12/09/2024

O veneno não mora aqui



As umbelíferas são plantas fáceis de reconhecer pelas umbelas floridas, que lembram guarda-chuvas, e pelas folhas miudamente recortadas, de formato mais ou menos triangular. Represen­tantes típicos da família, muitos usados em culinária, são a salsa, a cenoura e o funcho. Para que não se pense que todas estas plantas existem para nos gratificar o apetite, cumpre deixar o aviso de que muitas delas (e até algumas que se parecem superficialmente com a cenoura, como o embude e a cicuta) são mortalmente venenosas, pelo que a colheita de umbelíferas silvestres para fins culinários é totalmente desaconselhada.

Hoje falamos de duas umbelíferas que destoam vincadamente da família a que pertencem. Uma delas, Bupleurum fruticosum, recebeu em castelhano o nome de matabueyes, sugerindo que a sua ingestão é perigosa para o gado bovino. Ora essa acusação é de todo infundada, pois as plantas do género Bupleurum nada têm de tóxico e de algumas delas até se confeccionam medicamentos — que, como sucede com todos os fármacos, devem ser usados na dose indicada e tomando nota das contra-indicações. Contudo, não são conhecidos casos em que o consumo directo da planta (não das essências dela extraídas) provoque efeitos graves.

Bupleurum fruticosum L.


Não é na forma e disposição das flores, geralmente amarelas, que os bupleuros divergem das restantes umbelíferas. As folhas é que são novidade: em vez de divididas, são simples, lanceoladas e de margens inteiras; quase sempre apresentam uma venação longitudinal bem visível, mas por vezes, como no caso do B. fruticosum, a venação é reticulada. O porte destas plantas é muito variável: tanto o B. fruticosum (em cima) como o B. spinosum (em baixo) são arbustos, o primeiro de altura respeitável (pode superar os dois metros) e o segundo rasteiro (não excede os 40 cm), mas a maioria das espécies do populoso género Bupleurum — que abrange umas 150 espécies, todas menos uma no hemisfério norte — são herbáceas anuais ou perenes.

Bupleurum spinosum Gouan
[= Bupleurum fruticescens subsp. spinosum (Gouan) O. Bolòs & Vigo]


Entre os bupleuros há endemismos de distribuição restrita, como este português que há mais de vinte anos aguarda reconhecimento taxonómico. Em contraste, o Bupleurum fruticosum tem uma distribuição ampla dos dois lados da bacia mediterrânica, de Portugal até à Grécia, e de Marrocos até à Tunísia. Apesar de por duas ocasiões o termos visto no Algarve, onde é bastante comum, só em Granada o pudemos observar em flor. Menos viajado do que o seu congénere, o B. spinosum, que também fotografámos em Granada, consegue ainda assim fazer a ponte entre dois continentes, ocorrendo no sul de Espanha e no norte de África. É uma planta arbustiva que com a idade ganha o aspecto de uma almofada espinhosa, perfeitamente adaptada às condições áridas do seu habitat. Os espinhos, por sinal bem rígidos e aguçados, são na verdade as hastes secas das umbelas após a frutificação.

05/09/2024

Sem medo das alturas



No instante em que se inventou a fotografia, não foram só a ciência, a tecnologia, a arte e a nossa memória que se agigantaram. O mundo deixou de ser sempre a cores. E decerto muitos começaram a sonhar a preto e branco. Durante cerca de quatro décadas, a fotografia guardou apenas contrastes em imagens sem profundidade, incapaz de memorizar a realidade na íntegra. Nas fotos mais antigas, as famílias amontoadas como migalhas de pão parecem-nos irreais de tão imóveis e tão sem volume. Apesar do entusiasmo da novidade, continuava a ser mais fácil descrever um rouxinol por palavras, ou fantasiado numa tela de pintura, do que registá-lo em voo com uma máquina fotográfica. Tudo mudou anos depois, e o cinema deu a estocada final no descrédito. E, no entanto, a tendência de hoje é outra. A realidade tem agora pouco interesse, e o acto outrora breve de fotografar ganhou uma nova função: aprimorar o mundo, mentindo se necessário, evitando-se a mera cópia do que existe ou acontece. A edição da fotografia, por vezes eliminando as cores, com fins artísticos ou para aperfeiçoar a verdade, tem criado um mundo alternativo que, no entender de muitos, substitui com vantagem o real. E ainda há quem estranhe que o universo esteja em expansão.

Viola crassiuscula Bory


Se às fotos destas violetas endémicas da serra Nevada fossem retiradas as cores, não saberíamos de que espécie se tratava. Poderiam ser exemplares de Viola langeana, que ocorre nas serras da Estrela, Malcata e Homem de Pedra, e cujas flores são integralmente amarelas; ou da Viola diversifolia, dos Pirenéus, com flores inteiramente roxas. As flores da V. crassiuscula, em numerosos talos, combinam o violeta, o rosa e o branco, e cada planta não excede os 15 cm de altura. Vive adaptada a solos soltos acima dos 2000 metros de altitude, em fissuras de rochas e cascalheiras, com a raiz bem enterrada para que um deslize de pedras ou uma ventania forte não a condenem. É uma espécie rara, listada no livro vermelho da flora da Andaluzia.

30/08/2024

São Jorge das fajãs

Estamos algures em São Jorge, num dia quente de Agosto, a olhar uma fajã bem lá no fundo. A descida nem se afigura complicada, mas cada passo adicional pelo trilho abaixo seria cobrado com altíssimos juros na subida. Os que fazem o caminho todo é porque tencionam pelo menos pernoitar. Espera-os um quintal para amanhar e levam consigo o suficiente para ficarem dois ou três dias. Vistas a esta distância as casas parecem de brinquedo, e de perto também não são para levar muito a sério: são no máximo compostas por duas divisões e não é certo que disponham de água canalizada, saneamento ou electricidade.

Há fajãs mais acessíveis, servidas por ziguezagueantes estradas asfaltadas ou de terra batida transitáveis por veículos motorizados. Contudo, as fajãs a que só se chega a pé por caminhos esconsos são um estímulo para a imaginação e um atavismo desafiante neste século de turismo de massas. As vidas intermitentes que lá decorrem só podem ser vagarosas, formatadas pela lonjura e pela privação ainda que voluntária. Para melhor as respeitarmos, preferimos efabulá-las em vez de tentar conhecê-las de perto.

São Jorge: caminho para a Fajã do Mero
À Fajã do Mero, quase a meio da costa norte da ilha, é possível hoje chegar por estradão: desce-se do Norte Pequeno à fajã da Penedia e depois continua-se para oeste por uma via que atravessa várias outras fajãs, uma delas com uma pequena capela. Na Fajã do Mero propriamente dita há três ou quatro casas rodeadas por dois hectares (se tanto) de terrenos para cultivo dispostos em socalcos. Quem sabe se tão exígua área de produção não sustentou, outrora, famílias inteiras? Em tempos não motorizados o acesso era outro, por trilhos íngremes talhados na encosta densamente florestada, ainda hoje abertos à fruição de turistas como nós. O temor da subida cedo nos fez desistir da descida, mas pudemos perceber, pelas obras em curso, como o progresso, neste caso sob a forma da electrificação, se vai lentamente acercando da fajã. Quem já se instalou há muito, e de forma avassaladora, foram o incenso (Pittosporum undulatum) e muitas outras invasoras vegetais temíveis, e é por isso que a vista prodigiosa nos deixa um certo amargo de boca, parcialmente atenuado pelos encontros com o Asplenium hemionitis e com a endémica Carex leviosa (que, em São Jorge, vimos só neste local).

Fajã do Nortezinho (ao fundo) com Erica azorica em primeiro plano
A Fajã do Nortezinho fica quase no extremo oriental de São Jorge, também na costa norte. É uma fajã elevada, quase cem metros acima do nível do mar, mas o único modo de lá chegarmos, por um caminho largo e sem obstáculos, é a pé, com o desnível do percurso excedendo os 450 metros. Na fajã só existe uma casa, que, a julgar pelas imagens de satélite, terá sido construída há uns quinze anos. Da próxima vez que formos a São Jorge reservaremos tempo e fôlego para não nos quedarmos, como desta vez, a meio da descida. Aquela casa esconde um mistério que, na verdade, pouco nos interessa desvendar. Atraem-nos mais as grandes urzes recortadas contra o azul do mar, acompanhadas por paus-brancos, folhados e faias, e por um elenco de herbáceas (como o Ammi trifoliatum e a Scabiosa nitens) que só existem nos Açores e que, para nós, já são parte da família.

07/08/2024

Férias


regressamos no final de Agosto

31/07/2024

Época de soldas



É a crise no comércio tradicional que faz com que haja saldos o ano inteiro? Mas também no comércio electrónico, ou até nos supermercados pequenos ou grandes, o fenómeno é idêntico: nunca pagamos as coisas pelo preço tabelado, pois há sempre um desconto a amaciar a compra. A época de saldos caiu em desuso, ou deixou de ter importância por se ter transformado num requisito permanente das trocas comerciais. Nós, os consumidores, fazemos sempre a escolha mais inteligente por termos aproveitado aquela ocasão única, e os comerciantes sabem bem que só ganham em gratificar a nossa ingénua vaidade.

Já a época de soldas tem um calendário mais definido, decorrendo, grosso modo, entre Maio e Julho, com as naturais variações induzidas pelos factores climatéricos. Para começar, as soldas — que é como chamamos às espécies do género Galium — são muitas: mais de cinquenta espécies na Península Ibérica (incluindo ilhas Baleares), umas vinte em Portugal. O que complica a questão é serem muito parecidas umas com as outras: folhas reunidas em verticilos (ou saiotes) regularmente espaçados ao longo das hastes, flores geralmente brancas, pequenas (menos de 5 mm de diâmetro), de quatro pétalas, em panículas densas ou lassas, ou às vezes axilares, agrupadas em pequeno número. Caracteres diferenciadores são quantas folhas há por verticilo (por exemplo, no Galium broterianum, frequente em margens pedregosas de ribeiras, elas são sempre em número de quatro), o aspecto mais ou menos compacto da inflorescência, e a forma ou rugosidade dos frutos (duas espécies com frutos muito distintivos são o G. verrucosum e o G. murale).

Galium rosellum (Boiss.) Boiss. & Reut.


As duas soldas que mostramos hoje, ambas fotografadas num mês de Julho nos cumes da serra Nevada, em Granada, não nos exigiram lupa nem consulta de chaves dicotómicas para as identificarmos com absoluta certeza. A circunstância de as termos encontrado a 2500 ou 3000 metros de altitude já nos restringia as hipóteses, mas em todo o caso o aspecto delas é inequívoco. O Galium rosellum, endémico da serra Nevada, tem flores rosadas, e nisso se distingue de todas os seus congéneres ibéricos (só poderia confundir-se com o G. balearicum, mas esse é exclusivo de Maiorca e tem quatro folhas por nó); além disso, o tom verde-escuro da folhagem é característico. O G. pyrenaicum, por seu turno, apesar de as suas flores brancas não destoarem do que é norma no género, tem hábito rasteiro e distingue-se pelas folhas pontiagudas, que ocultam por completo as hastes e parecem formar cachos. Preferindo sempre altitudes elevadas, esta solda-branca não é exclusiva da serra Nevada, como aliás o próprio epíteto específico dá a entender: vive também nos Pirenéus e na Cordilheira Cantábrica.

Galium pyrenaicum Gouan

26/07/2024

Couve do inferno

Moricandia moricandioides (L.) (Boiss.) Heywood
Reparou nas folhas da planta das fotos? Parecem folhas de couve-galega, embora de margens menos onduladas. As flores, num tom mais ou menos intenso de lilás, têm o formato usual na família Brassicaceae, mas aparecem no topo de uma haste alta que, abanando, se nota muito bem mesmo ao longe (em taludes de estradas, por quem vai a circular de carro, digamos). Esta espécie de Moricandia é perene e um endemismo espanhol, ocorrendo em locais áridos ou semi-áridos do centro e sul de Espanha. Se no inferno servirem sopa, será decerto caldo-verde de folhas de Moricandia.

O género Moricandia tem recebido uma atenção redobrada dos botânicos pela capacidade invulgar de algumas das suas espécies de se adaptarem a habitats em condições extremas. Estudos da Moricandia arvensis, que é anual, revelaram que as folhas destas plantas são capazes de realizar a fotossíntese sem suar de mais, sobrevivendo sob calor tórrido. Com uma floração prolongada e uma coloração vistosa das pétalas (o que tem um custo energético elevado para as plantas), a Moricandia arvensis possui um mecanismo genético de poupança que ajusta a cor das flores às condições atmosféricas do habitat e aos polinizadores mais eficientes em cada estação do ano. Na Primavera, as flores são grandes e de tons intensos, reflectindo os raios ultravioleta, o que atrai bastantes abelhas. No Verão, seco e muito quente, as flores são mais pequenas, de formato mais arredondado e com pétalas esbranquiçadas que absorvem os tais raios e, por isso, conseguem atrair outros polinizadores. É inevitável pensar quantas arrelias e queimaduras de pele nos pouparia um tal botão de ajuste de cor, mudando-nos de brancos para negros, e vice-versa, anualmente.

O nome do género foi proposto em homenagem ao naturalista suíço, e comerciante de relógios, Moise Moricand (1780-1854).

Vale do rio Dúrcal (Granada, Espanha)

16/07/2024

Brancura das neves



O branco mais puro é o da neve, e é o Inverno a estação que melhor combina com a alta montanha. Sorte têm os picos que, de tão elevados, só conhecem a brancura imperecível. Mas a serra Nevada, esse inchaço descomunal no sul da Península, tem aos pés o mar Mediterrâneo; e, apesar dos seus quase 3500 metros de altitude máxima, o manto branco que lhe dá nome não resiste às temperaturas estivais. Os cumes rochosos ficam nus, o verde molhado dos prados acolhe as águas do degelo, por todo o lado assomam plantas que despertam da letargia hibernal. Algumas são brancas, como se a neve, antes de se ausentar, as tivesse incumbido da função branqueadora. É o caso da estrella de las nieves, uma tanchagem endémica da serra Nevada que é característica de solos pedregosos e húmidos acima dos 2300 metros de altitude. Apesar de ter uma floração discreta (como é regra no género a que pertence), as suas rosetas em formato de estrela, densamente revestidas por lanugem branca, têm um efeito ornamental inegável, sobretudo quando se juntam em grupos numerosos. Por saber que a união faz a força (ou, neste caso, a formosura), a estrela-das-neves não se faz rogada em salpicar profusamente os prados e os cumes da serra Nevada. É de inteira justiça que seja reconhecida como o mais genuíno símbolo botânico deste maciço, cumprindo papel análogo ao do edelweiss nos Pirenéus e nos Alpes.

Plantago nivalis (L.) Boiss.


Plantago nivalis é o nome científico da planta nevadense, e é de assinalar que o mesmo epíteto reaparece no bilhete de identidade do edelweiss, cujo nome erudito é Leontopodium nivale. Trata-se apenas de uma coincidência, pois as duas plantas pertencem a famílias botânicas muito díspares, e só têm em comum a cor esbranquiçada e a preferência por altitudes elevadas. Dentro do género Plantago, a estrella de las nieves não destoa do figurino habitual: folhas em roseta achatada, desprovida de caule, do centro da qual emergem várias hastes florais de 2 a 6 cm de altura, cada uma delas rematada por uma única espiga quase esférica, com cerca de 1 cm de diâmetro. As flores hermafroditas, compactamente dispostas, têm pétalas e sépalas pouco vistosas; no auge da floração (que, no caso do P. nivalis, decorre entre Julho e Agosto), é o amarelo das anteras que sobressai do conjunto (veja as fotos nesta página).

02/07/2024

Margarida dos pés curtos

Serra da Boneca (Penafiel, Portugal)
Erguendo-se na margem norte do Douro, a pouco mais de vinte quilómetros do Porto, a serra da Boneca atinge uma altitude máxima de 520 metros, o que representa 500 metros de desnível em relação ao leito do rio. Seria exagerado qualificar a paisagem de vertiginosa; mas, com a descoberta de que os adultos gostam de baloiçar-se sobre pequenas amostras de abismo (tirando copiosas fotos para imortalizar o feito), a serra ganhou popularidade nos últimos anos. Tanta que o afluxo de veículos ao fim-de-semana, entupindo o acesso ao parque eólico, obrigou à retirada do baloiço. Voltou o sossego, e quem gosta simplesmente de passear num lugar bonito, que não exige caminhadas longas nem proezas de escalada, continua a ter bons motivos para visitar a serra. Como seja o de apreciar, entre Março e Abril, a floração da margarida-sulfurosa (Leucanthemopsis flaveola), que tem nesta modesta cumeada a sua maior população portuguesa (ou mesmo mundial).

Serra Nevada (Granada, Espanha)
Deslocando-nos 620 quilómetros para sudeste estamos na serra Nevada, que multiplica por sete a altitude da serra da Boneca e cujas paisagens suscitam todos os adjectivos denotadores de grandiosidade (vertiginosa, esmagadora, imponente, abissal, etc.) que seria descabido aplicar à nossa serra-de-trazer-por-casa. Tal como na serra portuguesa, há na serra andaluza uma margarida-sulfurosa; e, se em qualidade (ou beleza) não há defeito a apontar-lhe, já em quantidade ela fica muito aquém do nosso produto nacional. Na verdade, e ainda que as diferenças sejam subtis, essa margarida é de outra espécie, de seu nome Leucanthemopsis pectinata. E há uma boa razão para na serra Nevada a margarida em questão (seja ela de que espécie for) ser menos abundante do que na Boneca: a serra espanhola detém uma diversidade vegetal sem paralelo em toda a Península Ibérica; e, com centenas de espécies competindo pelo mesmo espaço, o protagonismo de cada uma fica inevitavelmente diminuído.

Leucanthemopsis pectinata (L.) G. López & C. E. Jarvis


Sendo ambos endemismos ibéricos, o facto de terem distribuições disjuntas impossibilita-nos de alguma vez vermos lado a lado exemplares vivos destes dois Leucanthemopsis: o L. flaveola mora no noroeste peninsular, enquanto que o L. pectinata é exclusivo da serra Nevada, onde ocorre entre os 2000 e os 3200 metros de altitude. Assim, ainda que o segundo seja mais pequeno do que o primeiro (capítulos menores, hastes consideravelmente mais curtas, folhagem mais miúda), isso de pouco nos serve quando comparamos fotos de um e de outro. Mais útil é saber que as folhas do L. pectinata apresentam uma cor glauca e são revestidas por pêlos ásperos; as folhas do L. flaveola, por contraste, são verdes e podem ser glabras ou ter uma penugem macia. Além disso, as flores do L. pectinata ficam avermelhadas quando secam, o que não acontece às do L. flaveola.

Leucanthemopsis pectinata (L.) G. López & C. E. Jarvis
Joan Pedrol i Solanes, revisor do género para a Flora Iberica, reconhece que as linhas de separação entre as diversas espécies de Leucanthemopsis são amiúde difusas, por inexistência de caracteres diferenciadores de valor taxonómico claro e pela grande variabilidade de certas populações. Por esse motivo, de início foi tudo metido no mesmo saco, ou quase: em meados do século XIX, o botânico alemão Heinrich Moritz Willkomm considerou que haveria apenas três espécies do género (então chamado Pyrethrum) em toda a Península. Na Flora Iberica são agora reconhecidas nove, mas apenas duas em Portugal. Para nosso sossego, a distinção entre elas é trivial: uma (L. pulverulenta) tem flores brancas, a outra (L. flaveola) tem-nas de um amarelo pálido. É só quando cruzamos a fronteira que o assunto se complica.

20/06/2024

Alfinetes dos picos

Centranthus nevadensis Boiss.


O nosso cérebro está cheio de curtos-circuitos, fazendo com que memórias distantes e díspares interajam inesperadamente. A memória mais recente é do Verão passado, na serra Nevada, a 2500 metros de altitude. Apoiando-me numa rocha, após uma descida abrupta em que teria sido fácil resvalar para o precipício, fotografava, tentando controlar a tremura das mãos, as inalcançáveis plantas de flores vermelhas que pontuavam o paredão rochoso uns vinte metros à minha frente. Ampliadas as imagens, fiquei a saber que se tratava do Centranthus nevadensis, uma planta rara, restrita à Península Ibérica e a Marrocos, que em Espanha surge só nas quatro províncias mais meridionais: Almeria, Granada, Málaga e Cádiz. Era, afinal, prima direita dos vulgares alfinetes (Centranthus ruber) que enfeitam de beleza desbragada os muros velhos das nossas cidades. Os alfinetes-de-Nevada não lhes são equiparáveis em formosura, e a raridade é o artifício que usam para se fazerem interessantes. E é aí que a segunda memória, essa com vinte anos, contamina a primeira: a lembrança de, no jardim mais acolhedor da minha cidade, ter fotografado alfinetes multicoloridos (vermelhos, rosados, brancos) num muro com vista para o Douro. Num passeio sossegado, urbano e sem riscos, sem viagem longa antes ou depois, foi possível (ainda é possível) encontrar atraentes amostras de natureza. Viajar é preciso, mas é falso que certas vivências só nos aconteçam em paragens longínquas. Para não definharmos, precisamos de exercitar no quotidiano a nossa capacidade de observação do mundo natural. Quando, longe de casa, nos deparamos com o que é novo, é o contraste com aquilo que nos é familiar que enriquece a experiência.

Centranthus nevadensis Boiss.


Torna-se assim obrigatório explicar em que difere o remoto Centranthus nevadensis do doméstico Centranthus ruber. O que os une é evidente: os cachos de flores vermelhas ou rosadas, cada uma dotada de tubo alongado, cinco pétalas assimétricas, um só estame e um só estigma, ambos marcadamente salientes. Contudo, o Centranthus ruber é, por larga margem, o mais florífero dos dois, o que lhe permitiu viajar pelo mundo inteiro à conta do seu mérito ornamental. Também nas folhas os dois primos divergem: as do C. ruber são largas, lanceoladas e acuminadas, enquanto que as do C. nevadensis são pequenas, lineares e de ápice rombudo. Finalmente, o C. nevadensis tem base lenhosa e, amiúde, caules rastejantes ou mesmo pendentes; por contraste, o C. ruber é inteiramente herbáceo e apresenta caules quase sempre erectos.

Nestas duas espécies de Centranthus há um detalhe que só de perto se aprecia: os tubos florais são prolongados na base por um comprido esporão (veja-se a 5.ª foto aí em cima) — que contém, como é usual, o néctar com que a planta atrai e recompensa os polinizadores. Tal morfologia impõe que esses insectos sejam minúsculos (para caberem no tubo) ou disponham de trombas desproporcionalmente compridas. A segunda hipótese é que é válida, pois é sabido que estas plantas são polinizadas por borboletas.

Do que as fotos também dão testemunho é que afinal o fotógrafo conseguiu chegar junto das plantas. Terá perdido o amor à vida, ignorando o perigo do precipício? Nada disso. Sucedeu apenas que, uns dias depois, ainda na serra Nevada, eu e a Maria reencontrámos o C. nevadensis na berma escarpada de uma estrada, e aí a única ameaça à integridade física vinha do trânsito moderamente intenso.

Centranthus ruber (L.) DC.
(jardim da Casa Tait, no Porto)