31/03/2024

Salsa caprina

Pimpinella dendrotragium Webb


Prosseguimos o nosso ciclo de plantas com aspecto familiarmente europeu mas que são endémicas das Canárias, um arquipélago geograficamente africano. Desta vez é uma salsa, que é como chamamos, preguiçosamente, às umbelíferas cuja folhagem faz lembrar a desse tão popular condimento culinário. Na planta acima ilustrada, as flores de cor branca já são aviso suficiente de que não se trata da verdadeira salsa, pois esta costuma dar flores amareladas. E é de todo desaconselhável colher folhas de presumíveis salsas silvestres com intenção de as consumirmos: as possiblidades de confusão são inúmeras, e algumas destas salsas fingidas são mortalmente venenosas.

Não são apenas os portugueses, tradicionalmente ignorantes em matéria de plantas silvestres, que confundem as salsas. Nas Canárias, todas as espécies endémicas do género Pimpinella, num total de cinco, são tratadas como perejil, que é o nome vulgar da salsa em castelhano. A Pimpinella dendrotragium, endémica de Tenerife e de La Palma, é conhecida como perejil cabruno, o que se traduz por salsa caprina. A menção à cabra vem do epíteto dendrotragium, que combina uma referência ao dito animal (em "tragium"), motivada talvez pelo odor da planta, com uma alusão (através do prefixo "dendro") ao carácter lenhoso dos exemplares idosos.

Distribuídas pela Europa, Ásia e África, há no mundo inteiro cerca de 150 espécies de Pimpinella. Ao contrário da verdadeira salsa, que é folharuda de alto a baixo, a folhagem das pimpinelas costuma concentrar-se na base das plantas. E é atendendo ao recorte e ao número de divisões das folhas basais que é possível, sem dificuldade, distinguir as diferentes espécies do género nas Canárias (na verdade, só em Tenerife, onde ocorrem quatro espécies, é que essa distinção é menos imediata). Das cinco espécies em questão, só a Pimpinella dendrotragium e a Pimpinella cumbrae têm folhas basais simplesmente pinadas; as restantes têm-nas bipinadas ou tripinadas. E, para destrinçarmos estas duas espécies, basta notar que, contrastando com a folhagem verde da P. dendrotragium, as folhas da P. cumbrae são glaucas e apresentam um recorte muito mais regular (veja esta foto). E há a questão da ecologia: como o próprio nome sugere, a P. cumbrae está restrita às maiores altitudes (de 2000 metros para cima) das ilhas onde ocorre, que são Tenerife e La Palma. A P. dendrotragium, que fotografámos nos pinhais de La Cumbrecita, em La Palma, onde a espécie é moderamente frequente, vive entre os 400 e os 1400 metros de altitude.

24/03/2024

Nevadensia & C.ª

As plantas perenes de montanhas onde os invernos são rigorosos, e tudo fica sob neve durante meses a fio, refugiam-se bem agasalhadas no solo até receberem um sinal de que é hora de acordar. Quem lhes envia um tal alerta? Para nós, a Primavera tem data de início pré-estabelecida, e são muitos os órgãos de informação empenhados anualmente em que não esqueçamos o feliz evento. Sabe-se hoje que o despertador das plantas, que assegura a transição para a floração, é parte integrante delas: há genes que controlam a produção de flores e cuja voz de comando se silencia quando a temperatura ambiente é muito baixa por um período longo, mas se expressa de novo quando esse período termina. Com o passar dos anos, talvez as plantas se tornem minimalistas como nós, e lhes baste notar que o mês de Março chegou ao fim.

No topo da Serra Nevada há várias espécies que podem ter este perfil genético. O género Hormathophylla, cujo nome alude à disposição das folhas nos caules, tem uma área de distribuição vasta na região mediterrânica e abriga algumas das plantas mais pequenas e mais bonitas da Serra Nevada.

Hormathophylla purpurea (Lag. & Rodr.) P. Küpfer
[= Nevadensia purpurea (Lag. & Rodr.) Rivas Mart.]


A H. purpurea é um endemismo da Serra Nevada que oficialmente floresce entre Abril e Maio, embora as fotos sejam de Julho. Vive em fissuras de rochedos estratificados, com solo ácido, entre os 2000 e os 3400 m de altitude. Tem um porte rasteiro, com talos lenhosos e indumento denso em toda a folhagem, e não ultrapassa os 8 cm de altura. As cabrinhas da Serra gostam bastante de as comer, sendo por isso agora bastantes raras (as plantas) em toda a área de distribuição.

Hormathophylla spinosa (L.) P. Küpfer


A H. spinosa é mais fácil de encontrar na Serra Nevada, por ser mais alta (chega aos 40 cm de altura), ramificada na base, e muito mais frequente. Na sua ampla área de distribuição (Espanha, França e Marrocos), ocorre entre os 100 e os 3400 m de altitude. A este sucesso na colonização não será estranho o facto de a planta transformar parte dos talos de anos anteriores em rijos espinhos, que a protegem das tais cabrinhas e de outros curiosos. Como a espécie anterior, também aprecia pedregais, embora seja menos caprichosa quanto ao tipo de solo. Floresce abundantemente entre Abril e Agosto.

Hormathophylla longicaulis (Boiss.) Cullen & T. R. Dudley


Finalmente, a H. longicaulis, de taludes e matos calcários, é a mais bizarra das três espécies do género Hormathopylla que vimos em Julho do ano passado. É um endemismo do sudeste de Espanha, dá flores brancas pequenas e a folhagem é glauca, quase prateada. O aspecto mais curioso, porém, é que as hastes florais são bastante longas, quebradiças e ramificadas no topo. Há registo dela entre os 1100 e os 1800 m de altitude, e floresce em pleno Verão. As fotos são de exemplares na Serra de Huétor.

13/03/2024

Que mil tomilhos floresçam

Micromeria herpyllomorpha Webb & Berthel.


Estes arbustos de folhagem miúda fazem lembrar tomilhos, e aliás é esse o nome que lhes dão nas Canárias, mas a ausência do característico perfume leva-nos a suspeitar que sejam outra coisa. Na verdade, as diferenças entre tomilhos e estas lamiáceas insulares são de tal ordem que justificam a separação em géneros botânicos diferentes. Com excepção de uma espécie em Lanzarote, os tomilhos genuínos (género Thymus) não são parte da flora nativa das Canárias; em compensação, os falsos tomilhos (género Micromeria) são muito numerosos nessas ilhas, contando-se por lá mais de 20 espécies ou subespécies endémicas, quase todas com distribuição restrita a uma só ilha.

A Micromeria herpyllomorpha é a representante única dessa estirpe em La Palma. Isso confere à nossa identifcação um grau de certeza que não estaria ao alcance de amadores descomprometidos como nós em ilhas como Tenerife ou Grã-Canária, em cada uma das quais existem 8 ou 9 espécies ou subespécies endémicas de Micromeria. Num género em que as variações morfológicas são pequenas e os caracteres diagnósticos subtis, a distinção entre as várias entidades pode ser problemática, com diferentes especialistas a desentenderem-se quanto ao correcto tratamento taxonómico. Revelando-se os dados morfológicos ambíguos ou enganadores, só o advento dos estudos genéticos trouxe alguma ordem e estabilidade à divisão do género em espécies e subespécies. Em 2015, um artigo de Pamela Puppo e Harald Meimberg na revista Phytotaxa (ver aqui) propôs, com base na filogenia, uma reorganização do género Micromeria nos arquipélagos das Canárias e da Madeira. Houve muitas subespécies promovidas a espécies, e (em menor número) subespécies que transitaram de uma espécie para outra. De um modo geral, os autores concluíram ser inadequado considerar espécies com múltiplas subespécies distribuídas por diferentes ilhas. Da Micromeria varia, por exemplo, foram descartadas todas as seis subespécies em que, para além da subespécie nominal, a espécie havia sido dividida — uma delas era a madeirense M. thymoides.

O tomillo palmero, que floresce (pelo menos) entre Março e Junho, é frequente em La Palma desde as zonas costeiras até às maiores altitudes, mostrando preferência por lugares secos e soalheiros. As plantas das zonas altas da ilha, acima dos 2000 metros, são rasteiras, não ultrapassando os 25 cm de altura, e têm sido segregadas numa subespécie própria (Micromeria herpyllomorpha subsp. palmensis); a subespécie nominal, que ocorre no resto da ilha, integra plantas de porte erecto, capazes de atingir os 70 cm de altura. É a esta última que pertencem as plantas por nós fotografadas no Barranco de la Madera, situado na metade oriental de La Palma.