01/12/2023

O rosalito que faltava



É boa pedagogia fazermos pausas ocasionais para rever a matéria dada, consolidando conhecimentos antes de nos embrenharmos em novos assuntos. Sem uma atenção constante aos fundamentos não há como atingir a sabedoria, seja qual for o campo de especialização. Neste caso o âmbito do estudo é modesto, e a revisão da matéria faz-se em poucos minutos. Convidamos o leitor a relembrar o que lhe ensinámos aqui mesmo há um ano sobre o género Pterocephalus. Ficou então a saber que só saindo de território português poderia admirar ao vivo e no habitat próprio estas primas arbustivas das bem conhecidas escabiosas. De facto, e apesar de existir um Pterocephalus no sudoeste de Espanha (veja aqui), a aposta mais segura é dirigir-se às Canárias, onde são quatro as espécies do género, todas endémicas do arquipélago. Como três delas existem em Tenerife, é essa a escolha óbvia para um principiante na matéria, e foram precisamente as espécies tenerifenhas que ilustraram a nossa primeira lição sobre o assunto. Essa primeira lição bem poderia ter sido a última, pois nada temos a acrescentar aos fundamentos teóricos então expostos. Ficou por ilustrar o Pterocephalus porphyranthus, endémico de La Palma. Tendo entretanto visitado essa ilha, completámos a nossa colecção de rosalitos canarinos e podemos agora mostrar o cromo que faltava.

Pterocephalus porphyranthus Svent.


Porphyranthus significa "flores púrpuras", e salta à vista que este rosalito palmense tem flores mais escuras que os seus primos de Tenerife. À parte disso, distingue-se pelo porte (é bem mais pequeno do que o P. dumetorus), pela forma, tamanho e disposição das folhas, e pelas brácteas dos capítulos florais. São esses detalhes morfológicos que permitem afirmar com toda a certeza que as plantas de flores brancas das duas últimas fotos — e que se encontravam misturadas com plantas normais — pertencem à mesma espécie, apesar da cor anómala das flores. Estas mutações de cor surgem ocasionalmente em muitas linhagens de plantas e, pelos lucros que podem trazer, são muito apreciadas por horticultores. As exigências ecológicas do Pterocephalus porphyranthus e dos demais rosalitos das Canárias não parecem, infelizmente, torná-los propícios à domesticação, e é improvável que o cultivo destas plantas em jardim seja bem sucedido. Vivendo a mais de 2000 de altitude numa ilha sub-tropical, sobre rochas vulcânicas, e sujeito a grandes amplitudes térmicas, o rosalito de La Palma está adaptado a condições de vida que dificilmente podem ser recriadas noutro local do planeta — ou mesmo numa estufa. Quem quiser vê-lo em flor tem mesmo que ir a La Palma e subir ao cume da ilha, de preferência entre meados de Maio e princípios de Julho.

24/11/2023

Giesta ressuscitada



Embora nos desagrade a ideia, é bastante provável que, se os humanos desaparecessem da Terra, parte do planeta rejubilaria, recuperando do impacto nocivo da nossa estadia. Não ignoramos que a destruição de inúmeros habitats e a extinção de várias espécies se devem sobretudo ao péssimo uso que fazemos da nossa casa comum. Por isso, face a uma tempestade de proporções inéditas, tememos que seja a natureza, por essa via, a castigar-nos pelos nossos excessos, tentando expulsar-nos daqui. Nesses momentos de pânico, juramos que iremos poluir menos, cuidar melhor das florestas, proteger as fontes de água, implementar programas eficazes de preservação do ambiente, combater a desinformação e manter sob vigilância todos os infractores. Claro que, mal chega a bonança, das promessas só resta a notícia delas nos jornais, que assim as recriam, para os mais desatentos, como juras cumpridas. Tudo em vão, portanto? Nem sempre.

Genista benehoavensis (Bolle) del Arco


A leguminosa das fotos é um endemismo das Canárias e a única espécie conhecida do género Genista neste arquipélago. A sua distribuição restringe-se à metade norte da ilha de La Palma, entre os 2000 e os 2500 m de altitude, em ladeiras escarpadas e soalheiras da caldeira do vulcão Taburiente e redondezas. Esteve há uns anos quase à beira da extinção. Sendo estes arbustos (de 2 a 4 metros de altura) tão vigorosos e ramificados, soa estranho que as cabras, os coelhos, a ventania e os deslizamentos de terra os conseguissem dizimar. Mas não custa acreditar que a acção conjunta destes elementos, a par dos incêndios, seja capaz de destruir a maioria dos indivíduos novos e impedir a fixação em solo favorável das sementes, já de si lentas a germinar. Mais alguns anos sujeita a estas ameaças, e esta giesta teria desaparecido de La Palma.

Contudo, um programa de recuperação na caldeira do Taburiente, criando cercas de protecção, refazendo taludes, reintroduzindo a planta em locais propícios, vigiando os exemplares menos bem desenvolvidos e controlando a presença de herbívoros, conseguiu inverter o declínio desta espécie. Contam-se hoje mais de 3 mil indivíduos maduros, que no Verão florescem abundantemente. As fotos de detalhes morfológicos destas plantas foram mais difíceis de obter por causa das vedações, mas no Roque de los Muchachos o número de indivíduos não plantados e fora de resguardos é, felizmente, já significativo.

Notem como as folhas destas plantas são sésseis e elípticas, e como as flores amarelas e solitárias se agrupam nos ápices dos ramos. Isto é o usual no género Genista. Todavia, reparem também na textura sedosa, prateada por tanta penugem, dos ramos, cálices e exterior dos estandartes e quilhas. Estas primas do arranha-lobos nem um gatinho machucariam.

13/11/2023

Arroz cristalizado

Montes de Luna — La Palma, Canárias
O género Monanthes — que, descontando uma espécie nas Selvagens, é exlusivo das Canárias — tem muitas qualidades para merecer o apreço de quem gosta de cultivar suculentas em casa. Sobretudo se a casa for pequena, pois até numa embalagem de iogurte é possível acomodar estas miniaturas. Talvez os detalhes delicados das pequenas jóias que são as flores (de uns 4 a 8 mm de diâmetro) só à lupa se apreciem com justeza, mas o efeito de conjunto é de uma harmonia e simetria inegáveis. Para completar o mostruário que há quatro anos dedicámos ao género, trazemos duas espécies de méritos desiguais, fotografadas nos seus habitats nas ilhas de que são endémicas: a primeira (Monanthes subrosulata) em La Palma, a segunda (Monanthes anagensis) em Tenerife. Ambas são desprovidas de rosetas basais (nisso contrastando com a M. polyphylla, talvez a favorita dos coleccionadores) e apresentam caules ramificados rastejantes ou às vezes pendentes, com as folhas carnudas dispostas em espiral.

Monanthes subrosulata Bañares & A. Acev.-Rodr.


É improvável que a Monanthes subrosulata ganhe concursos de beleza ou atraia o interesse dos aficionados por suculentas, mas deve ressalvar-se que não a fotografámos no seu melhor momento. Vivendo no sul de La Palma, na zona mais árida da ilha, resguarda-se do sol inclemente procurando fendas de grandes rochas vulcânicas. Como precaução adicional, usa os meses mais frescos do ano para florir e frutificar, e em Maio, com as tarefas reprodutivas já cumpridas, mostra-se quase petrificada, como se fosse feita da mesma rocha que lhe serve de casa (quem quiser vê-la com melhor cara pode espreitar esta foto). As folhas rugosas, cobertas de papilas proeminentes, parecem arroz cristalizado, e não permitem confundir esta espécie com nenhuma das suas congéneres. Contudo, ela foi apenas baptizada em 2013, muitos anos depois das restantes espécies do género, a maioria das quais foi descrita ainda durante o século XIX.

Monanthes anagensis Praeger


Se para uma em Maio o ano já acabou, para a outra mal começou. À M. subrosulata chegámos tarde para ver as flores, e à M. anagensis chegámos cedo, mas em ambas as ocasões viajámos no início de Maio. Não haverá outros meses no calendário para visitar as Canárias? Como o nome indica, a M. anagensis vive no maciço de Anaga, no extremo norte de Tenerife, beneficiando da frescura e da sombra da laurissilva: mesmo que não chova, há sempre a humidade trazida pelo nevoeiro e captada pelo arvoredo. Quem quiser observar a planta sem se estafar em caminhadas pode parar o carro em algum dos miradouros da serpenteante estrada de Chamorga e inspeccionar os taludes rochosos. Não precisa de muita sorte para dar com ela: os seus caules pendentes, com folhas estreitas de formato elíptico tingidas de vermelho, formam densos tapetes que se estendem por muitos metros. É bonita de se ver mesmo que não esteja em plena floração, e de facto parece sempre florir com parcimónia. Com alguma paciência, se a visita for entre Maio e Julho, lá se conseguirá ver uma ou outra florita despontando entre a folhagem.

06/11/2023

Orégão de enganar

O mundo tem andado com o pano de fundo bastante esborratado. Sem arte para repintar o planeta, são muitos os que ponderam, opinam, alertam e inquietam os demais sobre o que vai mal, como piorará e já não tem remédio. Por isso, continuemos nós a conversar de flores: as plantas estão habituadas a ser observadas e nós precisamos do sossego delas. Dirão alguns que é um momento impróprio para gastar tempo a nomear folhas e fotografar paisagens — que é essencialmente o que sobra lá fora depois das tempestadas recentes —, e ainda apreciar descaradamente esse privilégio. Têm razão, claro.



aqui escrevemos sobre o género Bystropogon, endémico dos arquipélagos da Madeira e das Canárias. Mostrámos então fotos do B. canariensis e mencionámos as duas espécies deste género endémicas da ilha da Madeira, B. maderensis e B. punctatus. São ambos arbustos pequenos, perenes e raros, que vivem em zonas húmidas na orla da floresta laurissilva e têm fortes parecenças entre si, na folhagem, na vilosidade e nas panículas ramificadas de flores pequeninas.

As Canárias, bafejadas que foram com maior diversidade botânica, contam com cinco espécies endémicas e outras tantas subspécies de Bystropogon. O que vos mostramos hoje é um endemismo de La Palma, fotografado em Maio no sul da ilha, na base do vulcão de San Antonio.

Bystropogon origanifolius var. palmensis Bornm.


Ao longe, parecia um exemplar bem desenvolvido (mais de 1 metro de altura) de orégão com uma nuvem em cima. Já perto, confirmámos que as folhas tinham o aroma inconfundível do orégão, mas algo não batia certo: o orégão não tem as sépalas (folhas modificadas que protegem as flores e os frutos de predadores, da seca e de outros desastres) penugentas, espinhosas e estreladas. Nesse pormenor, a planta que víamos era mais parecida com o tomilho Thymus mastichina. Esta hesitação em posicionar este arbusto numa lista de flora conhecida não foi todavia só nossa. Julgou-se outrora, com base em semelhanças morfológicas, que o género Bystropogon seria parente de outro da América do Sul — um indício interessante de colonização da Macaronésia pelo continente americano. Contudo, estudos genéticos mais recentes, com o objectivo de estabelecer o parentesco e origem deste género, foram inconclusivos: parece que o Bystropogon tem família próxima também na Europa e em montanhas de África. Como todos nós, aliás.

30/10/2023

Codesso das alturas



Seja na alta montanha ou à beira-mar, os ventos persistentes em zonas desabrigadas têm muitas vezes o efeito de vergarem a espinha às árvores, obrigando-as a adoptar uma postura rastejante; e elas, impedidas de crescer na vertical, resignam-se a fazê-lo na horizontal. No (defunto) pinhal de Leiria, em zonas mais próximas do mar, eram comuns os chamados pinheiros-serpente — e, de facto, as condições para tão estranha forma de crescimento repetem-se em grande parte do litoral português. Se ascendermos às montanhas, há arbutos que só admitem crescer rentes ao solo, formando tapetes de poucos centímetros de espessura. O zimbro-rasteiro (Juniperus communis), que em Portugal se restringe à serra da Estrela (onde é abundante) e à serra do Gerês (onde é escasso), é um exemplo emblemático desse fenómeno.

A planta abaixo retratada, habitante da caldeira de Taburiente na ilha de La Palma, nunca seria exactamente uma árvore — mas, em condições menos agrestes, formaria um arbusto erecto e compostinho, com mais de dois metros de altura. O género de leguminosas a que pertence, Adenocarpus, não costuma destacar-se pela longevidade, talvez por essas plantas serem parte daqueles matos indiferenciados tantas vezes cortados para lenha ou queimados. A ideia de um codesso monumental (tanto em Portugal como em Espanha, codesso é o nome vernáculo dos Adenocarpus) é tão estranha como a de uma giesta ou de um tojo monumentais. No entanto, é forçoso admitir, contemplando-lhe o tronco com quase meio metro de espessura, que este particular codesso de La Palma possa ter muitas dezenas de anos de vida. Não foi a idade que o vergou, mas o vento. E na mesma zona, que é a de maior altitude na ilha, rondando os 2400 metros, vivem muitos outros codessos de idade avançada, todos eles rastejantes por culpa dos ventos. Pelo menos para aqueles arbustos que sobrevivem à fase juvenil, será que o ambiente agreste e o ar rarefeito da montanha é propício à longevidade?

Adenocarpus viscosus subsp. spartioides Rivas-Mart. & Belmonte


Caracterizados pelas folhas trifoliadas persistentes, pela ramagem profusa e destituída de espinhos, e pelas flores amarelas dispostas em cachos terminais, os arbustos do género Adenocarpus perfazem dez espécies na Peninsula Iberica, seis delas presentes em Portugal. Nas Canárias são três as espécies reportadas, todas endémicas do arquipélago: A. ombriosus (só em El Hierro), A. foliolosus (em todas as ilhas excepto Lanzarote e Fuerteventura) e A. viscosus (apenas em Tenerife e La Palma). A primeira é um arbusto que não ultrapassa 50 ou 60 cm de altura, enquanto que as outras duas atingem envergaduras respeitáveis, podendo o A. foliolosus ascender aos 4 metros. A distinção entre as duas espécies presentes em várias ilhas pode fazer-se pelos cálices (que são densamente pelosos mas sem glândulas no A. foliolosus, e glandulosos com pêlos esparsos no A. viscosus) e pelas vagens (só as do A. viscosus são glandulosas — confirme-se na 3.ª foto acima). Do A. viscosus reconhecem-se duas subespécies, a subespécie nominal apenas em Tenerife e a subsp. spartioides (ilustrada nas fotos) exclusiva de La Palma, justificando-se a segregação pelo comprimento das folhas: são muito mais alongadas as da subespécie palmense (14 mm contra 3-7 mm).

21/10/2023

Orejas de Los Muchachos



Uma revisão exaustiva do género Cerastium nos arquipélagos dos Açores, Madeira e Canárias, publicada em 1966, identificou três espécies endémicas perenes na Macaronésia com acentuadas semelhanças morfológicas:

(a) Cerastium azoricum, endemismo dos Açores cuja distribuição se restringe às ilhas das Flores e Corvo. Aprecia rochas e ravinas húmidas desde a costa até altitudes acima dos 500 m. Floresce entre Maio e Julho.

(b) Cerastium vagans var. vagans, endémica da ilha da Madeira, planta rara que vive em escarpas rochosas na zona montanhosa central, entre os 900 e os 1800 m de altitude, onde a chuva é moderada durante quase todo o ano e não há grandes variações de temperatura. As flores são de Verão, entre Julho e Agosto.

(c) Cerastium sventenii, endemismo das Canárias com presença apenas confirmada em El Hierro, La Palma e Tenerife. A floração decorre entre Maio e Julho e as inflorescências contêm 6 a 8 flores. Habita paredes rochosas húmidas em bosques temperados de alta montanha entre os 1500 e os 2400 m. As fotos do C. sventenii são do Roque de los Muchachos, o pico rochoso mais alto de La Palma e que fecha a caldeira do vulcão Taburiente a norte. Os exemplares em flor estavam a cerca de 2400 m de altitude, mas nessa altura (era Maio) a maioria das plantas que vimos não tinha ainda iniciado a floração.

Cerastium sventenii Jalas


As plantas destas três espécies são hirsutas, com ramos erectos, folhas lanceoladas opostas e flores de pétalas brancas mais longas do que as sépalas. Têm ainda em comum o facto de serem espécies ameaçadas, seja por perda de habitat seja pela herbivoria, sobretudo por cabras que se empinam facilmente nas falésias e não resistem às ervas verdinhas. Contudo, há também diferenças a assinalar, sobretudo entre a espécie açoriana e as outras duas, e essencialmente no que se refere aos requisitos climáticos e de habitat. O autor do tal estudo, Jaakko Jalas, mais atento à anatomia das plantas, notou que as folhas da espécie açoriana são mais largas, com uma nervura central de secção triangular (circular no caso do C. sventenii, com um formato intermédio no C. vagans); e também que os cálices das flores açorianas são ligeiramente maiores, embora, em contrapartida, as inflorescências sejam menos vistosas e as sementes bastante mais pequenas. Tamanhos e preferências ambientais à parte, parece estar por fazer um moderno estudo genético de comparação entre estas três espécies, e também entre elas e algumas orelhas-de-rato europeias (como o C. arvense ou o C. gibraltaricum, candidatos a parentes próximos), para se conhecer a origem das plantas da Macaronésia e se obter uma identificação segura destes endemismos.

Curiosamente, no artigo em que se reporta o referido estudo taxonómico é mencionada a presença de uma população de Cerastium na ilha de São Jorge, registada por Tutin e Warburg em 1932 como C. vagans var. ciliatum. Não foi reencontrada depois disso, mas não deixa de ser uma boa notícia, ainda que algo atrasada, e que nos fará agendar trabalho de campo para uma próxima visita a esta ilha.

09/10/2023

Falésia dos cabeçudos



A ilha de La Palma tem o formato de uma pêra alongando-se no sentido norte-sul, delgada a sul e achatada a norte. No extremo sul os montes descem gradualmente para o mar, mas a norte a ilha é rematada por falésias quase a pique, com alturas variando entre os 200 e os 300 metros. A despeito da aparência formidável, as falésias não formam barreira intransponível: aqui e ali, rompem-nas os vales profundos dos barrancos. Cavados por ribeiros que, hoje em dia, só por excepção levam água, tais barrancos permitem, aos caminhantes mais ágeis e intrépidos, o acesso ao mar em alguns raros pontos. Se não lhes for possível chegar mesmo ao pé do mar, hão-de pelo menos conseguir que as ondas os salpiquem. Nestes vales orientados a norte, e apesar dos ribeiros sem água, o recorte acidentado dos barrancos e a incidência menos intensa da luz solar criaram recantos de comparativa frescura. Neles se desenvolveu uma vegetação exuberante, em regra dominada por espécies endémicas. Entre as aldeias de Gallegos e El Tablado, são vários os barrancos verdejantes que à riqueza florística aliam um valor cénico invejável, e não é surpresa que toda esta área costeira tenha sido declarada reserva natural. Entre os arbustos, são as tabaibas (Euphorbia lamarckii e Euphorbia balsamifera) e os cardónes (Euphorbia canariensis) que, na paisagem, monopolizam o olhar. Mas há plantas mais discretas brotando em fendas de rochas ou abrigadas em pequenas bolsas terrosas. Pelo menos uma delas é endémica destas falésias e barrancos: só existe nesta ilha, e só neste lugar.

Cheirolophus sventenii (A. Santos) G. Kunkel subsp. sventenii


A planta em questão, Cheirolophus sventenii subsp. sventenii, não é caso único no seu género. Das 18 espécies ou subespécies de Cheirolophus endémicas das Canárias, só uma (C. teydis, de Tenerife e La Palma) ocorre em mais do que uma ilha; a maioria delas são raras e têm áreas de distribuição exíguas. O relevo abrupto da ilha decerto favoreceu o isolamento reprodutivo, e são nada menos que sete os Cheirolophus endémicos de La Palma. Aquele de que hoje nos ocupamos é, apesar de tudo, dos mais fáceis de encontrar.

Cabezónes é como são chamados os Cheirolophus nas Canárias. Vivendo este na costa de Guelguén e na reserva natural do mesmo nome, foi inevitável baptizarem-no como cabezón de Guelguén. É um arbusto de 80 a 100 cm de altura, com grandes folhas glabras e lustrosas, de margens ligeiramente serradas. Os capítulos são de um branco levemente amarelado, e as brácteas involucrais são rematadas (como é regra no género) por um apêndice laciniado, que nesta subespécie apresenta segmentos muito curtos. Também em La Palma, mas na costa oeste da ilha, ocorre o Cheirolophus sventenii subsp. gracilis, com folhas mais estreitas, pedúnculos mais alongados e lacínias das brácteas distintamente mais compridas (fotos nesta página).

Ainda que o vento tenha dificultado a tarefa do fotógrafo, foi gratificante encontrar em flor logo em Maio, no início da temporada a isso dedicada, uma planta tão bonita e tão escassa — valendo-nos por todos os Cheirolophus que não encontrámos ou, tendo encontrado, não vimos em flor. O cabezón do Teide, abundantíssimo nas altas montanhas de Tenerife, nunca se dignou a mostrar-nos as flores (essas sim amarelas), alegando só poder fazê-lo em datas que não nos convinham.

02/10/2023

A viagem dos massarocos

Somos uma espécie fascinada pelo passado, inquieta com o que a memória não guarda ou, pelo contrário, não é capaz de esquecer. E há ainda o passado muito longínquo, fora das nossas lembranças, que queremos a todo o custo reconstituir — incluindo perceber como é que os dinossauros, tão grandes e poderosos, se extinguiram. Sem testemunhas, buscam-se dados nos registos que a Terra conserva. As interpretações dessa informação que os cientistas publicitam são por vezes controversas — afinal a ciência não é uma doutrina — mas há capítulos da história da Terra que são consensuais. Exemplo disso é o relato da radiação evolutiva das espécies endémicas do género Echium nas Canárias, Madeira e Cabo Verde.

Echium perezii Sprague


A análise de vários marcadores genéticos (que pode ler-se aqui) em mais de 30 destas espécies de massaroco (ou tajinaste, para usar o nome espanhol) indica que todos estes endemismos do género Echium na Macaronésia derivam de um antepassado comum, oriundo da região mediterrânica. Os indícios apontam ainda para a existência de um único evento de colonização, que terá ocorrido nas Canárias há milhões de anos; as espécies que ali nasceram como resultado do isolamento insular ter-se-ão depois disseminado para os arquipélagos da Madeira e de Cabo Verde. Tendo em conta os ventos dominantes em torno dos três arquipélagos, crê-se que, neste processo de disseminação de sementes a tão grandes distâncias, as aves terão tido a maior parte do mérito.

Mas há ainda um pormenor da história dos massarocos endémicos das Canárias (mais de 20) a que vale a pena regressar. Apesar de descenderem de plantas do continente, que são todas herbáceas, algumas destas espécies insulares de Echium são arbustos lenhosos e perenes (apresentando uma roseta basal de folhas ou inúmeros ramos a formar um candelabro). Além disso, são vários os que florescem apenas uma vez, ao fim de dois anos de vida (digamos), gerando uma inflorescência gigante em espiga com milhares de flores, e morrendo em seguida.

Echium gentianoides Webb ex Coincy


Estas diferenças de morfologia e ciclo de vida estão decerto relacionadas com a diversidade de habitats nas ilhas da Macaronésia, sem grandes herbívoros, com clima quente e solo vulcânico rico em nutrientes. Mas que lucro há afinal em serem plantas lenhosas se florescem uma única vez, ainda que abundantemente? Segundo os estudiosos, e o bom senso, a longevidade é sempre uma vantagem quando se compete. E, numa fase da história das ilhas em que haveria poucos polinizadores, terá sido mais benéfico investir numa única época de floração exuberante, em vez de gastar energia anualmente nesse processo sem tanto proveito. Ora, convenhamos, para se sustentar uma inflorescência com tamanha abundância de flores, é boa ideia começar por fincar bem o pé no chão, de preferência com uma roseta larga de folhas robustas e um tronco firme.

Sendo indesmentível que estes endemismos da Macaronésia são colonizadores competentes, surpreende-nos que nenhum tenha conseguido instalar-se no continente europeu, fechando o ciclo desta disseminação do género Echium. Ou será o Echium boissieri um torna-viagem?

Echium webbii Coincy