17/05/2025

A fábrica das espécies



La Gomera, a segunda menor das sete principais ilhas das Canárias, é uma fábrica muito diligente de diversidade vegetal. Só do género Sideritis, nem sequer o mais variado da flora dessa ilha (é ultrapassado pelo género Aeonium), são seis as espécies ou subespécies endémicas de La Gomera. Tenerife, com uma área quase seis vezes superior, fica-se pelas dezasseis, o que significa que a menor das duas ilhas se sai airosamente da contenda. O que terá levado este género de lamiáceas a produzir tamanha diversidade de espécies em territórios tão exíguos? É bom lembrar que também na flora de Portugal continental existem Sideritis, mas apenas quatro espécies, o que nos coloca numa situação de embaraçosa inferioridade face ao arquipélago das Canárias. No resto da Península a situação compõe-se, cifrando-se o total peninsular em 34 espécies, mas a desigualdade entre Portugal e Espanha impõe a pergunta: sabendo nós que o género Sideritis é apenas um dos muitos exemplos que poderíamos aduzir, o que há de diferente no território continental português para justificar a nossa comparativa pobreza florística? A resposta passa certamente por uma maior homogeneidade do nosso território (o único grande contraste dá-se entre o que fica a norte e o que fica a sul do Tejo), daí resultando uma menor diversidade de habitats. Ao contrário de Espanha, não temos altas montanhas nem desertos, e — embora o Algarve se esforce valorosamete por suprir a falha — falta-nos por completo uma costa mediterrânica. Mas esta explicação simplista não cobre o caso das Canárias, e ainda menos o de La Gomera, pois também aí a diversidade de habitats é pouca: o sul da ilha é quase desértico, o norte é fresco e arborizado, e a transição entre as duas metades faz-se por uma zona central montanhosa bastante agreste, com uma altitude máxima próxima dos 1500 metros. Assim, é de supor que o factor decisivo nesta especiação desenfreada tenha sido o relevo acidentado da ilha, ao criar barreiras geográficas entre populações de plantas que originalmente seriam da mesma espécie.

Sideritis gomerae subsp. perezii Negrín


As Sideritis da Macaronésia (Canárias e Madeira) são todas muito semelhantes, e contrastam marcadamente com as suas congéneres peninsulares pelo hábito lenhoso e pelas flores tubulares com labelo e estandarte muito reduzidos. Isso justifica que tenham sido segregadas num subgénero próprio (Marrubiastrum), e sugere que todas elas sejam descendentes de uma mesma espécie ancestral. Ou seja, a presença do género Sideritis nestes arquipélagos terá resultado de um único evento colonizador, seguido de radiação e especiação. Um estudo de 2002 (Origin of Macaronesian Sideritis L. (Lamioideae: Lamiaceae) inferred from nuclear and chloroplast sequence datasets) comprova isso mesmo, estabelecendo ainda que a linhagem das Sideritis macaronésicas teve origem provável no norte de África, pois o seu parente continental mais próximo actualmente conhecido é a marroquina S. cossoniana.

Regressamos a La Gomera e às plantas hoje no escaparate, ambas endémicas dessa ilha: dentro do grupo reconhecível a que pertencem, não poderiam ser mais diferentes. A Sideritis gomerae subsp. perezii (fotos em cima) vive em taludes rochosos íngremes ou mesmo verticais na vertente sul do centro montanhoso de La Gomera, entre os 700 e os 1000 metros de altitude; é uma planta atarracada, com ramos lenhosos curtos, hastes florais crescendo na horizontal, e folhas lanudas algo retorcidas.

A Sideritis lotsyi (fotos em baixo) é uma planta arbustiva com um tronco bem formado, capaz de ultrapassar um metro de altura, com folhas lanceoladas, verdes na face superior, e hastes florais erectas, rematadas por inflorescências compactas. Mora também na região central de La Gomera, entre os 600 e os 1300 m de altitude, mas prefere lugares abrigados e não desdenha misturar-se com a restante vegetação, acantonando-se por vezes em pinhais e retamais.

Sideritis lotsyi (Pit.) Ceballos & Ortuño

03/05/2025

Paredes com bolinhas



Os botânicos preguiçosos como nós têm em muros e taludes alguns dos seus postos de observação favoritos. São lugares de fácil acesso, e a proximidade da civilização sempre nos traz algum conforto: não estamos perdidos na selva, não há lobos ferozes nem répteis venenosos à espreita, só convém estarmos atentos ao trânsito automóvel, se o houver. E não é apenas uma questão de conveniência: mesmo em bosques bem conservados, as plantas mais amigas da luz refugiam-se em clareiras, e qualquer estrada que atravesse um bosque propicia essa luz suplementar. As plantas acenam-nos à porta, não é preciso embrenharmo-nos no arvoredo para encontrarmos as raridades botânicas. Só que em Portugal isto deixou de ser assim desde que passou a vigorar uma ordem geral de limpeza de taludes. Nem os espaços nominalmente protegidos ficam a salvo do desbaste: as bermas de estrada atacadas de calvície tanto se vêem em Pitões das Júnias, nos confins do Gerês, como em Porto de Mós, na serra dos Candeeiros. Não são poucas as espécies ameaçadas que têm em bermas de estrada o seu refúgio de eleição, seja porque as estradas funcionam como clareiras, seja porque os espaços em volta foram ocupados com cultivos ou construções. Essa limpeza cega, sem qualquer efeito mensurável na prevenção e controlo de incêndios, não só torna o país mais feio e triste como implica reais perdas de biodiversidade.

O remédio é virarmo-nos para os países que não foram atacados pela loucura higienista de querer extirpar toda a vegetação espontânea das bermas de estrada ou da vizinhança das povoações. Felizmente ainda nos sobra um vasto mundo, pois tanto quanto sabemos o único país afectado por essa insanidade é o nosso. Hoje continuamos nas Canárias, e são duas as ilhas que visitamos: Tenerife e La Gomera. As plantas em destaque, ambas do género Monanthes, habitam em muros e taludes rochosos, muitas vezes junto a estradas ou edifícios. Se fossem portuguesas, a sua pequenez talvez as pusesse a salvo das roçadoras — mas nunca se sabe, pois entre nós, graças à desmesurada procura, as técnicas de desbaste da vegetação têm registado grandes progressos, e em último caso há o recurso aos herbicidas.

Monanthes minima (Bolle) Christ subsp. minima


A Monanthes minima (fotos acima) talvez não seja a menor do seu género, mas é sem dúvida minúscula: as rosetas, formadas por folhas peludas e espatuladas, tem 2 a 4 cm de diâmetro, e as flores ficam-se pelos 4 ou 5 mm. O tom por vezes avermelhado das folhas pouco contrasta com a cor do substrato terroso onde a planta costuma vegetar, tornando ainda mais problemática a sua detecção. Vivendo na vertente sul do maciço de Anaga, região bastante seca da ilha de Tenerife, procura refúgio em taludes com bom ensombramento e alguns vestígios de humidade. Lugares com esses requisitos encontram-se em paredões com orientação norte no barranco de Igueste de San Andres, que foi onde fotografámos a planta.

A Monanthes pallens, abaixo ilustrada, foi por nós avistada em La Gomera, embora esteja igualmente assinalada para Tenerife. As rosetas basais e as flores são tão miniaturais quanto as da sua congénere; contudo, as folhas imbricadas dispõem-se num padrão geométrico característico, semelhante ao da M. polyphylla mas com rosetas achatadas em vez de semi-esféricas. A M. pallens não parece incomodar-se com a secura e o calor, tanto assim que a encontrámos nas proximidades do Roque Sombrero, um dos lugares mais áridos de La Gomera.

Monanthes pallens (Webb) Christ


O género Monanthes inclui 14 espécies, das quais só duas não são endémicas das Canárias: M. atlantica, na cordilheira do Atlas em Marrocos, e M. lowei, nas Selvagens. Talvez o desejo de reunificação política desse género botânico explique em parte o apetite espanhol pelo mini-arquipélago português — que, de facto, está mais perto das Canárias do que da Madeira. Em todo o caso, nas Canárias as pelotillas (nome que significa bolinhas e é aplicado sem distinção a todas estas plantas) hão-de continuar firmemente agarradas a paredes e taludes, sem que ninguém se esforce em as erradicar.

27/04/2025

Pequeno mato azul



Por causa da prevenção dos incêndios, em Abril, seja mês chuvoso ou seco, começa o corte drástico da vegetação herbácea nos taludes das estradas. Há que eliminar as plantas, culpadas por atiçarem o fogo. Para optimizar esta tarefa (embora não o custo dela, pois alimenta generosamente inúmeras empresas ditas de jardinagem), ainda há quem as destrua (ilegalmente, supomos) com herbicida. De benefício duvidoso, estas medidas têm tirado carácter à nossa Primavera: em vez da profusão de flores e tonalidades, caracteriza-a agora a paisagem monotonamente castanha, sem plantas, sem passarada, sem joaninhas e sem abelhas. Há quem alerte para o mal que estas práticas provocam aos ecossistemas, e por tabela à agricultura e à nossa saúde, mas o medo dos incêndios sobrepõe-se ao bom senso. Nas Canárias, felizmente, ainda não se usa este barbear agressivo dos taludes. Por isso, há por lá estradas magníficas, bordejadas de vegetação, onde se circula devagar para se apreciar devidamente a natureza.

Dicheranthus plocamoides Webb


Este é um endemismo canariense que só ocorre em ladeiras rochosas e soalheiras de La Gomera e Tenerife, em geral orientadas a norte, entre os 200 e os 1200 m de altitude. Trata-se de uma planta com 20-100 cm de altura, de perfil arredondado, base lenhosa e ramos jovens de textura herbácea, que chama a atenção pela folhagem azulada. O género Dicheranthus é monoespecífico, e destaca-se na família Caryophyllaceae por ser arbustivo. O epíteto específico plocamoides refere-se à semelhança da folhagem destas plantas (conhecidas como falsos balos de risco), frequentemente pendular, com a do género Plocama (o verdadeiro balo).

Notem na 2ª e 3ª fotos como as folhas são suculentas e as inflorescências densas, embora as flores sejam minúsculas (de uns 2 mm de comprimento) e sem corola. Estão, porém, protegidas por sépalas bicolores, que substituem perfeitamente as pétalas na tarefa de atrair os polinizadores. Mal se vê mas, em cada cimeira de flores, as sépalas das flores exteriores são membranosas e as das flores interiores parecem foices, com uma ponta aguçada. Que vantagem haverá para a planta nesta diferenciação?

As fotos foram captadas numa estrada do centro da ilha de La Gomera, a mais de 1100 m de altitude, onde em Maio ainda se sente bastante frio matinal.

12/04/2025

Ilha de assobios



Quando dos lábios nos sai um assobio imitando os acordes da última cançoneta que se nos infiltrou na cabeça, estamos, ainda que involuntariamente e sem destinatário definido, a comunicar. Todos os gestos que fazemos e actos que praticamos são formas de comunicação: reportam sobre o que nos vai na mente, mesmo que ninguém esteja interessado em decifrar tal informação. Dito isto, reconheça-se que tais formas de comunicar só costumam transmitir informações rudimentares: que estamos alegres ou tristes ou distraídos, ou que vimos algo que nos enfureceu ou assustou. Haver uma linguagem elaborada toda ela feita de assobios, por exemplo, já suscita reacções de dúvida e estranheza: não será história inventada por ficcionistas? Trata-se até de enredo assaz batido, o da linguagem secreta usada por um grupo de resistentes (ou por um povo oprimido) para se organizar na luta contra a tirania.

É sabido que em La Gomera existe ou existiu uma linguagem de assobios, herdada dos Guanches que habitaram a ilha antes da colonização espanhola. A orografia explicaria essa evolução, já que transpor os muitos barrancos que sulcam a ilha é complicado, e os assobios se ouvem melhor ao longe do que os gritos das mais estridentes cordas vocais. Por razões análogas, os povos indígenas norte-americanos inventaram a comunicação por tambores ou por sinais de fumo, e sobre estes meios os assobios têm a vantagem da portabilidade: a qualquer momento, sem necessidade de acender fogueiras ou de carregar tambores às costas, cada assobiador está apto a enviar as suas mensagens.

Agora que a distância não é óbice à comunicação, nem há opressores de quem esconder o que é comunicado, é natural que os assobios de La Gomera tenham caído em desuso, ou só sobrevivam como produto turístico. E talvez o assobiador para turista ouvir já nem se preocupe em compor mensagens com nexo, pois afinal ninguém o entende. Certa vez, na nossa visita à ilha, um senhor idoso assobiou para nós — ou falou connosco aos assobios. Parecia afável, pode apenas ter-nos desejado bom dia, mas a mensagem não passou.

Silene bourgeaui Webb ex Christ


Podemos contudo confirmar que em La Gomera existe um assobio que é próprio da ilha e não se encontra em mais sítio nenhum. Não é um assobio sonoro, mas sim vegetal, e o reconhecimento da sua existência só está ao alcance dos falantes de português. Chamando nós assobios às plantas do género Silene, a esta Silene bourgeaui só podemos dar o nome de assobio-de-La-Gomera, enquanto que os espanhóis, a quem igual trocadilho está vedado, lhe chamam insipidamente canutillo gomero.

A Silene bourgeaui é um pequeno arbusto de base lenhosa, com hastes floríferas erectas de uns 30 cm de altura. As flores são brancas, viradas para cima, e no aspecto geral este assobio é bem mais compacto e arrumadinho do que a S. pogonocalyx, outro endemismo canarino (esse de La Palma e de El Hierro) que já aqui mostrámos. A S. bourgeaui floresce entre Fevereiro e Maio, e vive em escarpas rochosas do centro e norte de La Gomera. Encontrámo-la em boa quantidade na Fortaleza de Chipude, que é um respeitável maciço rochoso sobranceiro à povoação com o mesmo nome.

05/04/2025

Ensaiões de La Gomera III & IV



Os ensaiões de haste não ramificada podem escolher entre dois modelos vincadamente contrastantes. No primeiro — exemplificado pelo Aeonium appendiculatum, que mostrámos no fascículo anterior desta série — as plantas têm um «tronco» bem definido, acastanhado, despido de folhagem, encimado por um saiote de folhas onde se aninha ampla inflorescência mais ou menos semiesférica. No segundo modelo, a roseta de folhas está colada ao solo e dela emerge uma haste floral verde e folharuda de alto a baixo, com as folhas reduzindo-se a pouco mais que escamas à medida que sobem. Nesse caso as flores podem concentrar-se no topo da haste (como sucede no Aeonium aizoon e no Aeonium aureum) ou formar uma inflorescência alongada, aproximadamente cónica. É essa última a opção do Aeonium canariense, representado em La Gomera pela subespécie latifolium, que é o primeiro dos ensaiões hoje aqui ilustrados.

Aeonium canariense subsp. latifolium (Burchard) Banares
Conhecido como pastel de risco na sua ilha natal, o nome vernáculo da planta não se refere a indisposições gástricas que afligiriam quem lhe comesse as folhas, mas sim à forma achatada (ou empastelada) da sua roseta basal, e à sua predilecção por zonas rochosas ou falésias (riscos em espanhol). Prefere lugares abrigados em ambiente florestal, como sejam clareiras da laurissilva, e por isso está confinada à fresca e arborizada metade norte de La Gomera. Outras versões do Aeonium canariense têm flores de diferentes cores (por exemplo, a subsp. canariense, restrita a Tenerife, tem flores de cor creme) ou rosetas não espalmadas de aspecto bem distinto (caso da subsp. virgineum, da Grã-Canária). Todas estas plantas possuem inegável valor ornamental, mas são avessas ao cultivo e não costumam sobreviver em condições que não reproduzam com exactidão o seu habitat natural.

Aeonium castello-paivae Bolle


O segundo ensaião de hoje, Aeonium castello-paivae ou bejequillo gomero, também um endemismo gomerense, vive entre os 200 e 1100 m de altitude em sítios escarpados e em geral soalheiros. Hibrida frequentemente com o A. decorum (que apresentámos no fascículo anterior), e de facto não difere muito dele: fica-se pelos 50 cm de altura, é assaz ramificado, e as suas folhas agrupam-se em rosetas de 4 a 7 cm de diâmetro nas extremidades dos galhos. As hastes florais são algo erectas e alongadas, e as flores, em tons de verde ou de bege, com pétalas estreitas, estão reunidas em cachos terminais. Florece entre Maio e Junho — e, ao que consta, dá-se bem em jardins, ainda que seja pouco cultivado. A ouvidos portugueses o epíteto castello-paivae não pode deixar de chamar a atenção, e a suspeita é prontamente confirmada: trata-se de uma homenagem a António de Costa Paiva (1806-1879), académico e naturalista portuense que viveu muitos anos na Madeira, feito barão de Castelo de Paiva em 1854 por ordem de D. Pedro V.

27/03/2025

Gigil (*)

Narcissus pseudonarcissus L.
Não são as ervas daninhas, são as flores
que governam os jardins. Os tribunais são sensíveis
aos odores que vêm da janela, e os juízes reduzem
cada pena de prisão a metade,
pois consideram que, em cidade
tão bela e cheirosa, estar fechado equivale
ao dobro do sacrifício.
Gonçalo M. Tavares, Uma viagem à Índia (Editorial Caminho, 2010)


(*) Inebriamento sentido face a algo adorável, como um gatinho ou uma paisagem outonal (explicação aqui)

20/03/2025

Em busca da serrátula perdida



Estudos recentes parecem indicar que, num formigueiro, nenhuma formiga é insubstituível. Nem mesmo a rainha, responsável pela renovação da população de formigas, tem essa prerrogativa. E a sobrevivência de cada colónia de formigas depende da eficiência e versatilidade da maioria dos seus habitantes. O sucesso desta estratégia é inquestionável: diz-se que a população de formigas (nome genérico para inúmeras espécies) na Terra excede os 20 mil biliões de indivíduos. Contudo, a quem valoriza o talento individual, encara a especialização no trabalho como um objectivo e cataloga a sociedade pelo tipo de emprego que cada um tem, esta estrutura da sociedade das formigas soa inverosímil. É certo que as tarefas que conseguimos listar para uma formiga não se nos afiguram demasido complexas. Mas a coordenação de um número muito elevado de formigas, que age aparentemente sem um líder como se se tratasse de um único ser vivo múltiplo, requer que cada formiga seja pouco exigente e não muito especializada. Entre nós, pelo contrário, há aquelas pessoas excepcionais que, tendo atingido um tal grau de mestria no seu trabalho, são de facto inigualáveis. Exemplo? Um vigilante da natureza depois de duas ou três décadas de caminhadas pelos inúmeros recantos do parque natural que tem a seu cargo proteger. Quando se reforma, todos lamentam a perda de memória sobre um vasto território natural, e reconhecem que a sua erudição sobre bosques, turfeiras, riachos, montanhas, flora, fauna, conservação da natureza e biodiver­sidade será difícil de recriar. Foi um destes notáveis vigilantes da natureza, entusiasmado e bem disposto, com um à-vontade invejável a calcorrear as penedias do Parque Natural da Peneda-Gerês, que ajudou alguns botânicos a encontrar perto da Fonte Fria um núcleo desta asterácea muito rara.

Klasea legionensis (Lacaita) Holub [serra do Gerês]


A Klasea legionensis é um endemismo do noroeste da Península Ibérica, havendo dela registos no Gerês, em Zamora e em Ourense, e encontrando-se a maior população da espécie nas margens do lago de Sanábria. A primeira notícia da presença desta planta em Portugal foi dada em 2008 na revista Silva Lusitana por Íñigo Pulgar e Miguel Serrano, que descobriram um núcleo junto à fronteira entre o Parque Nacional da Peneda-Gerês e o Parque Natural Baixa Limia-Serra do Xurés, com exemplares de ambos os lados.

Klasea legionensis (Lacaita) Holub [lago de Sanábria]
Estas são plantas perenes, de uns 80 cm de altura, apreciadoras de solos ácidos, que vivem em taludes levemente inclinados ou em orlas de matos rasteiros de urze vermelha e carqueja, em zonas montanhosas acima dos 1000 metros de altitude. Os seus indivíduos adultos, por razões que desconhecemos, decidem por vezes não florir durante vários anos seguidos, e o de 2024 terá sido um desses anos de repouso porque, na nossa visita à Fonte Fria, só vimos um exemplar em flor, vizinho de muitos outros reduzidos à roseta de folhas basais. Ao contrário das formigas, a K. legionensis parece incapaz de reagir a adversidades ambientais: recua com o adensamento dos matos e mostra-se pouco apta a colonizar novos habitats. A sua área global de distribuição tem-se reduzido dramaticamente nos últimos anos, e no Gerês contam-se, ou contavam-se até há poucos anos, cerca de 90 indivíduos. Morar em zona pouco frequentada por visitantes ou beneficiar da proteção dedicada dos vigilantes da natureza talvez sejam ajudas insuficientes para evitar que desapareça.

15/03/2025

Ensaiões de La Gomera I & II



Por ser esse o nome que lhes é dado na Madeira, chamamos ensaiões às plantas suculentas do género Aeonium. Nesse arquipélago as espécies endémicas são apenas duas: A. glutinosum e A. glandulosum, ambos de flores amarelas. Nas Canárias, de onde se presume que o género seja originário, os ensaiões são em muito maior número, diversificando-se tanto na forma de crescimento como na cor das flores. Os endemismos contam-se às dezenas, e incluem desde plantas rasteiras a arbustos de porte respeitável. Bastaria uma ilha só, a de Tenerife, com dezena e meia de espécies ou subespécies próprias, para ficarmos cientes dessa riqueza — de que já demos amostras elucidativas aqui e aqui, tendo ainda feito uma incursão a La Palma com o mesmo propósito. Mas a pulsão coleccionista leva-nos a querer conhecer os ensaiões das restantes ilhas das Canárias, mesmo que alguns nos pareçam pequenas variações de figurinos já conhecidos. Hoje aportamos a La Gomera para o primeiro de dois novos fascículos desta série intermitente.

Aeonium appendiculatum A. Banares


O Aeonium appendiculatum — que tem uma única haste robusta, não ramificada, com cerca de um metro de altura, encimada por grandiosa inflorescência piramidal em tons de branco e rosa — é claramente uma versão do tenerifenho A. urbicum, sendo quase sósia da subespécie meridionale. Distingue-se desta, contudo, pelas folhas glabras (não pulverulentas, apenas ciliadas nas margens) e pela inflorescência mais ampla e vistosa. Tendo já visto e fotografado ambas as plantas, não temos dúvidas em proclamar que a de La Gomera é a mais garbosa das duas. É possível encontrá-la, por vezes formando populações numerosas, nos barrancos soalheiros da metade sul de La Gomera, acima dos 400 metros de altitude. As fotos são do barranco de Benchijigua, onde a espécie é particularmente abundante e atinge a plena floração em meados de Maio.

Aeonium decorum Webb ex Bolle


O segundo ensaião de hoje, A. decorum, ocorre em La Gomera e em Tenerife: mas, das duas variedades reconhecidas, uma delas, a var. alucense, é exclusiva de La Gomera, e dela são as fotos aqui apresentadas. Trata-se de uma planta arbustiva rasteira, com ramos esparsos e retorcidos, que se fica pelos 20 cm de altura. A folhagem agrupa-se em rosetas nas extremidades dos ramos e tem uma coloração muito atraente em tons de verde, vermelho e laranja. As hastes florais são vermelhas e as flores, reunidas em cimeiras pouco numerosas, têm pétalas brancas tingidas de rosa. Encontrámos este A. decorum, em número escasso e já em final de floração (ou com floração abortada pelo calor e pela seca), em Maio de 2024, no barranco de Minguana (sudeste de La Gomera), a uns 600 metros de altitude.