30/04/2012

Azul na estrada

Há já algum tempo que procurávamos esta planta, uma das duas únicas representantes da família Globulariaceae em Portugal continental (a outra é a Globularia alypum, descoberta em 1995 no Barrocal Algarvio; há ainda a madeirense Globularia salicina). Da Globularia vulgaris conhecem-se duas populações no nosso território, uma em Trás-os-Montes, nas margens do Douro internacional, a outra ribatejana. Vive em substratos margosos, e julgávamos que facilmente a encontraríamos no Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros. Mais uma vez este ano, no início de na época da floração (Março), percorremos lugares prováveis no sul do Parque, imaginando, erradamente como se verá, que uma tal relíquia se esconderia num nicho pedregoso de difícil acesso ou em matos densos por onde a custo penetraríamos. Já quase noite, desanimados, a voltar para casa em silêncio, notámos numa curva da estrada umas bolinhas azuis a baloiçar no talude argiloso. Foi afinal o momento certo para descobrir as cerca de cinquenta plantas, porque o trânsito escasso a essa hora permitiu fotografá-las sem perigo.


Globularia vulgaris L.


É uma herbácea vivaz que aprecia solos secos e o sul da Europa. As inflorescências são capítulos solitários, terminais e globulosos, em hastes que variam entre 5 e 40 cm de altura. Notam-se bem o carácter cespitoso mencionado nas Floras, as rosetas de folhas basais pecioladas, com textura coriácea e um ápice dentado, e umas folhas mais pequenas e sésseis, com pintinhas brancas que são excrescências calcárias, a abraçar os talos floríferos. As flores diminutas têm corolas azuladas ou lilases fendidas em cinco lóbulos, de que sobressaem os estames.

Segundo a Flora Ibérica, esta globulária ocorre em França, Itália, Suécia e Península Ibérica. Em Espanha parece ser comum, e há registo de mais oito espécies deste género. Por cá, talvez a sua distribuição tão escassa e irregular se deva aos frequentes e desmedidos melhoramentos rodoviários.

25/04/2012

Salsa-veneno na Primavera

Iris pseudacorus L. / Oenanthe crocata L. — ribeira do Espírito Santo (Miramar — V. N. Gaia)
Entre Abril e Maio, a ribeira do Espírito Santo, em Miramar, é uma fita multicolor com predominância do amarelo e do branco, a que se acrescentam discretas pinceladas de laranja, azul e vermelho. Efeito da Primavera, que não se conforma com as limpezas indiscriminadas a que a vegetação das margens é regularmente sujeita. Há plantas que sabem baixar a cabeça no momento certo, ficando reduzidas a rizomas ou bolbos, e só a levantam quando os dias amenos anunciam tréguas temporárias na guerra que lhes é movida. Pois mesmo o mais cego dos roçadores acharia estranho que o mandassem decepar os lírios. Os lírios-amarelos (Iris pseudacorus), que são presença habitual em zonas alagadiças, funcionam como alerta amarelo contra limpezas fora de época.

Falta averiguar do branco que, de tão exuberante, quase não deixa entrever a fita de água nem sempre azul encravada entre as duas margens. Será salsa? Parece demasiado crescida para isso. Umas fotos mais podem ajudar.

Oenanthe crocata L.


Além do grande tamanho (pode chegar ao metro e meio de altura), o que mais chama a atenção nesta planta, de seu nome Oenanthe crocata, é a forma das inflorescências: várias dezenas de pedúnculos que fazem lembrar varetas de um guarda-chuva irradiam de um mesmo ponto na extremidade de cada haste; e cada pedúnculo sustenta um cacho achatado de várias dezenas de flores. Ou seja, cada inflorescência é ela própria um colectivo de pequenas inflorescências. A planta cumpre a duplicar os requisitos para pertencer à família das umbelíferas — o que, longe de ser caso único, todavia a distingue de plantas de floração mais modesta como a Sanicula europaea.

Se a hiper-inflorescência pode ter uns 15 cm de diâmetro, já as flores que a compõem andam pelos 2 mm, e os frutos pouco maiores são. Para distinguirmos a Oenanthe crocata de outras umbelíferas, o que é de suma importância dado tratar-se de uma planta mortalmente venenosa, melhor será atendermos a outras características: aos sulcos que marcam o caule (visíveis na penúltima foto) e ao recorte variável das folhas, que podem ter segmentos de triangulares ou ovados a quase lineares. A ecologia também dá uma ajuda: a salsa-dos-rios (um dos seus nomes comuns) prefere, já se adivinha, sítios húmidos, embora nem sempre tenha o pé mergulhado na água. É uma planta perene, dotada de raízes tuberosas, vulgar de norte a sul do país e, mais geralmente, em toda a Europa central e ocidental.

19/04/2012

Marizii de Sousa


Silene marizii Samp.


A pequena freguesia de Aguiar de Sousa, outrora abrangendo uma área mais vasta e sede de um concelho que incluía Gondomar e Paços de Ferreira, deve ter tido uma flora semelhante à de Valongo; em linha recta, as duas povoações não distam mais de 6 quilómetros. Vítimas do mau planeamento, da eucaliptização e da construção desproporcionada de viadutos e auto-estradas, exibem hoje habitats semelhantes mas no pior sentido. O que sobra da riqueza botânica de outros tempos, agora ameaçado pela prática de escaladas, refugia-se nas escarpas e afloramentos rochosos que moldam o vale apertado onde galopa o rio Sousa. Nas margens ainda se encontram amieiros, freixos, salgueiros e uma mão cheia de carvalhos, sobreiros, pilriteiros e loureiros. Mas são as herbáceas que nos reservam as melhores surpresas.

No lugar do Salto há paredes onde a água escorre em abundância e alimenta populações notáveis de Saxifraga lepismegena, Narcissus triandus, Scilla monophyllus, Hyacinthoides paivae, Ceratocapnos claviculata, Ranunculus bupleuroides e outras de que vos falaremos se houver ocasião. Nas fendas rochosas mais altas persistem bons exemplares de Davallia canariensis e Cheilanthes hispanica. E, na base dos pedregulhos graníticos, quando não exposta ao sol, mora um endemismo raro de distribuição esparsa, do centro-oeste da Península Ibérica e do noroeste de Portugal: a Silene marizii Sampaio. Segundo a Flora Ibérica, as escassas populações espanholas desta espécie incluída na Lista Vermelha da Flora Vascular Espanhola situam-se no centro montanhoso da Península; em Portugal é mais abundante, havendo registo dela no Minho, na foz do rio Tua (a uns 100 metros de altitude, o que significa que será afogada pela barragem), na serra do Caramulo, em Mangualde e no Sabugal. A que se acrescentam as populações de Aguiar de Sousa, em altitudes entre os 80 e os 100 metros.

Em fotos, esta Silene pode confundir-se com a S. latifolia, mas não ao vivo — e, em Aguiar de Sousa, há populações próximas de ambas as espécies para as podermos comparar fielmente. A S. latifolia é mais alta, só dá flores brancas, não é pegajosa e parece preferir a proximidade de ribeiros ou bosques. A S. marizii é igualmente perene e dióica, mas a mesma população pode (entre Abril e Julho) dar flores cor-de-rosa-pálido ou brancas (em proporção idêntica, havendo mesmo populações grandes só de flores brancas); e toda a planta é muito glandulosa, além de exalar um aroma acre intenso. O hábito é prostrado e o caule bastante ramificado, mas vimos indivíduos mais erectos com uns 60 cm de altura. As flores masculinas têm o cálice pigmentado de vermelho, sendo esverdeado o das femininas, que exibem um pedicelo mais longo. Curiosamente, as plantas masculinas mantêm a flores viçosas até um ou dois meses depois de as femininas frutificarem.

A designação Silene marizii, de 1909, impôs-se a alternativas que colocavam a planta noutro género (Melandrium glutinosum Rouy (1894), Melandrium viscosum Mariz (1887)) ou a subordinavam a outra espécie (Silene alba ou Silene dioica), e homenageia o naturalista português Joaquim de Mariz (1847-1916), exímio taxonomista que colaborou na elaboração das Floras de Portugal de Gonçalo Sampaio e António Xavier Pereira Coutinho.

10/04/2012

O herborizador implacável

Asplenium adiantum-nigrum L.
Estudar as plantas no campo, longe de bibliotecas e de laboratórios, pode ser tarefa ingrata. Há espécies de identificação imediata, ou que não exigem olho especialmente treinado; mas há muitas outras em que a certeza só se alcança pela observação de detalhes minúsculos ou mesmo microscópicos. Ainda que uma pequena lupa possa resolver certos dilemas, por vezes cedemos à tentação de recolher amostras vivas. Argumentamos, para apaziguar a consciência, que num campo de malmequeres o desfalque de um só não tem qualquer significado. Pois não tem, mas abriu-se um precedente. Da próxima talvez achemos desculpável a colheita quando houver apenas umas poucas dezenas de plantas. Não tarda estamos convertidos em caricaturas de botânicos profissionais, com a sua pá e o seu saco de amostras para enriquecer os museus de plantas secas que se chamam herbários. A diferença é que as plantas que recolhemos acabam no lixo e não em pastas de arquivo. E, tratando-se de populações vulneráveis ou escassas, nem sequer o herbário poderá servir de desculpa à avidez de botânicos pouco escrupulosos.

Está na altura de bater com a mão no peito e admitir a culpa: sim, arranquei a folha que se vê nas fotos; uma única folha, frente e verso. E por que pratiquei eu tamanha crueldade? É que a posição em que os fetos se encontravam, camuflados pela urze na base de um talude, tornava impossível a obtenção de fotos aceitáveis. A folha que arranquei — e a planta tinha muitas mais — exibia os esporângios já maduros e começava a secar. No final da sessão, deixei-a no local de onde a tirei, acreditando que os esporos acabariam por cumprir a sua missão propagadora. Sei que não causei dano significativo à planta, mas a memória do gesto não se me apaga: é como ter vendido a alma a troco de meia dúzia de fotos.

Ora essa — resmunga o leitor — tanto drama por um feto que se vê em todo o lado. Perdoe o leitor a franqueza, mas está enganado, como aliás eu próprio já estive. O feto-negro (Asplenium adiantum-nigrum) é raro em Portugal, aparecendo nuns poucos lugares mais ou menos montanhosos no Minho, Trás-os-Montes e Beiras; mas o fentilho (Asplenium billotii) e a avenca-negra (Asplenium onopteris), que com ele se podem confundir, são fetos muito comuns no nosso país. O Asplenium adiantum-nigrum parece quase um híbrido entre esses dois, o que, sendo o A. onopteris um dos seus progenitores, não anda longe da verdade. (O outro progenitor é o A. cuneifolium, que não ocorre em Portugal.)

O Asplenium adiantum-nigrum não é um híbrido: é uma espécie perfeitamente estável, capaz de se auto-reproduzir por via sexual, enquanto que um híbrido é por regra estéril, surgindo unicamente quando no mesmo local coexistem as espécies que lhe deram origem (embora possa também multiplicar-se vegetativamente). Contudo, estudos cromossomáticos comprovam sem margem para dúvidas que o A. adiantum-nigrum tem origem híbrida. A coisa funciona mais ou menos assim: quando se cruzam duas espécies distintas, cada uma delas dispõe no seu código genético de um certo número de cromossomas, organizados aos pares; e, ao contrário do que sucede na reprodução dentro da mesma espécie, em que os pares se combinam sem falhas, fornecendo cada parente um dos cromossomas em cada par, quando ocorre hibridação há cromossomas que ficam desemparelhados. O resultado desse defeito genético é, regra geral, a esterilidade. Contudo, essa criatura híbrida pode socorrer-se de um truque para conseguir perpetuar-se: em vez de tentar combinar cromossomas incompatíveis, opta por adicionar todos os pares de cromossomas que recebeu dos seus progenitores. No caso destes asplénios, isso significa produzir alguns esporos em que, em vez de 72 cromossomas (ou 36 pares), como há em cada um dos progenitores, há agora 144. Se esses esporos tiverem a fortuna de produzir plantas viáveis, adaptadas ao seu habitat, então elas, por não serem estéreis (os seus cromossomas, apesar de mais numerosos que antes, cumprem a regra do emparelhamento), vão constituir uma nova espécie. Sucedeu assim com o Asplenium adiantum-nigrum e com muitas outras espécies de pteridófitas. Só com a contagem de cromossomas foi possível desvendar-lhes a origem. Há até um jargão para estas coisas: as espécies ancestrais, com menor número de cromossomas, dizem-se diplóides; as suas descendentes por hibridação, com um número duplicado de cromossomas, dizem-se tetraplóides. O processo pode iterar-se, com espécies tetraplóides recombinando-se entre si (o que dá octoplóides) ou com outras diplóides (dando origem a hexaplóides). E por aí fora até se esgotarem os prefixos numerais.

09/04/2012

Cabrinhas no Prado

Davallia canariensis (L.) Sm. epífita em Melia azedarach L. no cemitério do Prado do Repouso (Porto)
Cabrinhas & caracóis
Evocação do poeta e naturalista Augusto Luso (1827-1902) 
— texto originalmente publicado no Casal das Letras

Na freguesia de Cedofeita, no Porto, há dois liceus que distam 400 metros um do outro: o Rodrigues de Freitas, que noutros tempos era só para rapazes, e o Carolina Michaëlis, que era só para meninas. É uma distância para fazer toda em linha recta, não fossem as pequenas correcções de trajectória a que obrigam os seis lanços de escadaria no final. A rua que possibilita o rápido trânsito do masculino ao feminino tem o nome de Augusto Luso: poeta e professor 1827-1902, é o que diz a placa. Nada mais apropriado do que homenagear um professor com uma rua que liga duas escolas.

A imortalidade toponímica é algo ingrata, pois uma rua não é um compêndio de história e não guarda memória de feitos nem de obras publicadas. Custa a crer que certos nomes petrificados em placas de ruas tenham pertencido a gente de carne e osso. Mas de Augusto Luso – de seu nome completo Augusto Luso da Silva, e que também se assinou A. Luso, A. Luso da Silva ou simplesmente Luso – é possível, graças à Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e a outras obras de referência, conhecer o essencial da vida e obra. Podemos até, nas páginas do portal TriploV, ler uma boa amostra do que escreveu em prosa e e em verso sobre, por exemplo, caracóis e ornitorrincos. Se a isto juntarmos que Augusto Luso foi professor de geografia e autor de compêndios para o ensino, compreendemos que ele não foi um literato convencional. O seu estudo pioneiro sobre moluscos terrestres e fluviais de Portugal, publicado em fascículos entre 1868 e 1872, é ainda hoje citado por malacologistas.

Outra prova de que Augusto Luso foi um naturalista sério e minucioso está no Herbaryum Cryptogamicum do Porto e seus arredores, aparecido em 1872 e 1873 (volumes III e IV) no Jornal de Horticultura Prática, influente revista mensal sobre jardinagem e agricultura que se publicou no Porto entre 1870 e 1892 (e que está disponível on-line neste endereço). Confessa o autor no preâmbulo que a sua ambição era fazer um levantamento do país inteiro, mas, por lhe faltarem apoios, vê-se limitado aos arrabaldes da sua cidade. Ainda assim, a lista de fetos, musgos, hepáticas, líquenes e algas por ele herborizados ultrapassa a centena de espécies – e, pelo menos nos fetos (dos outros nada sei dizer), inclui quase todos aqueles que são hoje conhecidos, alguns sob outros nomes, como espontâneos na região do Porto. De cada planta, o autor faz uma breve descrição e indica alguns locais de ocorrência. É talvez o primeiro texto em língua portuguesa que torna acessível a leigos aquilo que estava confinado a tratados científicos como a Flora Lusitanica (1804) de Brotero e a Flore Portugaise (1809-1840) de Hoffmannsegg & Link.

Se o fascínio por lírios, narcisos e outras plantas vistosas é facilmente contagiante, já o mesmo não se pode dizer de fetos, musgos e afins; e, ao contrário do que sucede com pássaros, observar lesmas ou caracóis nunca foi uma ocupação com muitos adeptos (comê-los já será outra história). Valorizar a natureza para além de uma concepção estreita do que é «belo» ou «útil» para nós, humanos, é um passo que ainda hoje muitos são incapazes de dar. Eis o que escrevia Augusto Luso em 1872: Assim como, entre os animais do nosso país, os moluscos e, principalmente, os terrestres e fluviais, são ignorados de quase todas as pessoas, da mesma sorte as Criptogâmicas não são mais conhecidas entre os vegetais, que enriquecem e adornam o nosso Portugal. Desejando eu conhecê-las e dá-las a conhecer, forçoso me era uma exploração e uma classificação.

Está bom de ver, portanto, que Augusto Luso não demandou Áfricas. De facto, não foi além de Aguiar de Sousa e de Avintes: o seu âmbito de exploração cabe num raio de 13 quilómetros em redor do Porto. Mas, além de a observação e recolha de plantas exigirem tempo e paciência, viajar no terceiro quartel do século XIX não era o mesmo que fazê-lo hoje. Augusto Luso fala do vale do rio Ferreira, em Valongo, como se reportasse as maravilhas de um lugar longínquo: Se não fora outro o meu fim e o temer abusar da paciência dos leitores, descreveria, como pudesse, alguns destes sítios, magníficos e surpreendentes quadros, escondidos à maior parte das pessoas, convidando-as ao passeio, aonde o belo horrível do despenhadeiro, às vezes se apresenta, trazendo sempre o sublime. Sendo ele porém um poeta, não pede licença aos leitores para encabeçar a sua listagem com um intróito de 14 quadras em verso decassilábico. Eis uma delas:

Cresce a alegre Davallia nos rochedos
Sobre os rios pendentes, e fendidos
Pela força do gelo. Eis reunidos
Gratos Aspídios e Asplénios ledos.

Não podíamos estar mais longe da aridez impessoal que hoje é de lei em artigos científicos. E impõe-se a pergunta: que é feito da alegre Davallia, dos Asplénios ledos, dos gratos Aspídios? Em geral estão bem e recomendam-se. Os fetos do género Asplenium são dos mais comuns em muros e fendas de rochas de norte a sul do país. Os Aspídios também se vêem muito, mas mudaram de nome: um deles, vulgarmente conhecido por fentanha, chama-se agora Polystichum setiferum; outros, como o feto-macho, integram o género Dryopteris. São fetos que lançam tufos de longas folhas arqueadas, às vezes com mais de um metro de comprido, e que vivem em bosques sombrios e junto a linhas de água. Quem perdeu grande parte da alegria foi a Davallia canariensis, que Augusto Luso considerava, numa apreciação ainda hoje consensual, como «o mais formoso feto do nosso país». Conhecido por feto-dos-carvalhos (por gostar de se empoleirar nessas árvores) ou cabrinha (por causa do rizoma lenhoso revestido de escamas bronzeadas), as suas folhas lembram os naperons de renda com que as nossas avós enfeitavam cristaleiras. A cabrinha é espontânea na Península Ibérica, Marrocos, Madeira e Canárias; e, ainda que no continente português seja escassa e esteja confinada ao litoral, chega a ser abundante na serra de Sintra e em alguns velhos carvalhais do Alto Minho. Nos rochedos pendentes sobre o rio Sousa ou o seu afluente Ferreira é que ela já pouco salta. As serras em volta converteram-se em eucaliptais, o bucolismo foi ferido de morte por postes de alta tensão e viadutos de auto-estrada. Mas o desfiladeiro da Senhora do Salto, em Aguiar de Sousa, ainda é capaz de provocar arrepios; e, se varrermos as medonhas escarpas com um par de binóculos, encontramos aqui e ali o inconfundível recorte das folhas da Davallia, cabrinha feita águia no seu último e inacessível refúgio.

Um reencontro difícil que remata esta evocação de Augusto Luso, nome de rua, naturalista, poeta romântico e professor de geografia. Talvez ele gostasse de saber que a cabrinha, se quase desapareceu de Valongo nos 140 anos decorridos desde a publicação do seu Herbaryum Cryptogamicum, teve contudo artes de se instalar – resultado provável do seu uso em arranjos florais – em meia dúzia de árvores em Agramonte e no Prado de Repouso, os dois maiores cemitérios do Porto.

Porto, 2 de Abril de 2012

06/04/2012

Bendito cardo

Cnicus benedictus L.


A bênção, do latim benedictione, que noutros tempos se pedia ou se dava, sempre foi uma graça ilusória; porém a sua recusa, castigo que selava zangas familiares, significava um desamparo que nenhum esconjuro podia atenuar. Além disso, este bem-fadar exigia renovação obrigatória a cada reencontro, num compromisso só comparável às saudações diárias. Pelo contrário, a bênção que, em reconhecimento das suas propriedades medicinais, foi na antiguidade conferida a este cardo tem sobrevivido às mudanças, e em nenhum dos géneros por onde tem passado (Carbenia, Hierapicra, Cnicus, Centaurea) dispensou ele o abençoado epíteto. Tudo indica que o nome vernáculo precedeu a designação científica e a tem autoritariamente condicionado.

Certa é também a vocação franciscana do cardo-bento: nativo da região mediterrânica, incluindo Portugal, é ruderal, resistindo bem à secura e à pobreza do habitat, desde que temperado com ar frio de montanha. Por cá, segundo a Flora Digital, é mais frequente no interior sul, embora também ocorra em Trás-os-Montes e nas Beiras. Os exemplares que vimos perto de Celorico da Beira, num terreno inculto de futuro incerto, pareciam plantas prostradas, com uma roseta de folhas lanudas e serradas, de uns 30 cm de comprimento, a rodear o capítulo de flores apoiadas em brácteas imbricadas e espinhosas que se ligavam por uma teia de penugem. Mas as referências indicam que o caule central pode atingir 60 cm de altura, elevando o centro amarelo. Apesar de oficialmente só florescerem no Verão, no Inverno atípico que nos calhou algumas floriram já em Março; sendo plantas anuais, outras virão no calendário certo. As flores, amarelas, são hermafroditas, com as marginais estéreis servindo de mero enfeite. Os frutos são aquénios com numerosos papilhos.