25/10/2020

Uma Volutaria por outra

Nos jornais portugueses, são raras as notícias sobre a flora lusitana e a natureza é, jornalisticamente falando, uma paisagem incompreendida e mal etiquetada. Aos poucos redactores que os jornais ainda empregam não se perdoaria a desatenção face ao notável programa de conservação do lince ibérico no Vale do Guadiana. Mas, quanto a plantas, elas são mencionadas aquando dos grandes incêndios, sendo então referidas colectivamente como floresta, ou são capa dos suplementos dos jornais ao fim-de-semana como vegetais cozinhados. Decerto por insistirem nesta abordagem superficial da flora, os jornais portugueses perderam recentemente duas excelentes notícias:

1. Portugal deixou de integrar a lista de países europeus (eram 3) que não têm uma lista vermelha da sua flora nativa. Apresentada oficialmente a 13 de Outubro, a Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental é o resultado de vários anos de trabalho de uma equipa diligente de botânicos que, com o apoio de amadores, conseguiu elaborar um mapa muito fiel da distribuição e do nível de ameaça a que estão sujeitas mais de 600 espécies de plantas nativas em Portugal continental. O país possui finalmente um guião detalhado para uma acção concertada de conservação de habitats e espécies da sua flora espontânea.

2. No âmbito do esforço de prospecção botânica que a elaboração desta lista vermelha exigiu, reencontrou-se uma pequena população de uma asterácea muito rara, a Volutaria crupinoides, planta de locais pedregosos e secos de origem calcária, de que, no continente europeu, só há registo em Portugal. Os poucos indivíduos (que não conhecemos) ocupam uma área muito reduzida nas arribas marítimas da serra da Arrábida.

O género Volutaria é essencialmente tropical, com um ascendente comum asiático, havendo registo de cerca de 18 espécies distribuídas pelo norte de África, região mediterrânica, Ásia, Península Ibérica e ilhas Canárias. São herbáceas anuais que se têm disseminado com sucesso após o aparecimento nessas regiões de vastas zonas abertas com vegetação rala e regimes de precipitação semi-desérticos.



Nas Canárias, onde pouco chove e já quase não há rios, contam-se duas espécies endémicas de Volutaria (V. bollei, de Lanzarote e Fuerteventura, e V. canariensis, presente em todas as ilhas), além de populações de V. tubuliflora. Os capítulos florais deste género são muito vistosos, com cálices penugentos e flores hermafroditas ao centro, notando-se outras, estéreis e grandes, no bordo (enfeites que decerto tentam os polinizadores). A floração dos exemplares de V. canariensis que vimos em Maio de 2019 em Tenerife estava quase terminada, e há que aguardar que a pandemia deixe de ser notícia para os vermos mais floridos.

Volutaria canariensis Wagenitz

18/10/2020

As brinças do rio Boco

Peucedanum officinale L.


Em Portugal, país que desconhece a sua flora, os nomes vernáculos das plantas silvestres são, em grande parte, uma fantasia incoerente. Há plantas vulgaríssimas e distintivas que nunca o povo se dispôs a baptizar — por exemplo, no norte do país, a Silene acutifolia e o Omphalodes nitida —, e outras praticamente inexistentes que têm uma profusão de (alegados) nomes comuns. O Peucedanum officinale, que só aparece com alguma regularidade nas margens quase inacessíveis do Douro internacional, e no resto do país só foi detectado em meia dúzia de lugares, recebeu nada menos que três nomes: brinça, ervatão-porcino e funcho-de-porco. O primeiro deles terá raiz latina; os outros são traduções mal amanhadas do inglês hog's fennel. São nomes que garantidamente nunca andaram nas bocas de um povo que nunca viu a planta; ou que, se a viu e lhe concedeu um minuto de atenção, certamente achou que se tratava de um funcho.

Se fosse vulgar no nosso país, a brinça (chamemos-lhe assim) bem merecia ser conhecida. Por essa Europa fora, nas épocas em que não havia farmácias nem receitas comparticipadas, funcionava como remédio barato e polivalente ao alcance de ricos e pobres. A lista das qualidades medicinais que lhe eram reconhecidas é extensa: o látex extraído do rizoma da planta seria anódino, anti-espasmódico, sudorífero, diaforético, diurético e peitoral (fonte) — quase uma farmácia completa.

A brinça é uma umbelífera alta, com mais de dois metros de altura, com folhas muito divididas bem diferentes das do funcho, dotadas de segmentos terminais compridos, hirtos e estreitos. Como grande parte das plantas da família a que pertence, floresce no Verão. As flores são amarelas como as do funcho, mas as umbelas são mais amplas, com maior número de raios.

A população que encontrámos, composta talvez por uma centena de plantas, mora em Cantanhede, num prado seco rodeado por eucaliptais em expansão. Ao fundo, uma linha de água sublinhada por salgueiros marca a fronteira entre os concelhos de Cantanhede e Vagos. Ainda que nos tenha parecido insignificante, essa linha de água alarga-se o suficiente para, uns quilómetros adiante, ser chamada de rio. É o rio Boco, que desagua em Vagos num dos braços da ria de Aveiro, um rio que vem de perto e vai para perto.

11/10/2020

Erva do Parnasso


O Sistema Central é um alinhamento de montanhas no centro da Península Ibérica que se estende de Guadalajara até à serra da Estrela. O estudo da biodiversidade notável deste vasto território mostra como a variação climática tem tido um efeito nefasto em ecossistemas onde a presença humana até é reduzida. Por exemplo, o clima mais quente e atlântico na serra da Estrela, com episódios de neve mais curtos e menos intensos do que no centro montanhoso de Espanha, tem condenado a uma distribuição restrita, ou mesmo à extinção, boa parte da flora dos pisos mais elevados da serra. Contam-se aqui como muito raros o Asplenium septentrionale, o Cryptogramma crispa, a Alchemilla transiens, o Carex furva ou o Lycopodium clavatum, que em Espanha têm populações mais viçosas. A juntar a este efeito climático, nota-se um uso desregrado dos cervunais, uma alteração significativa nos bosques mediterrânicos e a destruição de prados nas terras mais baixas. Não surpreendentemente, teme-se que a renovação do caudal de vários afluentes dos rios Douro, Mondego e Tejo esteja a tornar-se menos eficiente.

Um maior número de cumes em Gredos, e dos mais altos, talvez seja a razão para algumas espécies de montanha serem aí tão abundantes. É o caso da herbácea perene de que vos falamos hoje, de pequeno porte (10 a 30 cm) e que floresce em pleno Verão nas margens de riachos e turfeiras. As folhas são arredondadas mas com base reentrante, como corações sem bico, e têm um pé longo, evitando a humidade excessiva. A haste floral emerge da base das folhas, e no topo empoleira-se uma flor solitária e muito perfumada.

Parnassia palustris L.


A polinização destas flores merece um comentário. No centro da flor nota-se o ovário rodeado por cinco leques enfeitados com bolinhas brilhantes da cor do mel (que prometem néctar) que são outros tantos falsos estames (veja-se a 2ª foto). Para que serve tanto adorno e fingimento? Note-se que é benéfico para as espécies evitar a auto-fecundação, mas numa flor hermafrodita a proximidade das componentes masculina e feminina pode tornar a auto-polinização mais frequente do que a polinização cruzada. Pois bem: a presença dos estames falsos dá a impressão ao polinizador de que a flor já desabrochou e está a servir o néctar. Inebriados pelo aroma a mel, eles pousam na flor e roçam o corpo pelo pólen, esvoaçando pouco depois para outra flor onde julgam que, aí sim, o néctar já está na mesa. Mas enquanto os estames falsos iludem o polinizador, alguns dos estames verdadeiros mantêm-se inclinados sobre o ápice do ovário, expondo as anteras de pólen mas cobrindo o estigma (veja-se esse pormenor aqui). Só quando o último estame murcha é que o estigma está integralmente exposto.

Esta estratégia ajuda a evitar a auto-polinização mas, como se refere neste artigo, há o risco de o polinizador não transportar o pólen no local do corpo que vai contactar com o estigma da outra flor. Segundo os autores, o género Parnassia parece ter resolvido este problema: os estames verdadeiros amadurecem e movem-se coordenadamente, separando-se do ovário em sequência. Este processo faz com que, em cada dia, os estames com o pólen fresquinho estejam sobre o estigma (logo o polinizador recolhe o pólen nessa posição, que é a de um estigma receptivo, e que manterá noutras visitas), mas depois de maduros se afastem dessa posição central, permitindo que o estigma seja polinizado.

04/10/2020

Angélica galega


Angelica pachycarpa Lange


É de alguma injustiça que, no comércio hortícola internacional, esta planta seja conhecida como Portuguese Angelica. Um nome muito mais apropriado, e neutro quanto à nacionalidade, é Shiny Angelica — o brilho lustroso das suas folhas é notório nas fotos aí em cima. E por que não deve a Angelica pachycarpa ser vendida como portuguesa? Acontece que esta endémica do noroeste peninsular, típica de falésias costeiras, é muito mais frequente na Galiza do que em Portugal, onde só ocorre ao largo de Peniche, nas Berlengas. Tratando-se de uma planta bienal (as folhas brotam num ano e a planta floresce no ano seguinte, morrendo após a dispersão dos frutos), o número de exemplares na natureza pode oscilar de ano para ano, mas calcula-se que nas Berlengas elas nunca ultrapassem as duas centenas. Conhecendo a sua abundância em certos pontos da costa galega (cabo Silleiro, por exemplo), temos que admitir que as angélicas (verdadeiramente) portuguesas são uma pequeníssima minoria dentro da população global da planta. E, como nunca fomos às Berlengas e apenas a vimos na Galiza, é angélica galega que gostamos de lhe chamar.

Se a Angelica pachycarpa aparece, e com frequência, entre Baiona e A Guarda, ali mesmo junto à foz do Minho, por que não dá ela o salto para terras de Caminha ou Viana? Acontece que já deu, mas da incursão resultou apenas uma população escassa e efémera. Em 1999, Henrique Nepomuceno Alves encontrou menos de uma dezena de plantas nas dunas atlânticas de Caminha, junto à mata do Camarido, e o encontro repetiu-se em várias ocasiões até 2009, mas depois disso ninguém mais logrou avistar a Angelica pachycarpa na costa norte de Portugal. Talvez alguma intervenção destrutiva nas dunas tenha apressado o desaparecimento, mas a verdade é que a ecologia estava errada: a Angelica pachycarpa não é uma planta de dunas; não está equipada para lidar com a instabilidade do solo arenoso, e precisa da dureza da rocha para se firmar. No litoral minhoto, as altas falésias em que a Angelica pachycarpa poderia ser feliz, e que são tão frequentes na costa galega, estão quase totalmente ausentes, assinalando-se o promontório de Montedor como única excepção de monta. (Esta lembrança de que as linhas costeiras do Minho e da Galiza têm fisionomias muito contrastantes é o nosso contributo para incentivar o intercâmbio turístico entre as duas regiões.)

Embora de porte modesto para o seu género (menos de 1 m de altura), a Angelica pachycarpa tem um aspecto muito robusto, com grandes folhas semi-suculentas e caules sólidos e ramificados. O epíteto pachycarpa significa frutos grossos, referindo-se à espessura da membrana que os envolve. No aspecto geral, e mesmo em alguns detalhes morfológicos, a Angelica pachycarpa é uma versão reduzida da magnífica Angelica lignescens açoriana. Mas aqui talvez a ordem dos factores esteja trocada: não sendo improvável que a planta insular descenda directamente da planta continental (estudo que, tanto quanto sabemos, está por fazer), é mais correcto dizer que a A. lignescens é uma versão aumentada da A. pachycarpa.

Nota. Atendendo ao magro contingente da espécie em território nacional, e ao seu presumível desaparecimento da costa minhota, a Lista Vermelha da Flora de Portugal atribuiu à A. pachycarpa o estatuto de "em perigo".