24/04/2018

A avidez dos burros


Onobrychis viciifolia Scop.


Há quem veja em cada flor precoce um anúncio da Primavera e um motivo de regozijo. Aos olhos inocentes desses panteístas, as plantas que florescem normalmente no Inverno, como os narcisos ou as camélias, cometem um erro de calendário com o único intuito de nos encher de alegria. Quem pratique essa admiração ingénua pelas obras da natureza há-de embevecer-se ao contemplar, em Janeiro ou Fevereiro, as margens de um rio pintadas do amarelo das mimosas em flor, ou um prado brilhando com o amarelo pálido das azedas (Oxalis pes-caprae). O equívoco, nesse caso, é duplo: tão exuberante floração não é sinal de Primavera, mas sim de Inverno, que é a estação em que tais flores aparecem; e essas invasoras em flor não são uma amostra da força regeneradora da natureza, mas sim uma prova dolorosa do estado de degradação a que nós, humanos, reduzimos essa mesma natureza.

Mesmo nesta coisa de flores silvestres, há pois que aprender a desconfiar dos efeitos fáceis. Podemos, num primeiro instante, admirar os campos revestidos de flores todas iguais, mas depois convém saber de onde elas vieram, se deveriam estar ali, e se a sua presença massiva não significa afinal uma perda de biodiversidade. Em Maio do ano passado, entre Reinosa e Fontibre, na Cantábria, tivemos oportunidade de pôr à prova estes ensinamentos. A planta que tentou seduzir-nos pelo vermelho artificioso das suas flores pintava muitos quilómetros de berma de estrada. Resistindo estoicamente a tão desbragado assédio, parámos para uma sessão fotográfica que serviria de base ao posterior auto de identificação. Lavrou-se de seguida (quase um ano depois) a competente nota de culpa, que se transcreve abaixo.

Culpa afinal moderada, e com várias circunstâncias atenuantes. A Onobrychis viciifolia, planta perene de uns 70 cm de altura, é talvez exótica na Península Ibérica, mas não há certeza disso. É uma daquelas plantas que durante séculos foram cultivadas para forragem e das quais não se sabe a origem exacta, admitindo-se que seja nativa da bacia mediterrânica, daquela região onde a Europa se vai confundindo com a Ásia. Ao contrário do que sugere o nome científico, a planta não era consumida só por burros: gado de todos os tamanhos e feitios considerava-a um pitéu delicioso. Não foi por os bichos se queixarem dela que a planta deixou de ser cultivada em meados do século XX, mas por se ter dado preferência a outras leguminosas forrageiras (sobretudo trevos e luzernas) de maior produtividade. Como podemos levar a mal que uma planta apátrida, mas certamente europeia de origem, se tenha naturalizado, a uma escala afinal modesta, naqueles países europeus onde foi um importante recurso agrícola? Assim sendo, já estamos autorizados a declará-la bonita e a sentirmo-nos felizes quando a vemos florir numa berma de estrada.

18/04/2018

Assembleias de montanha


Iberis carnosa Willd.


O nome Iberis refere-se à Península Ibérica, que nos séculos XVIII e XIX serviu de «Amazónia» para muitos exploradores europeus de botânica. E, ainda que haja Iberis noutras regiões, cerca de dois terços das espécies conhecidas ocorrem na Península Ibérica. A lista das espécies deste género de que há registo em Portugal é mais modesta, apenas quatro, mas dela consta uma subespécie endémica, cujas populações se situam no litoral e quasi-litoral (locais perto da costa, por vezes elevados, mas não à beira-mar) do centro do país.

A designação comum em português, assembleias, alude com precisão aos corimbos de flores reunidas a formar uma superfície quase plana. Em inglês chamam-lhes candytuft, algo a soar como ramalhete-de-Candia, sendo Candia um nome antigo para uma região na ilha de Creta. As Iberis são da família Brassicacea, a da couve (Brassica oleracea), cujos membros têm em comum dois pormenores que ajudam a identificá-los: as quatro pétalas em cruz (por isso Brassicacea = Cruciferae) e as sementes em silíquas longas ou achatadas, que no género Iberis são redondas como bolachas.

As assembleias que conhecemos melhor são costeiras, apreciando o solo arenoso e a ausência de sombra. Protegem-se do vento, do excesso de sal e da areia abrasiva com folhas carnudas e porte rasteiro. Na montanha são outros os receios, mas as plantas não descartam estas características vantajosas, acrescentando alguma penugem como agasalho aos talos e à folhagem. A espécie que hoje vos mostramos, e que vimos em fissuras de rocha no Picon del Fraile (Cantábria), é de montanha, entre os 800 e os 1500m de altitude. Sendo perene, passa o Inverno debaixo de neve, mantendo-se baixinha (não mais de 10cm de altura) enquanto floresce no Verão, pois (como experimentámos) nestes picos o frio e a ventania raramente arredam pé. É espontânea na bacia mediterrânica e em Espanha.

10/04/2018

O que há de mais manso



Carduncellus mitissimus (L.) DC.


A esta planta de flores rentes ao chão, incapaz de esticar o pescoço, falta-lhe tamanho para ser um cardo a sério. Será esta a explicação para um nome genérico (Carduncellus) que, segundo alguns, significa "pequeno cardo"? Acontece que tal nome não foi inventado para ela: Lineu, que foi quem primeiro a baptizou, chamou-lhe Carthamus mitissimus, nome ainda hoje preferido por vários autores; e o género Carduncellus inclui plantas de tamanho respeitável, como o bonito cardo-azul que encontramos no centro e sul de Portugal. Terá sido pois por feliz coincidência que este cardo sem dúvida pequeno veio a chamar-se Carduncellus. De facto esse nome foi originalmente dado, tanto por Lineu como por um seu antecessor quinhentista, a uma planta igualmente atarracada, parente próxima da que hoje aqui mostramos, de seu nome Carduncellus monspeliensium (ou Carthamus carduncellus).

A outra metade do nome científico, o epíteto mitissimus, é um aumentativo de mitis, que significa "suave" ou "manso". Lineu, cansado de picar os dedos ao manusear as amostras botânicas que recebia, quis mostrar-se grato pela mansidão deste cardo sem espinhos.

O cardinho-mansíssimo vive em prados calcários nas zonas montanhosas do extremo norte da Península Ibérica e do sudoeste de França — ou, mais resumidamente, na cordilheira cantábrica e nos Pirenéus — e floresce entre Maio e Junho. Faz lembrar, no aspecto geral, a Jurinea humilis que temos nas serras do Açor e da Estrela, mas distingue-se claramente dela pelas brácteas involucrais. Mais semelhante nos detalhes, até porque integra o mesmo género botânico, é o espinhento e nem sempre anão Carduncellus cuatrecasasii, encontrado pela primeira vez em Portugal no ano de 2011.

04/04/2018

Narciso amarelo-limão


Narcissus bulbocodium subsp. citrinus (Baker) Voss [sinónimo: Narcissus gigas (Haw.) Steud.]
Referindo-se, uma vez, ao conceito directo das coisas, que caracteriza a sensibilidade de Caeiro, citei-lhe, com perversidade amiga, que Wordsworth designa um insensível pela expressão:

A primrose by the river's brim
A yellow primrose was to him
And it was nothing more.

E traduzi (omitindo a tradução exacta de primrose, pois não sei nomes de flores nem de plantas): «Uma flor à margem do rio para ele era uma flor amarela, e não era mais nada.» O meu mestre Caeiro riu. «Esse simples via bem: uma flor amarela não é realmente senão uma flor amarela.» Mas, de repente, pensou. «Há uma diferença», acrescentou. «Depende se se considera a flor amarela como uma das várias flores amarelas, ou como aquela flor amarela só.» E depois disse: «O que esse seu poeta inglês queria dizer é que para o tal homem essa flor amarela era uma experiência vulgar, ou coisa conhecida. Ora isso é que não está bem. Toda a coisa que vemos, devemos vê-la sempre pela primeira vez, porque realmente é a primeira vez que a vemos. E então cada flor amarela é uma nova flor amarela, ainda que seja o que se chama a mesma de ontem. A gente não é já o mesmo nem a flor a mesma. O próprio amarelo não pode ser já o mesmo. É pena a gente não ter exactamente os olhos para saber isso, porque então éramos todos felizes.»

Álvaro de Campos
Obras de Fernando Pessoa, Lello & Irmão — Editores, Porto, 1986