como todos o paraísos insulares acessíveis a famílias de posses moderadas, Maiorca tem farta dose de empreendimentos turísticos com vista para o mar, cenicamente enquadrados pelo arvoredo incumbido de representar a natureza em estado puro. Que, como é sabido, se aprecia muito melhor se for tomada em pequenas doses, com intervalos à hora certa para preguiçosas refeições em esplanadas soalheiras. Não estamos propriamente na selva amazónica, nem essa comunhão com a natureza é para levar tão a sério que nos obrigue a prescindir das comodidades da civilização. Contudo, acaba por ser surpreendente que essa natureza utilitária, retalhada por urbanizações, não seja apenas bonita como é sua obrigação profissional, mas se revele extensa, genuína, e recheada de atractivos para amadores de botânica.

Junto ao aldeamento turístico Sol de Maiorca, na costa sudoeste da ilha, os pinhais de Pinus halepensis estendem-se por 7 ou 8 quilómetros quadrados, cruzados por estradões e trilhos que dão acesso a falésias, a praias recatadas e a um farol solitário. Mesmo em Dezembro há aqui flores para admirar: açafrão, urzes, globulária-arbustiva, fradinhos, uma ou outra orquídea temporã. E ainda um arbusto de flores amarelas e folhagem acetinada que faz lembrar uma giesta, mas difere de todas as giestas que conhecemos em Portugal.

Anthyllis cytisoides L.


No nosso rectângulo continental, as leguminosas do género Anthyllis estão representadas por uma única espécie, a vulnerária, herbácea rasteira que, sob diversas formas, aparece em areais costeiros, em afloramentos rochosos cálcarios ou ultra-básicos, e em clareiras de bosques. Apesar de as suas flores variarem entre o vermelho, o rosa, o amarelo e o creme, a vulnerária é facilmente reconhecida pela folhas compostas imparipinadas e pelos glomérulos florais longamente pedunculados, aconchegados por um colarinho de brácteas, formados por flores de cálices insuflados; e igual figurino é adoptado pela endémica madeirense Anthyllis lemanniana. Assim, nada na nossa experiência prévia de curiosos da botânica nos permitia adivinhar que um arbusto com mais de um metro de altura, com flores axilares dispostas aos pares, era afinal um Anthyllis. Serve de alguma consolação que Lineu lhe tenha chamado Anthyllis cytisoides — denunciando o epíteto a semelhança deste arbusto com as giestas do género Cytisus. Mais uma vez a culpa da nossa ignorância cabe à repartição desequilibrada entre Portugal e Espanha do património natural ibérico. O caso dos Anthyllis é gritante: das doze espécies ibéricas (e metade delas são lenhosas), onze couberam em exclusivo aos nossos vizinhos.

Além de frequentar os pinhais de Maiorca e das demais ilhas Baleares, a Anthyllis cytisoides vive em boa parte da região mediterrânica ocidental: França, Espanha, Argélia e Marrocos. Tem preferência por substratos calcários e, sendo intolerante a geadas, busca climas cálidos e áridos próximos da costa. É boa fornecedora de néctar e uma reputada planta melífera.

02/06/2023

Alhos no chão

Allium chamaemoly L.


Este alho, do sul da Europa e norte de África, parece não ter pescoço. Na verdade, apesar de tão rasteiro, não é assim tão pequeno. O que acontece é que o talo, de onde brotam as folhas, tem cerca de 10 cm mas é subterrâneo, e a haste floral é praticamente inexistente. As folhas largas e longas encarregam-se de gerar energia que o caule, adaptado qual raiz à vida sem acesso directo à luz, armazena. É desta combinação de acções que esta planta beneficia, permitindo-lhe manter um regime perene. Em vez de um caule onde pendurar gaiatamente folhas e flores, parece ser-lhe mais vantajoso ter uma despensa de nutrientes, que mantém fresca e salvaguardada debaixo do solo. Supomos que é arriscado ser pequeno e morar tão rente ao chão, mas o aroma a alho afugenta predadores tão bem, dizem, como o diabo. É de se lhe invejar a prudência.



Mesmo sendo diminuto, este alho é fácil de avistar pois tem 4 a 8 folhas num tom de verde que se destaca do castanho-cinza dos prados ralos, em solos pedregosos, que ele aprecia. Em locais onde é abundante (na região mediterrânica), podem ver-se dezenas de exemplares juntos, formando na época de floração (entre Dezembro e Fevereiro) um emaranhado de folhas com margens peludinhas onde se aninham as umbelas de flores brancas com um caprichoso veio verde no meio de cada tépala. As fotos são de exemplares em Maiorca, no arquipélago das Baleares, onde se tropeça neste alho a cada passo se se passear por pinhais (de Pinus halepensis) e rochedos calcários à beira mar.

O cenário em Portugal, limite leste da distribuição desta espécie, é distinto. Talvez este alho já tenha sido abundante no sul do país, mas actualmente são apenas conhecidos três núcleos escassos, na Estremadura e no Baixo Alentejo. Segundo a Flora-on, a maior população registada é a do Baixo Alentejo, com cerca de 1000 indivíduos que vivem perto de uma ribeira. Decerto desaparecerão se o plano de construção de reservatórios de água ou barragens naquela região for implementado descuidadamente. Fica o alerta: é preciso manter a vigilância pois, no que se refere a desleixos destes e à destruição de habitats a eito, somos mestres.