02/06/2023

Alhos no chão

Allium chamaemoly L.


Este alho, do sul da Europa e norte de África, parece não ter pescoço. Na verdade, apesar de tão rasteiro, não é assim tão pequeno. O que acontece é que o talo, de onde brotam as folhas, tem cerca de 10 cm mas é subterrâneo, e a haste floral é praticamente inexistente. As folhas largas e longas encarregam-se de gerar energia que o caule, adaptado qual raiz à vida sem acesso directo à luz, armazena. É desta combinação de acções que esta planta beneficia, permitindo-lhe manter um regime perene. Em vez de um caule onde pendurar gaiatamente folhas e flores, parece ser-lhe mais vantajoso ter uma despensa de nutrientes, que mantém fresca e salvaguardada debaixo do solo. Supomos que é arriscado ser pequeno e morar tão rente ao chão, mas o aroma a alho afugenta predadores tão bem, dizem, como o diabo. É de se lhe invejar a prudência.



Mesmo sendo diminuto, este alho é fácil de avistar pois tem 4 a 8 folhas num tom de verde que se destaca do castanho-cinza dos prados ralos, em solos pedregosos, que ele aprecia. Em locais onde é abundante (na região mediterrânica), podem ver-se dezenas de exemplares juntos, formando na época de floração (entre Dezembro e Fevereiro) um emaranhado de folhas com margens peludinhas onde se aninham as umbelas de flores brancas com um caprichoso veio verde no meio de cada tépala. As fotos são de exemplares em Maiorca, no arquipélago das Baleares, onde se tropeça neste alho a cada passo se se passear por pinhais (de Pinus halepensis) e rochedos calcários à beira mar.

O cenário em Portugal, limite leste da distribuição desta espécie, é distinto. Talvez este alho já tenha sido abundante no sul do país, mas actualmente são apenas conhecidos três núcleos escassos, na Estremadura e no Baixo Alentejo. Segundo a Flora-on, a maior população registada é a do Baixo Alentejo, com cerca de 1000 indivíduos que vivem perto de uma ribeira. Decerto desaparecerão se o plano de construção de reservatórios de água ou barragens naquela região for implementado descuidadamente. Fica o alerta: é preciso manter a vigilância pois, no que se refere a desleixos destes e à destruição de habitats a eito, somos mestres.

23/05/2023

Hipericão amargoso



Há milénios que as ilhas do Mediterrâneo são habitadas, e estima-se que a colonização de Maiorca se tenha iniciado há uns 4500 anos. Haverá assim poucos espaços dessa ilha que não tenham sido alterados pela presença humana. As extensas florestas de azinheiras e pinheiros-do-Alepo que cobrem as íngremes vertentes da serra de Tramuntana, embora densas e verdejantes, não são exactamente território virgem. Além dos caminhos e estradões que as cruzam, e das muitas cercas que vedam a passagem a forasteiros, o coberto vegetal também sofreu alterações, mesmo que, em contraste com o que é regra em espaços naturais portugueses, as espécies exóticas invasoras sejam pouco ou nada visíveis. Isto se nos cingirmos às espécies vegetais, porque de facto o maior problema para a conservação da natureza em Maiorca é uma invasora de quatro patas: a cabra. As populações de cabras assilvestradas, descendentes das que foram introduzidas na ilha logo nos primeiros séculos do povoamento, têm vindo a pôr em risco plantas endémicas raras como o Senecio rodriguezii — e, em certos lugares da ilha, têm extirpado arbustos nativos outrora comuns (como a Euphorbia dendroides) ou travado a renovação natural do coberto arbóreo (leia-se esta notícia).

Hypericum balearicum L.


Contudo, e ao contrário do que sucede nos arquipélagos da Macaronésia, a vegetação endémica das Baleares dispõe de algumas defesas contra a depredação por herbívoros, já que coabitou durante a sua evolução com um herbívoro endémico da família dos caprinos. Esse animal terá sido rapidamente extinto (talvez em menos de cem anos) após o povoamento das ilhas e só foi (re)descoberto, sob a forma de ossadas, no início do séc. XX, sendo então nomeado Myotragus balearicus. É por certo graças a ele que existem plantas maiorquinas de hábito compacto dotadas de espinhos aguçados (como o Astragalus balearicus), que são obviamente desencorajadores do mais voraz dos apetites. Outro modo de uma planta evitar converter-se em refeição é ser peçonhenta ou de sabor desagradável. Tudo indica ser essa a estratégia usada pelo hipericão-das-Baleares (fotos em cima): não sendo nada espinhento, não há outro motivo plausível para as cabras recusarem alimentar-se da sua tenra folhagem. Ou talvez as folhas deste arbusto não sejam assim tão tenras: são pequenas, têm um aspecto rígido e crispado, e apresentam margens pontuadas por verrugas proeminentes — verrugas essas recheadas com uma resina que não é certamente um néctar dos deuses. Idênticas verrugas com idêntico recheio distribuem-se de alto a baixo nos ramos e raminhos da planta. O aviso é claro e todas as cabras o respeitam: nenhuma se dispõe a trincar o Hypericum balearicum, que vai fazendo a sua tranquila vida de sempre em Maiorca (onde é mais abundante, aparecendo desde a costa até aos cumes mais elevados) e nas demais ilhas baleares.

Nenhuma outra espécie do género Hypericum — que alberga espécies de porte muito variável, desde herbáceas a pequenas árvores — dispõe de igual mecanismo de dissuasão da herbivoria, e por isso é justo qualificar o Hypericum balearicum de inconfundível. Outro título de nobreza que ninguém lhe tira é ter sido descrito por Lineu em 1753 no seminal Species Plantarum. É de supor que já nessa época as ilhas mediterrânicas fossem assiduamente frequentadas por viajantes norte-europeus em busca de climas mais amenos.

15/05/2023

Trovisco peludo

O fascínio que quase todos sentimos pelos dinossauros deve-se, em parte, à diversidade notável de formas e hábitos nesta família de animais, mas é alimentado pelo terror que os fósseis denunciam e que os filmes sobre o tema muito bem exploram: de um tamanho medonho, com caudas, mandíbulas e dentes pavorosos, alguns dinossauros foram predadores tão poderosos que, se ainda existissem, muitos outros seres não teriam surgido na Terra. Curiosamente, a outra razão para o encanto dos dinossauros deve-se precisamente ao facto de, apesar de extintos, restarem da sua presença na Terra inúmeras provas. Ainda que tenham deixado de existir, a sua assinatura no passado pôde chegar até hoje e ser entendida pelos novos habitantes da Terra.

Vem este arrazoado a propósito da planta que hoje vos mostramos. Está extinta em Portugal: nunca terá sido abundante (havia apenas registo dela nas areias marítimas junto à foz do rio Guadiana, no Sotavento Algarvio), mas o certo é que, desde 1853, ninguém a avista nesse local, ou noutro qualquer do litoral português. Segundo os autores da Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental, o seu desaparecimento em solo nacional talvez se deva «às obras de regularização da foz do rio Guadiana e à expansão urbana da cidade de Faro, que poderão ter causado a destruição de indivíduos e profundas alterações no habitat». Por idêntica degradação do habitat, desapareceu também dos prados húmidos costeiros, entre o Minho e a Beira Litoral, a orquídea Epipactis palustris. No sudeste de Espanha, e mais geralmente na bacia do Mediterrâneo, a Thymelaea hirsuta é bastante frequente, e floresce no Inverno. Fomos, por isso, à procura dela em Dezembro na ilha de Maiorca.

Thymelaea hirsuta (L.) Endl.


O género Thymelaea abriga espécies arbustivas e subarbustivas, perenes (caso da T. hirsuta) ou anuais (como a T. passerina). As folhas são inteiras, por vezes densamente tomentosas. Segundo os botânicos, e ao contrário do que juraríamos ser verdade, as flores não têm pétalas. São apenas cálices tubulares amarelos (raramente rosados) com 4 lóbulos, protegidos por brácteas que parecem folhas, e que em algumas espécies se agrupam em espigas, noutras em cachos.

A T. hirsuta é peculiar na preparação para a época de floração. Apesar de ser uma espécie monóica, com flores unisexuais ou hermafroditas num mesmo indivíduo, podem encontrar-se, numa mesma população, exemplares cujas flores são quase todas masculinas e outros em que são quase todas femininas — como se afinal se tratasse de uma espécie dióica. Mas este desempenho vai mais longe: de ano para ano, ou até numa mesma temporada de floração, um indivíduo de T. hirsuta pode mudar a sua tendência sexual maioritária se isso beneficiar a polinização e, portanto, a produção de sementes, ou outro factor ambiental o justificar. Como deduzimos do caso português, todo este prodigioso labor florístico pode ser insuficiente para impedir a sua extinção.

05/05/2023

Fentilho de Maiorca



O barranco de Biniaraix, em Maiorca, ascende desde o vale de Sóller e proporciona um íngreme acesso à serra de Tramuntana, a cordilheira que se estende por todo o limite norte da ilha e atinge os 1445 metros de altitude no seu ponto culminante. Nos primeiros 400 metros da subida, e com excepção de alguns pontos de passagem mais estreitos, as encostas que ladeiam o barranco estão talhadas em socalcos ainda mais vertiginosos que os do Douro. Só que, em vez de vinhas, os patamares estão ocupados por olivais; e, em vez do avermelhado do xisto, os muros exibem a brancura do calcário de que a ilha é feita. A olhos portugueses parece uma paisagem híbrida, um cenário duriense feito de materiais arrancados ao maciço calcário estremenho. É bem apropriado que alguma da vida vegetal refugiada nesses muros seja também ela de origem híbrida.

Asplenium majoricum Litard.


Inicialmente descrito em 1911 pelo francês René Verriet de Litardière (1888–1957) com base em exemplares colhidos nos muros da cidade de Sóller, o Asplenium majoricum foi tido, durante muito anos, como endémico da ilha de Maiorca — ou até endémico do município de Sóller. É que esse feto não frequenta altitudes elevadas e a sua área de distribuição na ilha é bastante restrita. Contudo, sabe-se hoje que o mesmo feto ocorre na Espanha continental, tanto em Valência como no sul da Catalunha, embora se suspeite, pelo estudo de marcadores genéticos, que as duas linhagens da espécie, a peninsular e a maiorquina, tenham surgido de forma independente. De facto, o Asplenium majoricum é um tetraplóide que resultou, por hibridação e duplicação do genoma, do cruzamento de dois fetos diplóides, ambos de apetências calcícolas, o Asplenium fontanum e uma forma ancestral do Asplenium petrarchae. Não é impossível que idêntico cruzamento de espécies, seguido de igual duplicação do genoma, se tenha dado em dois locais distintos: um caso desse tipo foi reportado na Escócia, há 11 anos, com a Erythranthe peregrina (= Mimulus peregrinus), produto da hibridação, ocorrida em pelo menos duas localidades bem afastadas uma da outra, de duas espécies exóticas naturalizadas, uma norte-americana e outra sul-americana.

Com folhas curtas, de 6 a 12 cm de comprimento, o Asplenium majoricum combina o porte miniatural do A. petrarchae com o carácter glabro e o desenho das frondes do A. fontanum. Ter optado pelo tamanho do mais humilde dos seus progenitores valeu-lhe a sobrevivência numa ilha em que as cabras assilvestradas vêm provocando grande destruição da flora espontânea. Encolhido nas fendas dos muros, sem deixar sobressair a ponta de uma folha, não há cabra que lhe ferre o dente. O A. fontanum, com frondes que ultrapassam os 20 cm, pagou cara a imprudência de se mostrar a descoberto: os últimos exemplares conhecidos na ilha foram, há poucos anos, protegidos com redes para não serem devorados por cabras (história completa aqui).

24/04/2023

Estrelas no asfalto



No noroeste da Grã-Canária, a velha e estreita estrada entre a Aldea de San Nicolás e Agaéte serpenteia pelas escarpas junto à costa, proporcionando em vários dos seus trechos — em especial na passagem pelo monte de Andén Verde — uma vista desafogada do Atlântico, que estende o seu infinito azul 500 metros abaixo. É prudente que o condutor não se distraia com as vistas, não vá o carro guinar para o precipício. Além disso, os instáveis taludes rochosos, aqui e ali protegidos por redes de aço, são uma permanente ameaça de derrocadas. Pensando bem, talvez seja avisado vedar a estrada ao trânsito automóvel e, em sua substiuição, construir outra, mais moderna, larga e rectilínea, furando por túneis e amputada de vistas. Foi isso mesmo que se fez — e, hoje em dia, até os caminhantes estão proibidos de percorrer a antiga estrada, que está cortada por blocos de betão e se vai rapidamente convertendo em cenário pós-apocalíptico: asfalto gretado, salpicado de calhaus e pedregulhos, e taludes revestidos por vegetação, a mesma vegetação que, pouco a pouco, vai ocupando e rompendo a faixa de rodagem. Como é usual nestes filmes, reina um silêncio ominoso (nem um motor se ouve) e não se avista ninguém; os heróis perguntam-se se além deles haverá outros sobreviventes.

O guionista intervém para lembrar que o filme é outro. Não houve qualquer fim do mundo e simplesmente desobedecemos às autoridades, andando algumas centenas de metros numa estrada de acesso proibido. Uma estrada escalavrada e perigosa, é verdade, mas nada que se compare (por enquanto) com as estradas abandonadas da costa norte da Madeira. Confiados na nossa sorte e experiência, achamos que a proibição não nos diz respeito. Sabemos que a exploração botânica comporta perigos, e aceitamo-los com sangue-frio.

Asteriscus graveolens subsp. stenophyllus (Link) Greuter


De entre as plantas que avistamos destaca-se um arbusto muito compacto e arredondado, crescendo bem no meio da estrada e afirmando-se como pioneiro na vegetalização do asfalto. Trata-se claramente de um Asteriscus, género bem representado nas ilhas orientais das Canárias, as mais secas do arquipélago: em Fuerteventura e Lanzarote ocorrem três espécies, incluindo uma endémica de cada uma dessas ilhas (A. sericeus em Fuerteventura, A. intermedius em Lanzarote). Esta estrela da Grã-Canária, de seu nome Asteriscus graveolens, é menos vistosa do que essas outras, por ser de menor porte, ter folhas mais estreitas e capítulos mais pequenos. Talvez compense o défice de beleza pelo cheiro intenso, ainda que pouco agradável, a que se refere o epíteto específico. Contudo, ao contrário dos Asteriscus endémicos de Fuerteventura e Lanzarote, este Asteriscus graveolens da Grã-Canária não parece ter conquistado o apreço dos jardineiros.

O Asteriscus graveolens apresenta um grau de variabilidade assinável, e estão descritas na Grã-Canária duas subespécies. A subsp. stenophyllus (em cima, fotografada em Andén Verde), tida como endémica dessa ilha, é mais ramificada, e apresenta folhas acetinadas, concentradas nas pontas dos ramos. A subsp. odorus (em baixo, fotografada no Barranco del Sibério), que ocorre também em Marrocos, apresenta um aspecto algo desgrenhado e tem as folhas mais pubescentes, dispostas de forma espaçada. Ambas as subespécies receberam ordens de especialistas reputados para florir sobretudo na Primavera, nunca antes de Março e nunca depois de Junho. Está-se a ver que não ligaram nenhuma, pois as fotos são de Dezembro de 2019.

Asteriscus graveolens subps. odorus (Schousb.) Greuter

13/04/2023

Ensaiões III & IV

Aeonium aizoon (Bolle) T. H. M. Mes [= Greenovia aizoon Bolle]


As suculentas do género Aeonium são ideais para jardineiros preguiçosos: mais depressa sucumbem aos excessos de atenção (e de água) do que ao esquecimento e ao desleixo. Dotadas de invejável longevidade, fazem-se notar, ano após ano, pela floração abundante e regular. Mesmo quando não estão floridas, valem pelas rosetas de folhas carnudas, de uma simetria perfeita. Em climas mais frios, podem ser cultivadas em vasos dentro de casa; em lugares de clima mais temperado (como seja toda a faixa litoral do nosso país), adaptam-se perfeitamente ao cultivo ao ar livre. Nunca devemos esquecer que, nas suas ilhas de origem (quase todas elas provêm das Canárias), as temperaturas tendem a ser cálidas e a chuva se resume a episódios esporádicos.

Com excepção de três espécies na África continental (uma em Marrocos, duas na costa oriental), o género Aeonium é exclusivo das ilhas da Macaronésia; e, tirando as duas espécies madeirenses (A. glandulosum e A. glutinosum), todas as restantes, que totalizam 33 (ou umas 40, se contarmos subespécies), são endémicas das Canárias. As diferentes espécies podem tomar aspectos muito diversos, o que motivou a divisão do género Aeonium em sete secções. Uma delas é a secção Greenovia, que tradicionalmente constituía um género independente: as plantas dessa secção (que inclui A. aizoon, acima ilustrado, e A. aureum) distinguem-se por terem folhas dispostas numa roseta basal de que emerge uma única haste floral, e sobretudo pelas pétalas estreitas e muito numerosas (até 32 em cada flor, quando nas demais espécies de Aeonium o número de pétalas não ultrapassa 12). A secção Leuconium, que inclui Aeonium urbicum (abaixo exposto), reúne espécies com rosetas de folhas terminais (i.e., nas extremidades das hastes) e com flores variando entre o branco, o rosa e o vermelho. A outra espécie aqui exibida na ocasião anterior, Aeonium spathulatum, muito ramificada e de folhas pequenas, pertence a uma terceira secção, denominada Chrysochrome. Em fascículos posteriores, se os houver, trataremos das secções ainda por ilustrar.

Não fugindo àquela que tem sido a nossa regra, ambas as protagonistas de hoje são endémicas de Tenerife. A bea de Güímar (nome comum do Aeonium aizoon) vive nas montanhas do município com o mesmo nome, no centro-leste de Tenerife, acima dos 1000 m de altitude, em lugares pouco acessíveis. Para tristeza de jardineiros e coleccionadores, dá-se mal em cultivo fora do seu habitat natural, além de ser planta de vida curta — é pois preferível deixá-la em paz nas rochas onde escolheu viver. Já o bejeque puntero (Aeonium urbicum) — que parece uma miniatura de árvore com a sua haste muito erecta, não ramificada, encimada por avantajada inflorescência piramidal — é menos refractário ao cultivo, mas tem a desvantagem de ser monocárpico: floresce uma só vez na vida, produzindo uma legião de sementes e morrendo de seguida.

Aeonium urbicum subsp. meridionale Bañares

07/04/2023

Açafrão insular

Crocus cambessedesii J. Gay


A Natureza não seria ridícula ao ponto
de se resumir a qualquer fórmula literária
ou matemática.
Coloca o livro mais brilhante de Goethe
ao lado de uma pedra: volta no outro dia,
e no dia seguinte. E na semana seguinte.
Verás: nada aconteceu à pedra,
enquanto o livro, por todo o lado, por todas as partes,
começou a perder qualidades.
Gonçalo M. Tavares, Uma viagem à Índia (Editorial Caminho, 2010)

29/03/2023

Bouquet de semprevivas

Limonium macrophyllum (Willd. ex Spreng.) Kuntze


Limónios, semprevivas ou lavandas-do-mar são três modos de em português designar as plantas do género Limonium. Chamamos-lhes semprevivas porque as flores, depois de secas, mantêm a forma e a cor quase indefinidamente — e nisso são um investimento de longo prazo tão compensador como as flores de plástico. Sucede que há outras plantas não aparentadas com estas (como as do género Helichrysum) que produzem flores de igual longevidade e também estão à venda em floristas, e por isso o nome sempreviva padece de ambiguidade. Lavanda-do-mar é um nome mais eufónico e evocativo, e alude correctamente à preferência das diversas espécies de Limonium pela proximidade do mar, mas dá-se o caso de estas plantas não terem qualquer parentesco com as verdadeiras lavandas (género Lavandula). Talvez seja melhor conformarmo-nos com o nome limónio: soa bem, é português correcto, não se aplica senão a estas plantas, e remete de imediato para o seu nome científico. Convém é saber que Limonium (ou limónio) nada tem a ver com limões. Na raiz desta palavra, que vem do grego antigo, está leimon, que significa "prado húmido"; o mesmo termo deu origem à palavra latina limu, que em português significa "limo" ou "lodo". Erva-dos-lodos até seria nome apropriado para os limónios, atendendo a que muitos deles vivem em sapais.

Embora haja notáveis excepções, não é esse o caso da maioria das espécies de Limonium nas Canárias, dada a escassez no arquipélago de habitats paludosos costeiros. Assim, e ainda que o mar nunca esteja longe, muitos dos limónios canarinos adaptaram-se à secura, vivendo em locais rochosos e invariavelmente soalheiros. Dessa opção de vida são exemplo as duas espécies que hoje mostramos, ambas de Tenerife. O Limonium macrophyllum (em cima) vive no nordeste da ilha, nas escarpas e montanhas de Anaga, por vezes em lugares elevados: os exemplares das fotos moravam em Chinamada, à altitude de 600 metros. Por contraste, o Limonium imbricatum (em baixo), que também ocorre em La Palma, não foge de ser salpicado pelas ondas: vive em falésias costeiras no noroeste de Tenerife, e vimo-lo nos arredores de Buenavista del Norte, refugiado na estreita faixa livre entre um campo de golfe e as arribas marítimas. Com as suas flores de sépalas azuis e corolas brancas, estes dois limónios pertencem claramente à linhagem do Limonium puberulum, endémico de Lanzarote e de Fuerteventura. As diferenças, porém, são fáceis de apontar. Como indica o epíteto específico, as folhas do Limonium macrophyllum são grandes — e, ademais, lustrosas (contrastando com o tom baço das folhas do L. puberulum) e com um veio central proeminente, amiúde tingido de vermelho. O Limonium imbricatum é ainda mais distintivo, com as folhas lobadas dividas em segmentos que se sobrepõem parcialmente como as telhas de um telhado, e com as hastes florais guarnecidas de alas onduladas e muito largas.

Tanto um como outro limónio produzem colorida abundância de flores que, uma vez amputadas das plantas de onde brotaram, fariam boa figura em qualquer sala de estar. Mas, tratando-se de espécies raras e ameaçadas, tal colheita não se recomenda nem é legalmente permitida. E flores vivas em ambiente natural são incomparavelmente mais bonitas do que flores secas enfiadas numa jarra — mesmo que, com mais pó ou menos pó, estas durassem para sempre.

Limonium imbricatum (Webb ex Girard) F. T. Hubb. ex L. H. Bailey