27/06/2018

Tabuleiro de xadrez


Fritillaria pyrenaica L.


Se há herbáceas fáceis de identificar quando em flor são as do género Fritillaria. É que as flores, com o perianto campanulado formado por seis tépalas de cor púrpura com uma banda amarela na face externa e um padrão axadrezado na face interna, são inconfundíveis. Então por que há cinco espécies ibéricas? O que afinal as distingue? A chave da Flora Ibérica indica que se reconhecem sobretudo pelas folhas (mais ou menos lanceoladas, fininhas ou nem tanto, mas as diferenças contam-se em escassos milímetros) e pela forma dos nectários (informação a que jamais acederemos para não destruir as flores). Ajuda também estar atento à ecologia, pois algumas espécies preferem clareiras de matos na montanha, outras têm predilecção por fendas de rochas calcárias, e há as que se dão bem em dunas costeiras. Talvez aqui o anseio por endemismos torne este estudo mais complicado do que seria desejável, e explique por que razão a descrição na Flora Ibérica não está de acordo com a taxonomia adoptada pela Nova Flora de Portugal de Franco e Rocha Afonso, nem com os registos de observação destas espécies em Portugal. Por exemplo, a espécie Fritillaria nervosa Willd. (descrita em 1809 por Carl Ludwig Willdenow), que conhecemos das serras do Gerês, Açor e Estrela, surge na lista de plantas elaborada pelos Royal Botanic Kew Gardens e Missouri Botanical Garden como sinónimo de Fritillaria pyrenaica. É, porém, designada na Flora Ibérica como Fritillaria caballeroi, a partir de uma publicação de F. M. Vásquez em 2009. Para a lista dos Kew Gardens, contudo, a F. caballeroi é sinónimo de F. lusitanica... Havendo tempo, os botânicos ibéricos arrumarão melhor este género.

Para terminarmos, falta só chamar a sua atenção para um pormenor curioso nestas herbáceas vivazes. As flores são em geral solitárias e pendentes, mas na frutificação a haste floral torna-se erecta e a cápsula com as sementes nasce no topo dela. Deve ser um esforço considerável para a planta ter de levantar a corola da flor murcha para que o fruto se coloque nessa posição cimeira. Mas decerto é vantajoso para atrair polinizadores e proteger a flor que ela se incline para baixo, e mais eficiente para a disseminação das sementes que o fruto se localize inteiramente exposto ao vento. Ao abrir, solta inúmeras sementes minúsculas com asinhas alaranjadas.

19/06/2018

O trovisco-macho mais raro da Europa



Euphorbia stygiana subsp. santamariae H. Schaef.


A ilha açoriana de Santa Maria tem duas caras para mostrar aos visitantes. Na metade oeste, onde ficam o aeroporto, o porto de mar e, junto a ele, a principal povoação da ilha (apropriadamente chamada Vila do Porto), domina o amarelo das pastagens secas. Na metade leste, empinam-se os montes que captam o nevoeiro e a chuva, e a cor dominante passa a ser o mesmo verde a que nos habituámos nas outras ilhas do arquipélago. Somos levados a pensar que meia ilha de verdura não chega para compensar a aridez da outra metade, e que os cursos de água, se os houver, deverão ser raros e efémeros. Só que nada disso é verdade. Por um capricho da geologia, Santa Maria tem, na sua metade leste, muitas ribeiras permanentes; e algumas das que desaguam na metade oeste, nascidas na cadeia montanhosa do centro da ilha, também levam água todo o ano. Ilhas muito mais húmidas e verdes como o Pico e o Faial são também muito mais porosas, dispondo apenas de ribeiras temporárias, de regime torrencial.

Em Santa Maria, no vale encaixado de uma dessas ribeiras milagrosas, esconde-se, quase sufocada pela proliferação do incenso e da conteira, uma eufórbia arbórea (ou, na designação popular, um trovisco-macho) que é única no mundo. A população de poucas dezenas, todas no mesmo local, tem vindo a diminuir de forma alarmante, com os deslizamentos de terras provocando a perda de exemplares adultos e o cerco das invasoras impedindo que vinguem os exemplares jovens. O momento, porém, é de esperança, pois, em colaboração com os serviços do Parque Natural de Santa Maria, o Jardim do Botânico do Faial, que já salvou o não-me-esqueças e o teixo açoriano do limiar da extinção, comprometeu-se a intervir rapidamente.

Descoberta por Hanno Schaefer em 2001, e por ele descrita em 2002 na sua tese de doutoramento (intitulada Chorology and Diversity of the Azorean Flora), esta eufórbia foi então baptizada como Euphorbia stygiana subsp. santamariae. Segundo Schaefer, a diferença mais marcante é que os exemplares de Santa Maria são árvores capazes de atingir os dez metros de altura, enquanto que a E. stygiana das outras ilhas (ver fotos aqui) é um arbusto não excedendo os cinco metros. Esta dicotomia não é muito convincente, pois a subsp. stygiana às vezes também é uma árvore e no Pico há exemplares gigantescos. Mas todo o cepticismo foi varrido pelo espanto quando nos vimos perante o trovisco-macho de Santa Maria. O tipo de crescimento é muito diferente, as folhas são mais baças e com o veio central menos marcado, e as inflorescências cobertas de penugem, com os nectários alaranjados, não poderiam contrastar mais com as do trovisco-macho das outras ilhas (ver fotos aqui). E estas discrepâncias morfológicas tão óbvias são, segundo soubemos, corroboradas por diferenças genéticas. Assim, é provável que o trovisco-macho de Santa Maria represente uma espécie autónoma, não se justificando a sua subordinação, como subespécie, à E. stygiana do resto do arquipélago. De resto, a julgar pela aparência, a Euphorbia santamariae (como algum dia se há-de chamar) está mais próxima da madeirense E. mellifera do que da E. stygiana propriamente dita — e pode, de facto, ser o elo de ligação entre as duas espécies, funcionando Santa Maria (a ilha açoriana mais antiga, e a mais próxima da Madeira) como primeira etapa na rota migratória da Madeira para os Açores.

Se a singularidade deste trovisco-macho tivesse tido o devido reconhecimento taxonómico, talvez a operação de salvamento que agora se prepara in extremis pudesse ter sido levada a cabo, com maior probabilidade de sucesso, há uma dúzia de anos. Haveria por certo o risco de o frenesim mediático (com títulos como "A eufórbia mais rara da Europa é dos Açores") poder atrair coleccionadores sem escrúpulos, depauperando ainda mais uma população escassíssima. Mas é muito mais sério o risco de uma morte silenciosa.

12/06/2018

Presas na neve


Androsace cantabrica (Losa & P. Monts.) Kress


Na nossa terceira visita ao pico onde nascem rios que desaguam em três mares, optámos por uma data intermédia às das visitas anteriores, que tinham sido em Maio e Julho. Desse modo esperávamos conhecer todas as plantas que, à vista da estância de esqui do Alto Campoo, florescem desde a Primavera até ao início do Verão. Só que a metereologia trocou as voltas ao calendário: chegando três semanas mais tarde do que em 2017, a muita neve que faltava derreter, impedindo o trânsito de veículos e de caminhantes, sugeria, em vez disso, que chegáramos um mês mais cedo. A estância encerrara já a temporada, mas alguns esquiadores ainda ensaiavam umas descidas trôpegas. O cenário bonito da neve cobrindo os picos, com uns caóticos rasgões negros quebrando aqui e ali a uniformidade do branco, significava que os nossos planos tinham saído furados e não havia onde apresentar reclamação. Todas as plantas com que tínhamos combinado encontro estavam prisioneiras da neve, e nenhuma pôde comparecer. Como na lenga-lenga infantil, apetecia-nos implorar ao "sol que és tão forte" para derreter a neve e libertar as plantinhas. Mas a força do sol estava atenuada pelas nuvens carregadas de chuva que se interpunham entre ele e nós; e, mesmo que toda a neve se fosse, as plantas têm os seus vagares e nós não poderíamos ficar à espera.

Estas fotos de Maio de 2017 documentam dois dos reencontros que não tivemos em 2018. São duas espécies perenes de Androsace, uma com a floração bem adiantada e a outra acabando de abrir a primeira flor. A de flores cor-de-rosa, A. cantabrica, desautorizava a Flora Iberica (F.I.) de forma escandalosa, uma vez que essa douta publicação só lhe permitia florir a partir de Julho. A A. vitaliana, de flores amarelas, desobedecia no sentido oposto, pois a F.I. dava-lhe licença para florir já a partir de Abril.

Da família das prímulas, com numerosas flores pequeninas (3 a 4 mm de diâmetro) formando almofadinhas de um colorido atraente, as Androsace vivem em ambientes rupestres nas altas montanhas da Europa e da Ásia. Os Himalaias albergam o maior número de espécies, mas a Península Ibérica, com 15 espécies, várias delas endémicas, não tem razão de queixa. Uma das endémicas é a Androsace cantabrica, que está confinada às montanhas entre as províncias de Cantábria e Palência (Pico Três Mares e uns poucos cumes adjacentes). Verdade que, sem uma contagem de cromossomas ou a verificação (nem sempre conclusiva) de alguns miúdos detalhes, a A. cantabrica distingue-se mal de espécies próximas como a A. halleri. De modo que o leitor talvez não precise das quinze espécies ibéricas para inaugurar o seu rock garden: poderá conseguir o mesmo efeito com apenas umas sete ou oito.


Androsace vitaliana (L.) Lapeyr.

04/06/2018

Ouro branco

Ainda que, depois do Verão muito seco e dramático no ano passado, muitos tenham passado a apreciar mais a chuva, não deixa de ser um mistério que haja plantas terrestres que espontaneamente colonizem meios aquáticos. É que a sobrevivência em habitats palustres exige cuidados que podem ser ignorados em terra: é essencial que as folhas se mantenham a flutuar, para o que faz falta uma estrutura celular esburacada como a da cortiça, ou algum tipo de bóia; é imprescindível que as hastes florais sobressaiam na água para atrair os polinizadores sem os colocar em risco de se afogarem; os frutos têm de se dispersar na água sem apodrecer com a humidade excessiva; a planta tem de aprender a retirar nutrientes da água, uma sopa demasiado diluída; e há que saber aproveitar as interacções que o ambiente novo proporciona. Uma lista idêntica, a que se deve juntar a capacidade de hibernar debaixo de neve por largos meses, aplica-se às plantas vivazes que se adaptam a locais com invernos inclementes. Certo é que, depois de milhões de anos aflitos em ensaios e ajustes, com os pés molhados ou sob frio intenso, o planeta ganha novas espécies, e nós podemos hoje maravilhar-nos com as soluções engenhosas descobertas por elas neste processo.

A família Ranunculaceae, de que o género Ranunculus é o mais numeroso, é exemplar nesta adaptação a novos habitats, merecendo o prémio de uma distribuição invejável. Em Portugal, ocorrem espécies de berma de estrada, de turfeiras, de solos arenosos, de rochas expostas ao sol, de prados húmidos na montanha, de lagoas e charcos. Mas não há registo da espécie que está hoje na montra.


Ranunculus amplexicaulis L.


Com as informações genéticas a que os botânicos têm actualmente acesso, é possível identificar as alterações nos genes que acompanharam a transição do meio terrrestre para o aquático, ou do litoral para regiões acima dos mil metros. Curiosamente, no caso dos ranúnculos, essas mudanças não correspondem a alterações radicais nas flores. Estas são sempre do mesmo formato achatado, com pétalas ovadas amarelas brilhantes, ou brancas com um centro amarelo vistoso, por vezes raiadas por uns tons rosados. Mas a morfologia das folhas é bastante variada, o que até nem supreende: enquanto que a uma planta aquática interessam folhas fininhas, leves e muito recortadas, a uma espécie perene de montanha servem melhor folhas robustas, inteiras, penugentas e coriáceas.

O Ranunculus amplexicaulis, um quase endemismo ibérico de zonas montanhosas acima dos 1300 metros, tem folhas generosas que abraçam o caule e a haste floral para os agasalhar entre Maio e o início do Verão. A flor é por vezes solitária mas vistosa, com o centro amarelo protegido por alguma penugem. Vimos estes exemplares no Pico Tres Mares, na Cantábria, durante a primeira semana de Maio do ano passado. Neste início de Junho, o Pico tem ainda estradas cortadas pela neve, a maioria das plantas ainda não floriu, e poucos polinizadores estão ao serviço. Quem sabe, é apenas um atraso ocasional, como quando nos deixamos ficar mais meia hora no quentinho dos lençóis por sabermos do frio lá fora.