27/12/2016

Posfácio

Escrevi este texto, por convite, em Janeiro de 2015, para servir de posfácio a uma edição ilustrada do conto O homem que plantava árvores, de Jean Giono. Dois anos depois, é inevitável concluir que a edição encalhou de vez. Mesmo que alguma vez saia do prelo, não é certo que inclua o texto tal como está. Acho que ele merece ser lido, e aproveito a ocasião para o ilustrar a meu gosto. Mais do que um comentário ao conto de Jean Giono, trata-se de uma celebração dos carvalhos e dos carvalhais.

Plantar árvores: porquê, onde e quais?

Elzéard Bouffier, o protagonista do conto de Jean Giono, fez com que uma região árida se transfigurasse ao plantar centenas de milhares de árvores. A água regressou aos ribeiros e às fontes, os vales voltaram a ser férteis e a recompensar os cultivadores, voltaram as flores e os pássaros, aldeias outrora em ruínas foram reocupadas por uma nova e esperançosa geração. Se as árvores puderam fazer tudo isso; se sabemos, além do mais, como elas tornam respirável o ar que nos envolve, e como é agradável a sua sombra nos dias de estio — então plantar árvores, e quantas mais melhor, é indiscutivelmente uma boa ideia.
Contudo, uma boa ideia mal executada pode ser contraproducente. Nem todos os lugares são indicados para o plantio, nem todas as épocas do ano são ideais para essa tarefa, nem todas as árvores são igualmente desejáveis, nem toda a gente domina as competências úteis para uma operação bem sucedida. E, em muitas ocasiões, é mais acertado e valioso plantar árvores na cidade (seja para arborizar uma rua, um jardim ou um parque) do que em espaços naturais.
Portugal é um país bastamente arborizado, sobretudo no norte e centro do seu território. Só na extensa planície alentejana, onde os esparsos povoamentos de sobreiros e azinheiras se estendem sem fim à vista, é que nos domina a impressão de serem escassas as árvores para uma província tão vasta. E mesmo aí o cenário muda ao sermos confrontados com olivais intensivos em que as árvores se concentram aos milhares por hectare. No resto do país, vemos desfilar eucaliptais, pinhais e acaciais em formação cerrada ao longo de auto-estradas, vias rápidas e estradas nacionais. Todas essas árvores cumprem tarefas ambientais da maior importância, a começar pelo tão falado «sequestro do carbono». Só que, além da vertente global em que se joga a habitabilidade futura do planeta, as nossas preocupações com o ambiente devem atender a aspectos locais, em que a palavra-chave é «biodiversidade». Numa plantação de eucaliptos (ou de pinheiros, ou de choupos-negros) o ar pode ser puro e revigorante, as águas do ribeiro podem ainda correr frescas e cristalinas. De facto, se forem esses os únicos parâmetros de comparação usados, talvez o eucaliptal não seja assim tão inferior ao carvalhal. Mas um carvalhal maduro tem muita coisa além dos carvalhos: tem prímulas, anémonas, lírios, hipericões, morangueiros, gerânios, gilbardeiras, madressilvas, selos-de-Salomão, violetas, narcisos e jacintos; tem variadíssimos fetos, musgos, fungos e líquenes; tem medronheiros, azevinhos, padreiros, loureiros e azereiros; tem os vermes e insectos que se alimentam da profusão vegetal, e os pássaros e reptéis que fazem pasto dos insectos; tem esquilos, javalis e corços. Em contraste com a vida exuberante de uma genuína floresta, uma plantação florestal é um deserto verde.
Assim, se a nossa motivação for dar uma mãozinha à natureza, é preferível plantarmos carvalhos e outras árvores autóctones, mais capazes de interagir com a vida à nossa volta do que as árvores originárias de outros países ou continentes. Devemo-nos lembrar, porém, de que as árvores já existiam no planeta antes de surgir a espécie humana, e que elas sabem reproduzir-se sem a nossa ajuda. Em espaços onde a natureza foi preservada ou tem condições para se regenerar, é talvez preferível acarinhar aquele rebento de carvalho que nasceu espontaneamente em vez de insistirmos em plantar o nosso. Nesses lugares, a exemplo do que fez Elzéard Bouffier, é quase sempre melhor semear do que plantar, tendo o cuidado de fazer uso, sempre que possível, de sementes fornecidas pelas árvores que já lá existam.
E será que, se dispusermos (luxo improvável nos dias de hoje) de um terreno amplo, e formos capazes de igual paciência e sabedoria, podemos ao fim de muitos anos criar uma floresta tal como fez Elzéard Bouffier? As centenas de anos que leva um carvalhal maduro a estabelecer-se dificilmente podem condensar-se nas poucas décadas em que decorre uma vida humana. Mas talvez consigamos uma biodiversidade razoável se não sujeitarmos o nosso projecto de floresta à mesma limpeza cega e obsessiva com que nos jardins urbanos se aparam os relvados.
Se, em muitos lugares, a melhor ajuda que podemos dar à natureza é não a perturbar, abdicando com humildade de deixar a nossa marca, já na cidade o caso é outro, pois a maioria das árvores que lá existem tiveram mesmo que ser plantadas. E aí plantá-las é uma questão de saúde pública, tanto física como mental. Já não se trata de imitar a natureza, mas de dela tomar de empréstimo algo que amenize o artificialismo do meio urbano. Seleccionar a árvore adequada para cada local (em rua estreita ou jardim acanhado não cabem carvalhos nem plátanos); plantá-la na altura certa (quando caem as primeiras chuvas do Outono); não esquecer que, depois de plantada, a árvore vai precisar das nossas atenções durante dois ou três anos para não morrer à míngua de água: eis algumas das preocupações a ter em conta. E, se certas árvores exóticas (como a tília, o plátano, o ginkgo, o tulipeiro e as diversas magnólias) são excelentes para as cidades, tanto pela sua resistência à poluição como pelas suas virtudes ornamentais, não seria mau dar às nossas árvores autóctones, que têm sido tão ignoradas, algum protagonismo na arborização urbana. Além dos carvalhos, sobreiros, azinheiras, lódãos e padreiros (os dois últimos já plantados com alguma assiduidade em jardins e arruamentos), poder-se-iam usar loureiros, azevinhos, azereiros, bétulas, zelhas, cerejeiras, freixos, sanguinhos e pilriteiros: entre árvores de folha caduca ou de folha perene, de grande, médio ou pequeno porte, umas que resistem melhor ao frio e outras ao calor, são muitas as possibilidades de escolha.
Não sendo esta a ocasião para descrever todas essas árvores, não queremos deixar de falar do carvalho, esse construtor de florestas. Na verdade são várias as árvores designadas por esse nome, já que em geral o termo «carvalho» pode aplicar-se a todas as espécies arbóreas ou arbustivas do género Quercus, das quais se contam pelo menos oito em Portugal. O que todos os Quercus grandes ou pequenos têm em comum são as sementes em forma de bolota. Contudo, é mais corrente reservar-se o nome «carvalho» para as árvores de folhagem caduca ou marcescente, já que as espécies perenifólias como o Quercus suber (sobreiro), o Quercus rotundifolia (azinheira) e o Quercus coccifera (carrasco) são amplamente conhecidas por outros nomes. Usando essa terminologia mais estrita, são quatro as espécies arbóreas a que em Portugal chamamos carvalho. Um deles, o Quercus canariensis, só existe por cá na serra algarvia de Monchique, e daí o ser conhecido como carvalho-de-Monchique. Muito semelhante no porte e na folhagem é o Quercus faginea (carvalho-cerquinho ou carvalho-português), que é o carvalho mais comum no Algarve e no litoral centro, reaparecendo depois na Terra Quente transmontana. É especialmente frequente no Maciço Calcário Estremenho, onde é a principal árvore nos bosques naturais mais bem conservados. Árvore de médio porte, não ultrapassando os 20 metros de altura, de copa larga, as suas folhas são aproximadamente elípticas, com margens dentadas. Os dois restantes carvalhos portugueses têm folhas profundamente recortadas (ou lobadas), mais de acordo com a imagem tradicional que temos dessas árvores. O Quercus robur (carvalho-alvarinho ou carvalho-roble), capaz de exceder os 30 metros de altura e de viver várias centenas de anos, é tido em grande parte da Europa como o carvalho por excelência, tanto pelas históricas florestas em que era (e é) a árvore dominante como pela madeira que fornece, uma das mais estimadas em marcenaria. Era nestas árvores que o druida da aldeia de Astérix se empoleirava para colher o visco, ingrediente indispensável para a confecção da poção mágica; e foram estes os carvalhos com que Elzéard Bouffier criou de raiz a sua floresta. Em Portugal, o carvalho-alvarinho, que se distribui sobretudo pelo quadrante noroeste do país (Minho, Douro Litoral e Beira Litoral), pode ser apreciado como árvore isolada (vários são os exemplares multicentenários classificados como «árvores de interesse público») mas também formando bosques mais ou menos extensos. Os nossos melhores carvalhais encontram-se no Minho, e no Gerês é justamente famosa a Mata da Albergaria, que alberga uma biodiversidade ímpar. Se avançarmos para o interior do país, ultrapassando a linha do Gerês, Marão, Montemuro e Estrela, o carvalho-alvarinho vai sendo gradualmente destronado por um carvalho de menor porte e madeira menos nobre, o carvalho-negral, que tem o nome científico de Quercus pyrenaica e é também conhecido como carvalho-pardo-das-Beiras. As folhas do carvalho-negral são mais largas e recortadas que as do carvalho-alvarinho, mas o modo mais expedito de as reconhecer é pelo tacto, já que elas são macias, quase felpudas, ao passo que as do carvalho-alvarinho são glabras. Frequente no interior norte e centro do país, desde a serra de Montesinho, em Bragança, até à serra de São Mamede, em Portalegre, o carvalho-negral tem uma grande capacidade de regeneração após o fogo, formando matos baixos e densos em áreas recém-ardidas. Menos comuns são os carvalhais bem desenvolvidos, mas vão ocorrendo aqui e ali ao longo da área de distribuição da espécie, com os mais notáveis exemplos a concentrarem-se no nordeste transmontano, em especial nas serras de Montesinho, Nogueira e Bornes.
Resulta desta dissertação que, se o leitor quiser valorizar o seu jardim ou o seu terreno plantando ou semeando carvalhos, então deverá escolher aquele que melhor se adapte ao clima e às características do solo da sua região. Em Lisboa e em toda a faixa litoral daí até Coimbra, onde predominam os solos calcários e o clima é acentuadamente mediterrânico, a opção pelo carvalho-cerquinho é quase uma (agradável) necessidade. No entanto, há nichos que podem comportar excepções, como a serra de Sintra: pela abundância de sombra e frescura, trata-se de um autêntico enclave nortenho às portas de Lisboa, onde é sabido que o carvalho-alvarinho vegeta alegremente. Subindo de Coimbra até ao Minho, e mantendo-nos mais ou menos a oeste da linha recta que passa por Seia (na serra da Estrela) e Vila Real (nos contrafortes do Marão), encontramos as regiões mais pluviosas e fartamente arborizadas do país: é o território do carvalho-alvarinho, escolha indiscutível do carvalho-a-plantar para quem lá vive. Mas mesmo aí já começa a aparecer o carvalho-negral, e não apenas nas altitudes mais elevadas onde costuma ser preponderante. Na Beira interior e na Terra Fria transmontana o caravalho-negral é a escolha de eleição, mas quem more em Vila Real ou noutro ponto da difusa linha de fronteira entre as duas espécies pode dar-se ao luxo de plantar carvalhos-negrais e carvalhos-alvarinhos à mistura.
Porto, Janeiro de 2015
Paulo Ventura Araújo

20/12/2016

Mistérios de Cantanhede


Phagnalon rupestre (L.) DC.


Vim eu um dia antes para cima para estar mais perto do local onde combinámos e é isto. Combinei às 13:30, são 13:17 e ainda estou no quarto do hotel a escolher que boxers hei-de levar. Vou optar pelos justos. Os vermelhos. Afinal não é todos os dias que almoçamos com Deus!

Quem me conhece sabe que não é meu apanágio chegar atrasado. Mas como é que conseguiria evitá-lo? Combinasse onde combinasse e a que horas combinasse, Ele já lá estaria! Mesmo antes de termos combinado, Ele já lá estaria!

Ora bem... chaves, óculos de sol, telemóvel... acho que está tudo. Ah, a carteira, que Ele é menino para querer rachar a conta. Tabaco compro ali na bomba, que parece mal estar a cravar cigarros a Deus. (...) Bom, está tudo. Que nervos, estou agora no carro a imaginá-lo a olhar para o relógio e a bufar. Devia ter convidado o Buda, não é propriamente um deus, mas sempre tem fama de ser mais calmo e paciente. (...)

Olha, vai já aqui ao lado deste, que assim fica à sombra. Espero que Ele tenha percebido que era aqui na Meta dos Leitões. Há tantos restaurantes com leitão que às vezes podia... (...)

Agora que estou aqui aflito a farejar a sala com os olhos é que percebi que Deus nem me disse como vinha vestido. Nem sei do que é que estou à procura. Duma túnica branca? Dum colete de bombazina? Não sei. Cabelo apanhado? Cabelo solto? É estúpido estar a olhar para uma sala repleta de famílias que reluzem tanto ou mais do que o próprio leitão que estão a aspirar alarvemente, à procura de Deus. Espero que o meu sobrolho franzido não faça com que este empregado me aborde para perguntar o que desejo, porque está fora de questão responder...

– O que é que deseja? – disparou-me o dito empregado, sem me deixar acabar o raciocínio.
– Estou à procura de Deus. Viemos os dois ao leitão. (...)

Estão todos em grupos. Estão todos acompanhados, não vejo ninguém sozinho, a não ser aquele senhor careca e gordo, que está a... olhar para o relógio e a bufar. Será...?

– Pombares! Ó, Pombares! – diz o senhor (ainda com letra minúscula, na dúvida), acenando-me com um guardanapo branco que já me parece suavemente carimbado de queijinho seco curado.

Meu Deus, é Deus! (...)

– Gostava de lhe colocar algumas questões. E a verdade é que até agora nem me provou sequer que é Deus.
– Estás a ser parvo, Frederico. Achas que sou o quê? Vamos fazer antes ao contrário: prova-me que eu não existo. É melhor duas doses que aquilo é só osso – Rapaz! Rapaz! São duas de leitão, com molho.
– Temos então um Deus tirano?
– Querias o quê? Eleger o teu Deus democraticamente? Por acaso, têm-te corrido bem as eleições democráticas, para estares com essa moral?
– O senhor é que está mal habituado. Toda a gente fala baixinho consigo, sem razão alguma. Rezam baixinho, como se "baixo é, alto lhe parece". A bichanar, a bichanar... Porque é que as pessoas não gritam consigo?! (...) A verdade é que estas pessoas colocam a vida nas suas mãos e o Senhor lava-as sempre que pode.
– Ah! Então, para ti, não sou só a Sorte como o Azar, é isso?

E limpando os cantos da boca de quaisquer resquícios de leite creme, Deus diz-me:

– É esse o teu problema, Pombares. (...) O teu problema não é, nem nunca foi, não acreditares em mim. Como não precisas, não ligas, não tens fé – e levantou-se, aprontando-se para sair.
– Então e a conta?!
– Já está paga.
– Mas quanto lhe devo? – digo eu, com voz de quem não quer ficar a dever nada a Deus.
– Deixa estar, Pombares. Depois acertamos contas.

Sorriso de xeque-mate e, num piscar de olhos meu, desapareceu.

Frederico Pombares, Almoço divino (O Fio à Meada – diálogos imprevistos, Escrit'orio Ed., 2010)

13/12/2016

Verbasco com flocos


Verbascum pulverulentum Vill.


No ciclo anual das plantas de berma de estrada, o amarelo estival dos verbascos vem substituir nos taludes o cor-de-rosa primaveril das dedaleiras. Claro que isso se passa nas estradas de um país imaginário que gostaríamos que fosse o nosso, porque no país real é sinal de brio encharcar os taludes com herbicidas. Mas aqui e ali há sempre uma distracção que as plantas aproveitam, pequenos oásis que extrapolamos, sonhadoramente, para o país inteiro.

Não que os verbascos espontâneos em Portugal (há oito espécies nativas, a que se soma uma introduzida) sejam exclusivamente estradeiros. O que há é espécies (Verbascum virgatum, V. thapsus, V. sinuatum e até o V. pulverulentum, hoje na montra) com versatilidade suficiente para não desperdiçarem, no meio da selva urbana, os recantos de solo livre que existam em bermas de auto-estrada ou por entre os nós rodoviários. Outras espécies, com preferências de habitat mais definidas, são menos vistas. Por exemplo, o V. giganteum (endémico da Península Ibérica) e o V. litigiosum (endémico de Portugal continental) só se dão em areias litorais.

Quase todos os verbascos são plantas bienais, desenvolvendo uma roseta basal no primeiro ano e florindo exuberantemente, com vasta produção de sementes, no segundo e último ano de vida. A distinção entre espécies faz-se atendendo sobretudo ao carácter da inflorescência (se é simples ou ramificada, se as flores surgem espaçadas ou muito juntas, se os estames são glabros ou cobertos por penugem densa, etc.) e à forma e indumentação das folhas. O Verbascum pulverulentum, quando plenamente desenvolvido (é capaz de atingir 1,5 m de altura), tem uma arquitectura inconfundível, que faz lembrar um sumptuoso candelabro (veja a 1.ª foto). Outro modo fiável de o reconhecer, denunciado aliás pelo epíteto pulverulentum, é que ele está recoberto por uma penugem branca que se vai desprendendo em flocos.

Distribuído por boa parte da Europa ocidental, incluindo a Grã-Bretanha, mais raro na região mediterrânica, o verbasco-pulverulento (nome que, sendo embora adaptação directa do nome científico, é português correcto) surge em Portugal com maior frequência no interior norte e centro; no portal Flora-On não há registos da espécie a sul da linha que vai de Santarém a Portalegre. As plantas que fotografámos, na margem portuguesa do rio Minho em Monção, parecem ter-se instalado lá por engano, tão longe estão do grosso das populações portuguesas da espécie. Contudo, o portal Anthos dá conta de observações antigas do verbasco-pulverulento na margem galega do rio. A última, em 1953, foi na povoação de As Neves, a apenas 10 Km do local onde agora o vimos.

06/12/2016

Memória das Índias

Logo à entrada do Parque Natural de Corrubedo (complexo dunar e lagoas de Carregal e Vixán), na Galiza, há avisos mais ou menos explícitos para que cada visitante cumpra todas as directivas que minimizem o impacto da sua presença naquele ecossistema. Mas o excelente estado de preservação deste vasto habitat, que então testemunhámos, não se devia apenas a esta sinalética de advertência. O parque contava com um grupo de biólogos rodeados de Floras que, além de receberem os visitantes esclarecendo-os sobre a biodiversidade que ali poderiam apreciar, garantiam primorosamente a conservação do parque. Alguns de nós tiveram até a ventura de receber uns guias de bolso muito bem elaborados sob a égide da Xunta de Galicia, da Dirección Xeral de Conservación da Natureza e da Consellería de Medio Ambiente e Desenvolvemento Sostible, com informação detalhada sobre aves, coleópteros, anfíbios e répteis, orquídeas e outra flora. Na nossa primeira visita a Corrubedo, demos sobretudo atenção às populações de Epipactis palustris e de Omphalodes littoralis (esta guardada por um verdadeiro polícia), mas, entusiasmados, agendámos uma segunda visita para admirar o resto.

Quando lá voltámos uns anos depois, a equipa de biólogos e vigilantes da natureza tinha sido dispensada, e o centro de atendimento de visitantes encerrara de vez. Lamentámos que o investimento na divulgação e promoção da ciência não tivesse escapado, pela sua importância, ao crivo da austeridade. E, tristonhos, seguimos para a lagoa de Vixán porque íamos à procura da Glaux maritima, uma Primulacea que já terá frequentado os estuários da costa norte portuguesa mas de que não há registos actuais. Sem sucesso, porém. Apesar de termos encontrado vários exemplares de uma planta que, segundo a foto de um dos livrinhos que nos ofereceram em Corrubedo, é a Glaux maritima.



Bacopa monnieri (L.) Wettst.


Mas não é. Trata-se de uma espécie perene de margens de regatos perto do mar, com talos rasteiros, folhas opostas, espatuladas, suculentas e pintalgadas de glândulas, que tem alguma tendência invasora. É famosa (como denunciam as inúmeras designações em inglês: waterhyssop, brahmi, thyme-leafed gratiola, herb of grace, Indian pennywort) em ervanária por conter alcalóides antioxidantes prescritos para fortalecer a memória (ainda que estas virtudes não estejam acima de qualquer dúvida). Mais frequentemente, é usada para ornamentar aquários. Tem uma distribuição cosmopolita, preferindo no entanto regiões tropicais, mas é nativa da Índia, Austrália, parte da Europa, África, Ásia, América do Norte e do Sul. Em Portugal, ter-se-á instalado no Minho, mas nunca lá a vimos e é certamente (ainda) rara.

Crê-se que o epíteto monnieri homenageia Louis Guillaume Le Monnier (1717-1799), um médico e naturalista francês que foi professor de Botânica no Jardin du Roi (mais tarde Jardin des Plantes) em Paris.

29/11/2016

Cerefolho bêbado



Chaerophyllum temulum L.


Para quem gosta de arriscar a vida consumindo cogumelos silvestres, as umbelíferas ofecerem mais uma apelativa variante da roleta russa. Há umbelíferas de fama e proveito reconhecidos nas artes culinárias (como a cenoura, a salsa e o funcho, só para mencionar as mais triviais), mas há outras, com o mesmo aspecto geral, que são mortalmente venenosas (como a cicuta e a rabaça). À cautela, mais vale não as levar à boca, pois mesmo quem raramente tem dúvidas se pode enganar, e um engano destes é irremediável.

O cerefolho-bravo (ou cerefólio-bravo) acima ilustrado exemplifica bem os riscos que corre um respigador de plantas silvestres. O cerefólio cultivado (Anthriscus cerefolium) não é, de facto, muito diferente, sobretudo no formato das folhas e dos frutos, mas, enquanto que o segundo é usado como erva aromática, o primeiro é tóxico. Não consta porém que seja mortal em pequenas doses, e a possível confusão entre as duas plantas não resiste ao teste do paladar. É por isso muito improvável a ingestão por humanos do cerefolho-bravo como condimento alimentar. Contudo, ele foi em tempos usado como erva medicinal, e entre os efeitos secundários reportados contam-se um andar cambaleante, apatia, cólicas e (nos casos mais graves) cegueira temporária. A dificuldade em manter a postura vertical assemelha-se à embriaguez, razão para o maroto do Lineu baptizar a planta com o epíteto temulum (ou temulentum), que significa bêbado em latim. Reforçando essa conexão, as manchas cor-de-vinho no caule (fotos aqui) lembram a tez dos alcoólicos inveterados. Iguais manchas decoram as hastes da cicuta (Conium maculatum — ver foto), que, entre outros caracteres, se diferencia do cerefolho-bravo por ser inteiramente glabra.

Abandonada a perigosa ideia de o comer, permanece o desafio de distinguir o cerefolho-bravo de outras umbelíferas aparentadas. Aquelas que lhe é mais próxima, pela folhagem e porte geral, é a salsa-das-vacas (Anthriscus sylvestris). São ambas hirsutas, os frutos são quase indistinguíveis, as hastes podem nos dois casos atingir ou ultrapassar um metro de altura, e as umbélulas são decoradas com as mesmas bractéolas pendentes (compare a 3.ª e 4.ª fotos acima com esta). O modo mais expedito de distinguir as duas é notar que o cerefolho-bravo tem pétalas fendidas (4.ª foto) e que salsa-das-vacas as tem inteiras (foto aqui).

O motivo da nossa simpatia pelo Chaerophyllum temulum, que não sobressai nem pela beleza nem pela utilidade, é que um congénere seu, o Chaerophyllum azoricum, é um raro endemismo açoriano, merecedor do nosso maior apreço. Ensina a etimologia que a palavra graga Chaerophyllum significa "folhas que agradam". Sem que Lineu (que, com esse "agrado", quis referir-se a impressões olfactivas e não tanto visuais) alguma vez o tenha conhecido, a formosura do Chaerophyllum azoricum justifica inteiramente tal descrição.

22/11/2016

O futuro é amarelo

Face à tragédia de migrantes e refugiados a que, lamentavelmente, o mundo todo-poderoso não consegue pôr termo, quem deprecia uma espécie exótica, quando ela se revela uma ameaça para a flora endémica de uma região, pode ser apontado como defendendo abusivamente a reserva de um território para os seus habitantes autóctones. Eliminemos, porém, desde já este mal-entendido. Sabemos que não há fronteiras para a fauna ou para a flora, e que declarar uma espécie nativa de um local é uma decisão datada, ainda que tenha fundamento científico. Decerto há plantas em Portugal cujos progenitores terão aqui aportado, vencido a competição com outras espécies e visto alterar-se a sua herança genética pela adaptação a novos polinizadores ou pela colonização de um substrato diferente, tornando-se a pouco e pouco, num processo evolutivo admirável, parte do que hoje, milhões de anos depois, consideramos flora endémica lusitana. O impacto desses imigrantes nos ecossistemas de então seria, por algumas normas actualmente em vigor, comparável à de uma invasão por extraterrestres perigosos. Que razões há então, afora o apelo estético e o interesse botânico, para a erradicação de espécies invasoras, para a listagem cuidadosa das espécies nativas em situação vulnerável e para os programas de conservação, se afinal o futuro pode, sem a nossa (por vezes danosa) intervenção, destinar ao planeta não um deserto mas um coberto vegetal homogéneo, formado por um limitadíssimo número de espécies muito resistentes e bem adaptadas?

Há pelo menos um motivo a que é prudente prestarmos toda a atenção: a sobrevivência da humanidade pode depender, mais do que supõe ou consegue aferir, dos benefícios da biodiversidade. É que tem sido essa variedade biológica e a cooperação entre espécies, num plano de subsistência mútuo, que nos tem garantido alimento, saúde, energia, recursos para a pesquisa tecnológica e a descoberta de novos remédios; e o que poderá assegurar uma resposta eficiente às mudanças no clima. A sustentabilidade da vida na Terra só será possível se os ecossistemas tiverem múltiplos meios de preservar impolutas as fontes de água, de manter a fertilidade do solo arável, de produzir ingredientes variados para a nossa dieta equilibrada, de reciclar os nutrientes do planeta, de travar o declínio dos polinizadores, salvaguardando o seu pacto com as plantas, de renovar as virtudes da nossa atmosfera e, não menos importante, de usufruir da diversidade genética em redutos silvestres.



Vem este arrazoado a propósito de mais uma espécie exótica, originária da América Central e do Sul, que vimos na lagoa de Vixán, na costa da Galiza. Pela sua grande capacidade invasora, a Ludwigia grandiflora é uma forte ameaça a este formoso espaço natural. Herbácea perene, alta, de flores solitárias mas vistosas no Verão e absoluta dependência de solos encharcados, consegue reproduzir-se vegetativamente e aprecia sobremaneira ribeiros de fraca corrente, remansos, arrozais e represas. Os frutos são cápsulas longas com uma coroa de sépalas e sementes firmemente incrustadas, que, mal se libertam, flutuam na água ou se disseminam arrastadas pelo vento. Para travar a propagação da planta, em alguns países da Europa são proibidos tanto a sua comercialização como o seu transporte.



Ludwigia grandiflora (Michx.) Greuter & Burdet

Cremos, porém, que ela não tardará a chegar ao Minho. Das três espécies do género Ludwigia que ocorrem na Península Ibérica, só a L. palustris, de flores muito discretas, é autóctone e tem populações conhecidas em Portugal.

15/11/2016

Sapinhos no sapal




Spergularia marina (L.) Besser

Os sapinhos do reino vegetal não coaxam nem têm patas, mas pelo menos são verdes. Os nomes comuns das plantas, quando os há genuínos, conseguem ser tão misteriosos como certos nomes científicos. Com um pouco de imaginação, lá se consegue engendrar uma explicação mais ou menos plausível mas sem qualquer base segura. Assim, algumas plantas do género Spergularia dão-se bem em habitats salobros de estuários ou de rias — ou seja, naqueles lugares atraentes para anfíbios a que costumamos chamar sapais. E que haja sapinhos num sapal parece quase uma necessidade. O maior óbice a esta pseudo-explicação é que as espécies mais comuns do género (como a Spergularia purpurea) preferem lugares secos, às vezes pisoteados, e não têm especial apetência pelo sal.

Um sapinho que gosta mesmo de água com sal é a Spergularia marina que ilustra este texto, fotografada no início de Junho na Barrinha de Esmoriz. O epíteto marina já denuncia, aliás, a sua preferência por habitats costeiros. Para dificultar a vida ao amador de botânica, não é esta a única Spergularia que surge em prados salinos e em juncais de beira-mar: uma outra não menos frequente nesses lugares é a S. media, sendo até habitual encontrá-las juntas. Uma olhada às fotos desta última convence-nos que distingui-las não é trivial, como aliás seria de esperar num género tão uniforme como este. Mas não é tarefa impossível: se atentarmos no aspecto geral da planta, a S. marina é mais grácil, com caules mais finos e flores mais pequenas do que a S. media. Não havendo oportunidade de as observar lado a lado, este critério comparativo de pouco nos serve. Aí socorremo-nos de um outro critério mais objectivo, mas que talvez exija o uso de lupa (ou de um par de olhos bem afinados): a Spergularia marina tem um número variável de estames por flor, em geral seis ou menos (confira nas duas últimas fotos), ao passo que na S. media as flores nunca têm menos que sete estames e quase sempre têm dez (veja esta foto).

Já que o método da contagem se revela, neste caso, tão bem sucedido, eis mais um exemplo da sua aplicação. O nome Spergularia provém de Spergula, e informa-nas que estes dois géneros são semelhantes. E são na verdade tão próximos que alguns autores até os consideram sinónimos. A Spergula arvensis, de flor branca, é presença habitual em pousios ou na orla de campos de cultivo. Não é porém a cor das flores que separa os dois géneros, pois também no género Spergularia há espécies de flor branca (lembremos a nossa bem conhecida Spergularia azorica). O segredo está no número de estigmas, que são aqueles apêndices terminais do carpelo (parte feminina da flor) que recebem os grãos de pólen. Na Spergularia são três os estigmas (última foto acima e também aqui), enquanto que na Spergula eles são cinco (veja aqui).

08/11/2016

Trifloricos

Depois de alguns anos de passeios botânicos, entendemos agora melhor as associações entre plantas a que se referem, em latim, os artigos científicos, e aprendemos a valorizar o tipo de solo que elas preferem, ou exigem, por ser esse um indicador fiável para as encontrarmos. Por isso, decidimos consultar uma lista de geossítios afamados do nordeste do país e visitar alguns dos afloramentos calcários que dela constam. Em Macedo de Cavaleiros, os que não são pedreiras desactivadas talvez tenham menos interesse para os geólogos, por esconderem pormenores da rocha, mas são os de maior potencial para quem quer ver plantas. Lembram os anfiteatros esbranquiçados das serras de Aire e Candeeiros, também eles quase sem flores em Novembro. E, como prevíramos, ali estavam muitos exemplares de Spiranthes spiralis. Ao lado, num talude de solo bem drenado, soalheiro e virado a sul, avistámos, já em fim de ciclo, exemplares deste raro Erigeron.

Erigeron acris L.

Neste género, conhecíamos os floricos rasteiros dos muros (o mexicano E. karvinskianus) e o fantástico E. alpinus que vimos em prados de montanha na Cantábria. O das fotos é anual, ocasionalmente bienal ou mesmo vivaz; em cada Outono, o talo rugoso e solitário, de uns 40 cm de altura, tinge-se com um atraente tom púrpura. Nas inflorescências, com cerca de 18 mm de diâmetro e de pés altos, notam-se as «pétalas» pequenas e de cor lilás dos numerosos florículos externos; os do disco central, em contrapartida, dão uma coloração amarela ao conjunto. Vista de longe, esta combinação de cores parece azul, daí a designação comum inglesa, blue fleabane. E se observarmos melhor os capítulos florais, notamos um terceiro tipo de florículos, com os papilhos que mais tarde serão os pára-quedas dos frutos. Formam um anel, que se nota bem entre o bordo e o centro da inflorescência na segunda foto. Por esta peculiaridade, estas plantas já estiveram no género Trimorpha.

A floração decorre de Junho a Setembro. A par das associações vegetais e do tipo de habitat, este é mais um parâmetro a ter em conta aos programar os seus passeios — ou terá de os repetir no ano seguinte, como nós, para obter fotos mais expressivas.

01/11/2016

Novas azedas

Rumex intermedius DC.

Já se sabe que o valor de mercado de um produto aumenta com a raridade, e que aquilo que é desdenhado por ser abundante num certo país ou região pode ser valioso e cobiçado noutras paragens. Consideraçôes análogas guiam-nos muitas vezes no turismo botânico que praticamos. Nas grandes extensões do centro-oeste do país dominadas por substratos calcários, encontramos com facilidade muitas plantas (entre elas um grande número de orquídeas) que, por falta de habitat apropriado, se fazem escassas ou ausentes no resto do território. Toca então de procurá-las nesses lugares improváveis, não porque ganhemos dinheiro com isso, mas porque o achado se torna mais gratificante. Ressalve-se que essa procura não é inteiramente arbitrária: se uma planta só se dá mesmo em calcários, seria tolo querer vê-la em afloramentos xistosos. Mas o fogo primordial misturou de forma caótica os ingredientes de que o planeta é feito, fazendo surgir ilhas calcárias em mares (sólidos) de xisto ou granito. São essas ilhas, espalhadas aqui e ali pelo nordeste transmontano, que gostamos uma vez por outra de visitar em busca de surpresas.

As minas de Santo Adrião, em Vimioso, são dos maiores afloramentos calcários de Trás-os-Montes. Encerrada a pedreira, já nada parece ameaçar os azinhais que, durante anos, foram sendo abocanhados pelo avanço da exploração. Apesar das feridas, o que sobrou, espalhado por dois ou três montes e atravessado por dois ribeiros, é um bosque de árvores maduras que impõe respeito, com mais de 3 km de comprimento e uma área total que ultrapassa 1 km^2. Sob a copa ampla das azinheiras ou aproveitando as clareiras das zonas mais pedregosas, o coberto arbustivo e herbáceo é rico e condimentado com aquelas espécies que denunciam o solo alcalino. Além das orquídeas (duas delas muito raras) e da sempre sedutora Leuzea conifera, aparece uma azeda (género Rumex) que se destaca pela inaudita elegância. Quando com ela deparámos, e ainda sem lhe poder dar nome, soubemos logo que era a primeira vez que a víamos. Alta, de quase 1 m de altura, haste fina e ramificada, inflorescência como uma nuvem tocada pelo pôr-do-sol, folhas sagitadas, estreitas e compridas como lanças.

Consultados os manuais, concluímos tratar-se do Rumex intermedius. Tem certa preferência por calcários, mas não mantém com eles uma relação de exclusividade. Apesar de muito espalhado no país vizinho, é escasso em Portugal e, como informa o mapa de distribuição no Flora-On, encontra-se sobretudo no Algarve. A Flora Ibérica sublinha essa preferência pelo sul, assinalando-o apenas em quatro províncias: Estremadura, Algarve, Alto e Baixo Alentejo. O salto para Trás-os-Montes, província que agora se acrescenta à corologia da espécie, é considerável. Como chegou ele àquela ilha calcária transmontana sem usar, que se saiba, os calcários do centro do país como trampolim? Veio certamente de Espanha, pois Portugal não é uma ilha e estamos todos embarcados na mesma jangada de pedra.

25/10/2016

O sol na cascalheira

No acesso ao Cabeço das Flores e à praia do Zimbralinho, na ponta oeste da ilha de Porto Santo, nota-se logo com alguma estranheza o solo amarelo farinhento. Feito de areia com fragmentos de conchas e algas, esfarela-se ao mais leve toque, desabando com a trepidação causada pela passagem de veículos. Não fosse a chuva miúda, afinal não tão rara nesta ilha, sairíamos dali como padeiros no fim de uma fornada. Estamos num dos mais famosos geossítios da ilha, com indícios de vulcanismo submarino e habitats movediços, onde a erosão é preocupante apesar de ali terem sido plantados muitos pinheiros-de-Alepo (uma espécie resistente ao vento e à maresia com origem na região mediterrânica e descrita a partir de exemplares sírios).


Porto Santo: plantação de pinheiros-de-Alepo (Pinus halepensis Mill.) no Zimbralinho

Prossigamos até ao topo da falésia. Com o mar azul-turquesa ao fundo, começa ali uma escadaria íngreme que nos levaria a uma pequena enseada. Porém, a impedir-nos a descida está um guarda vigilante. Diz-nos ele que, naquele dia, não é permitido descer à calheta pois há uma equipa a preparar a temporada balnear que se avizinha. Onde? Ali, no cabeço, vê? Estão a soltar as pedras mal presas, as que não tardariam a tombar dos taludes. Uma vez caídas, restará uma casca bem segura que só será um perigo daqui a uns dois anos, altura em que é realizado um novo descasque.



Restou-nos recuar e procurar plantas cobertas de pó nos recantos das rochas do caminho. E lá estava, refastelado naquele ambiente seco e arenoso, um Heliotropium encimado de flores de miosótis brancas com um centro amarelo, como é usual neste género. Mas a aparência geral da planta destoava do que conhecíamos, fosse pela inflorescência mais densa ou pelas folhas crispadas, com margens revolutas, onduladas e ligeiramente crenadas. Julgámos tratar-se do H. europaeum, espécie anual frequente em Portugal, tão incomodado como nós com aquela argila calcária fina e salgada. Mas não. Trata-se de outra espécie de Heliotropium, perene e por vezes lenhosa, nativa de África, da Península Arábica, da Ásia, e das ilhas de Porto Santo e das Canárias.


Heliotropium ramosissimum (Lehm.) Sieber ex DC. [= Heliotropium crispum Desf.]


Das cerca de duzentas espécies conhecidas neste género, uma é naturalizada e duas são consideradas espontâneas na Península Ibérica: o H. europaeum e o H. supinum.



Heliotropium supinum L.


Ao contrário da espécie de Porto Santo, o rastejante H. supinum precisa de humidade no solo e aprecia margens pedregosas de rios asseados onde se espraiar. Como as do rio Sabor que escaparam à nova barragem.