28/03/2021

Explicação da flor

Confinados na cidade, temos escrutinado os recantos dos jardins à porta de casa com um desvelo que poderá ser considerado imoderado mas tem efeito terapêutico. Por sorte, em alguns destes espaços finalmente reabertos resistem árvores antigas ainda saudáveis e de porte elegante. Depois dos meses de frio, estão quase todas com a copa ampla a reformosear-se, espreguiçando ramos longos e tortuosos, recheados de folhas viçosas e pequeninas da cor da alface. E os carvalhos estão em flor. Foi ao olharmos com vagar os amentilhos amarelados (espigas de flores masculinas) a pender das axilas das folhas de exemplares de Q. robur que nos apercebemos, não sem um certo embaraço, que afinal nunca tínhamos reparado nos detalhes das flores femininas dos carvalhos. Como desculpa, apenas o facto de elas serem minúsculas (menos de 2 milímetros de diâmetro), de nascerem ao mesmo tempo que as folhas novas, e de surgirem no ápice de uma haste fininha que se perde de vista entre a folhagem e os bugalhos.

Quercus robur L.


O Q. robur, espécie monóica e de folhagem caduca, aprecia o nosso clima atlântico e dá-se especialmente bem em locais frescos com humidade (como o Minho) e solos ricos em substratos ácidos (frequentes no noroeste de Portugal). Se por perto houver gaios, que dizem ser os melhores dispersores das bolotas, então não será surpresa que por ali nasça um bosque frondoso, com uma biodiversidade invejável. Estas são árvores de vida longa, que podem aguardar 40 ou 50 anos antes da primeira floração. Em cada flor feminina, notam-se (mais ou menos) bem os 3 estigmas e o invólucro escamoso e imbricado de cor avermelhada que, conjecturamos (e, tão logo seja possível, confirmaremos), formará o chapéu da bolota.



O autor do género Quercus é Joseph P. Tournefort, mas a nomenclatura é legalmente atribuída a Lineu uma vez que foi ele quem estabeleceu o uso de dois nomes (género e espécie) para se identificarem e distinguirem as plantas. O epíteto específico, robur, quer dizer robusto, de boa consistência, aludindo à qualidade invulgar da madeira destes carvalhos. Se o leitor quiser distinguir o Q. robur das outras espécies de Quercus (o que conseguirá sem esforço pela morfologia das folhas), encontra aqui fotos nítidas de (quase) todos os carvalhos que ocorrem por cá.

21/03/2021

Pequenos corações de areia



Isto de coleccionar ilhas para alimentar memórias em tempos de mobilidade reduzida tem o perigo de nos ufanarmos em conhecedores, prodigalizando conselhos que ninguém pediu avalizados por um saber de curta experiência feito. Já visitámos três (ou quatro, se contarmos com La Graciosa) das sete (ou oito) ilhas habitadas das Canárias; e, se as autoridades que nos pastoreiam nada fizerem para o impedir, juntaremos proximamente uma quarta (ou quinta) ilha ao nosso currículo viageiro. Poderíamos hierarquizar, apontar lugares imperdíveis, desvendar segredos mal guardados. Como se em cada ilha visitada tivéssemos visto e experimentado tudo (pelo menos tudo o que fosse digno da nossa atenção), e tudo tivéssemos aferido com infalível discernimento.

Há ilhas a que vamos voltar, a outras talvez não, mas essas escolhas dizem mais sobre nós do que sobre essas ilhas. Cada ilha tem o direito de se apresentar a cada novo visitante com todas as armas de sedução de que dispõe. Há artifícios de que nem desconfiamos, apontados para sensibilidades sintonizadas noutros comprimentos de onda, e não nos cabe desencorajar possíveis namoros felizes.

A Tenerife e a Lanzarote voltaremos sempre que possível. Com a Grã-Canária houve um desencontro qualquer, uma desafinidade talvez evitável se a visita tivesse sido em época do ano mais propícia. Não foram as marcas do turismo massificado que nos desencantaram, pois essas são igualmente visíveis nas duas ilhas a que nos afeiçoámos. A aridez da paisagem também não nos repeliu, pois ela é ainda mais marcada em Lanzarote, onde não existem os barrancos verdejantes nem os pinhais de altitude que são, na Grã-Canária, refúgios seguros de frescura. Mas para nós o mar de Lanzarote é mais acolhedor que o da Grã-Canária, e os mesmos restaurantes étnicos para engodo de turistas são menos ofensivos numa promenade de pechisbeque em Lanzarote do que em lugar semelhante na Grã-Canária. Mesmo os endemismos botânicos de Lanzarote, em muito menor número que os da Grã-Canária, se fizeram mais bonitos aos nossos olhos.

Lotus arinagensis Bramwell


Um dos poucos endemismos da Grã-Canária que floriam em Dezembro (e essa escassez ajuda a explicar o nosso desapontamento) era uma leguminosa rastejante, de flores amarelas e folhas pequenas, carnudas e acetinadas. Tratava-se do Lotus arinagensis, endemismo do sudoeste da Grã-Canária que vive nos arredores de Arinaga, povoação costeira de que tomou o nome. Corazoncillo é como chamam nas Canárias às espécies de Lotus de hábito prostrado e flores amarelas. Entre espécies endémicas e outras de distribuição mais ampla (como o Lotus creticus), as Canárias têm mais de uma dezena destes pequenos corações rasteiros. As diferenças entre as várias espécies são às vezes pequenos detalhes nem sempre bem vincados, mas a área de distribuição ajuda a tirar dúvidas. O L. arinagensis, além de ter um aspecto distintivo, aperece apenas numa zona muito restrita da Grã-Canária.

Por falta de praias amplas, a cidadezinha de Arinaga não foi tomada de assalto por empreendimentos turísticos como aqueles que abundam em Maspalomas, no extremo sul da ilha. Parece assim suficientemente a salvo o habitat do Lotus arinagensis e de outros raros endemismos que colonizam esta paisagem desértica. Se para aqui se virassem apetites imobiliários vorazes, não seria um coraçãozinho da areia a fazer-lhes frente.

15/03/2021

Erva magra

Estamos em 2009, e nos jornais britânicos lê-se uma notícia inusitada. Em Gloucestershire, alguém teria dado conta de uma planta pequenina de flores cor-de-rosa junto aos edifícios de um condomínio de luxo e, não a conseguindo identificar, entendeu por bem informar-se, não fosse dar-se o caso de ser uma espécie rara; depois de identificada e atestada a sua importância, os proprietários do local decidiram proteger a planta, garantindo desse modo que as sementes não se perderiam e formariam uma colónia sob a sua vigilância. Tudo isto parece inventado, não? Nós estamos habituados a outra realidade: à construção em áreas protegidas em prol do «interesse nacional», ao encolher de ombros face a recomendações de estudos de impacto ambiental, ao uso intensivo dos solos sem consideração pelo equilíbrio dos habitats, à sistemática falta de verbas para programas de conservação urgentes. Três anos depois, a BBC News dava conta da ocorrência de vários núcleos desta planta no sudeste de Inglaterra, admitindo-se que as suas populações estariam a recuperar com as medidas de prospecção e protecção em curso.

Galeopsis angustifolia Ehrh. ex Hoffm.


A tal planta afortunada, red hemp-nettle em inglês, pertence ao género Galeopsis: é a espécie Galeopsis angustifolia. No Reino Unido tem a companhia de mais duas espécies nativas, a G. speciosa, que cresce nas margens mais ou menos turfosas de parcelas cultivadas, e a G. tetrahit, que também ocorre em Portugal, aprecia a sombra e a frescura das orlas de bosques, e conhecemos da serra do Gerês e das terras de Barroso.

A Galeopsis-de-folhas-estreitas, que vimos em Peña Oroel e em Ordesa, nos Pirenéus, é uma herbácea frágil com folhas dentadas, talos pubescentes, e flores de tubos alongados. Ao contrário das espécies anteriores, adaptou-se a locais abertos com solo cascalhento, em zonas montanhosas ou costeiras, preferindo substratos calcários. Contudo, a floração é essencialmente outonal, e em terrenos cultivados tende a ser destruída sem formar sementes, ou a desaparecer sob o efeito de fertilizantes ou herbicidas. Este, sim, é um retrato da natureza em perigo que reconhecemos.

07/03/2021

Cominhos & descaminhos



Vivemos tempos estranhos, em que passear numa praia, numa montanha ou nas margens de um rio se tornou incomparavelmente mais subversivo do que fazê-lo nas ruas de uma cidade. O usufruto da natureza, hoje muito mais do que na época de Thoreau, é um acto de rebeldia, o início de um caminho sem retorno que conduz à desobediência civil e à anarquia. Quem não acate as ordens do pastor não pode esperar complacência do resto de rebanho.

Falta-nos estofo de heróis ou vocação para mártires; e, se passámos à clandestinidade (apenas em certos dias da semana), não vamos apregoar ao mundo o nosso paradeiro. O que por agora aqui mostramos são sobras de tempos mais felizes; a história dos dias que correm só mais tarde a contaremos.

Na foto vemos a barragem de Bemposta, no Douro internacional. Nas margens agora inacessíveis do rio prepara-se uma Primavera exuberante que estamos proibidos de admirar, já que dessa contemplação não essencial não adviria qualquer proveito económico para nós ou para o país. Em princípios de Maio, no Douro, o melhor da Primavera já ficou para trás, e os meses de Verão são um suplício, com o colorido das plantas a soçobrar à estiagem impiedosa. No entanto, há plantas que esperam pelos dias mais quentes para florir, entre elas numerosas umbelíferas. É por entre a vegetação seca, nas tardes em brasa a que as cigarras fornecem a banda sonora, que despontam as vistosas inflorescências da Margotia gummifera. Trata-se de uma planta ibero-magrebina que no nosso país ocorre de norte a sul, mas que no norte aparece apenas longe do mar, acompanhando o vale do Douro, e no centro e sul tem uma distribuição marcadamente costeira, vegetando até em dunas marítimas.

Margotia gummifera (Desf.) Lange


Destacando-se pelo tamanho (até 1,8 m de altura), pela brancura das flores e pela arquitectura das suas amplas umbelas, a Margotia gummifera também recompensa quem dela se abeire com o olfacto apurado. O seu perfume, segundo alguns, faz lembrar o dos cominhos, outros detectam-lhe um travo a resina, mas seria peculiar o nariz que se declarasse ofendido com o encontro. No entanto, há quem defenda que o nome comum da planta no nosso país seria bruco-fétido, o que — sabendo nós que a planta já se chamou Elaeoselinum gummiferum — só se explica pela confusão com o Elaeoselinum foetidum, uma umbelífera de folhagem semelhante mas de flores amarelas que terá um cheiro menos agradável.

A Margotia gummifera chega a ser abundante na faixa litoral a sul do Tejo; e, embora não se lhe conheçam usos na medicina tradicional, um estudo de 2013 assinado por um grupo de cientistas da Universidade de Coimbra aponta para potenciais usos farmacológicos dos seus óleos essencias, em especial pela sua acção anti-inflamatória.

01/03/2021

Minhonete arbórea

A família Resedaceae, com cerca de uma centena de géneros, conta na Península Ibérica com representantes de apenas dois, Reseda e Sesamoides, de morfologia muito semelhante. A diferenciação delas é tópico talvez desinteressante, e insistir no tema é decerto sintoma de confinamento excessivo. Enfim, com todo este vagar a que nos obrigam, quem sabe se não nos divertiremos com o assunto.


As espécies destes géneros (anuais, bienais ou perenes) dão flores pequeninas (cerca de 5mm de diâmetro), por vezes perfumadas, coladas ao talo mas agrupadas em espigas muito vistosas. As (4 a 6) pétalas brancas (ou amarelas ou esverdeadas), em geral franjadas, contrastam com o centro de estames alaranjados, de anteras encarnadas. No género Sesamoides, porém, os numerosos estames (a componente masculina da flor) costumam formar um anel que rodeia os carpelos (a parte feminina), como se pode ver aqui. E, portanto, se a planta estiver em flor, temos modo de reconhecer o género. A boa notícia é esta: a forma do fruto é outro pormenor que permite distinguir sem dúvidas os dois géneros. O fruto das espécies de Reseda é uma cápsula lisa, oca, com uma abertura no topo e recheada de sementes, lembrando uma campânula; o do género Sesamoides parece uma luva, cujos dedos gordinhos contêm as sementes.  

As espécies ibéricas são herbáceas, ainda que algumas superem 1 metro de altura. Pelo contrário, a Reseda scoparia, endemismo de algumas das ilhas do arquipélago das Canárias, é um arbusto. Com ar de vassoura, segue à letra o figurino que descrevemos acima para as flores e os frutos.

Reseda scoparia Brouss. ex Willd.
Os exemplares das fotos são do Barranco del Infierno, em Tenerife. Ali a entrada é paga, a temperatura muito elevada e a visita controlada por guardas de apito e binóculos (e, um ou outro, de guarda-sol). Em Maio, a cascata e o lago no interior do barranco tinham alguma água fresca, mas só era permitido permanecer no local uns escassos minutos. Com a demora inerente à obrigatória sessão fotográfica, tivemos desculpa para ficar por lá algum tempo mais.

Barranco del Infierno, Tenerife