29/03/2023

Bouquet de semprevivas

Limonium macrophyllum (Willd. ex Spreng.) Kuntze


Limónios, semprevivas ou lavandas-do-mar são três modos de em português designar as plantas do género Limonium. Chamamos-lhes semprevivas porque as flores, depois de secas, mantêm a forma e a cor quase indefinidamente — e nisso são um investimento de longo prazo tão compensador como as flores de plástico. Sucede que há outras plantas não aparentadas com estas (como as do género Helichrysum) que produzem flores de igual longevidade e também estão à venda em floristas, e por isso o nome sempreviva padece de ambiguidade. Lavanda-do-mar é um nome mais eufónico e evocativo, e alude correctamente à preferência das diversas espécies de Limonium pela proximidade do mar, mas dá-se o caso de estas plantas não terem qualquer parentesco com as verdadeiras lavandas (género Lavandula). Talvez seja melhor conformarmo-nos com o nome limónio: soa bem, é português correcto, não se aplica senão a estas plantas, e remete de imediato para o seu nome científico. Convém é saber que Limonium (ou limónio) nada tem a ver com limões. Na raiz desta palavra, que vem do grego antigo, está leimon, que significa "prado húmido"; o mesmo termo deu origem à palavra latina limu, que em português significa "limo" ou "lodo". Erva-dos-lodos até seria nome apropriado para os limónios, atendendo a que muitos deles vivem em sapais.

Embora haja notáveis excepções, não é esse o caso da maioria das espécies de Limonium nas Canárias, dada a escassez no arquipélago de habitats paludosos costeiros. Assim, e ainda que o mar nunca esteja longe, muitos dos limónios canarinos adaptaram-se à secura, vivendo em locais rochosos e invariavelmente soalheiros. Dessa opção de vida são exemplo as duas espécies que hoje mostramos, ambas de Tenerife. O Limonium macrophyllum (em cima) vive no nordeste da ilha, nas escarpas e montanhas de Anaga, por vezes em lugares elevados: os exemplares das fotos moravam em Chinamada, à altitude de 600 metros. Por contraste, o Limonium imbricatum (em baixo), que também ocorre em La Palma, não foge de ser salpicado pelas ondas: vive em falésias costeiras no noroeste de Tenerife, e vimo-lo nos arredores de Buenavista del Norte, refugiado na estreita faixa livre entre um campo de golfe e as arribas marítimas. Com as suas flores de sépalas azuis e corolas brancas, estes dois limónios pertencem claramente à linhagem do Limonium puberulum, endémico de Lanzarote e de Fuerteventura. As diferenças, porém, são fáceis de apontar. Como indica o epíteto específico, as folhas do Limonium macrophyllum são grandes — e, ademais, lustrosas (contrastando com o tom baço das folhas do L. puberulum) e com um veio central proeminente, amiúde tingido de vermelho. O Limonium imbricatum é ainda mais distintivo, com as folhas lobadas dividas em segmentos que se sobrepõem parcialmente como as telhas de um telhado, e com as hastes florais guarnecidas de alas onduladas e muito largas.

Tanto um como outro limónio produzem colorida abundância de flores que, uma vez amputadas das plantas de onde brotaram, fariam boa figura em qualquer sala de estar. Mas, tratando-se de espécies raras e ameaçadas, tal colheita não se recomenda nem é legalmente permitida. E flores vivas em ambiente natural são incomparavelmente mais bonitas do que flores secas enfiadas numa jarra — mesmo que, com mais pó ou menos pó, estas durassem para sempre.

Limonium imbricatum (Webb ex Girard) F. T. Hubb. ex L. H. Bailey

23/03/2023

Malmequer das Baleares

Estima-se que Maiorca, a maior ilha do arquipélago das Baleares, tenha uns 150 milhões de anos. Isso é muito, se comparamos, por exemplo, com Santa Maria, a ilha do arquipélago dos Açores que primeiro emergiu e que tem cerca de 8,5 milhões de anos, ou com a ilha do Pico, à vista há não mais de meio milhão de anos. Sendo ilha e assim longeva, Maiorca é um local promissor quanto à biodiversidade, em particular no que se refere à flora — e foi o que resolvemos confirmar na última semana do ano passado.



Maiorca é uma ilha calcária, com habitats que parecem idênticos aos da serra da Arrábida mas sob um clima mediterrânico seco. A cordilheira de montanhas da costa norte (a serra de Tramuntana), que ocupa cerca de um terço da ilha, é mais fresca e húmida, e ali se refugiam bosques notáveis de vegetação mediterrânica típica (azinheiras, alfarrobas, oliveiras, lentiscos, azevinhos, pinheiros, amendoeiras, lavanda, alecrim,...) e a maioria dos endemismos botânicos das ilhas Baleares.



E há, claro, as inúmeras praias isoladas de areia dourada e água azul-turquesa, falésias em cujas grutas vivem pássaros invulgares, e extensos penhascos costeiros, onde foram instalados, para conforto geral e benefício da leitura, uns longos bancos de madeira virados para o mar. Não nos demorámos sentados, porém, porque é nas fissuras destas rochas costeiras que vale a pena gastar o tempo e o olhar. Ali se encontram plantas rasteiras que não ocorrem na Península Ibérica, apesar de Maiorca, antes de ser ilha, ter estado encostada à que é hoje a costa oriental de Espanha. Entre elas, este malmequer endémico das ilhas de Maiorca e Menorca, que floresce no Inverno e fotografámos em dois locais no nordeste da ilha, a Punta de Manresa e o Cap Formentor.

Senecio rodriguezii Willk. ex Rodr. Fem. [= Senecio varicosus L. f.]


A margarideta de la mar, como lhe chamam em catalão, é uma herbácea anual de pequeno porte, muito diferente das ervas-loiras, as espécies do género Senecio que conhecemos por cá. Em contraste com os usuais capítulos amarelos, no S. rodriguezii as flores liguladas (no bordo dos capítulos, em geral femininas) são palidamente rosadas, enquanto os flósculos centrais (hermafroditas) apresentam corola tubular lilás com cinco lóbulos (veja-se a 4ª foto). Depois do espanto e muitos ohs por flores tão formosas, é inevitável reparar como são bizarras as folhas basais: suculentas e dentadas, de face inferior por vezes púrpura e face superior com manchas brancas e umas verrugas salientes, que terão sugerido a Lineu filho, em 1762, o nome Senecio varicosus para estas plantas. E é precisamente esse o nome que a Comissão Internacional de Nomenclatura Botânica requer que seja utilizado para esta espécie, por ter precedência relativamente a S. rodriguezii (de 1874), apesar de este ser igualmente aceite e de ter sido, como asseguram J. Calvo e C. Aedo neste artigo, o mais utilizado na literatura botânica.

14/03/2023

Ramalhete de estreleiras (II)

O que é uma espécie? Tradicionalmente, define-se como um conjunto de indivíduos capazes de se reproduzirem entre si, gerando novos indivíduos também eles férteis e sexualmente compatíveis com os das gerações anteriores. Esta visão funcional de espécie esbarra em diversos obstáculos: há espécies (apomíticas ou autogâmicas) em que a reprodução não requer fecundação por outro indíviduo, sendo cada um capaz de se reproduzir sem intervenção de qualquer parceiro; e há espécies que, distinguindo-se uma da outra de forma clara tanto morfológica como geneticamente, não têm quaisquer barreiras reprodutivas entre si, produzindo em geral híbridos férteis. No que toca a plantas, este segundo caso costuma ocorrer em géneros onde proliferam espécies morfologicamente próximas e com áreas de distribuição parcialmente sobrepostas. Os sucessivos cruzamentos e recruzamentos entre duas ou mais espécies podem levar ao aparecimento de formas intermédias reprodutivamente estáveis — que tanto podem ser consideradas espécies novas como ser usadas (coisa que a dada altura os botânicos gostavam muito de fazer) para argumentar que as tais duas ou mais espécies constituem afinal uma única espécie altamente variável.

Nas Canárias, a hibridação pode ter jogado um papel não menos importante do que a adaptação a habitats diferenciados na diversificação de um género tão rico em espécies como o Argyranthemum. Sendo certo que, em cada ilha, as diferentes espécies hibridam entre si com grande à-vontade, se adoptássemos a definição funcional de espécie (juntando-lhe, aqui e ali, o argumento das "formas intermédias") chegaríamos ao resultado absurdo de, no máximo, haver uma espécie de Argyranthemum por ilha — quando, na verdade, só em Tenerife existem mais de dez. Assim, para reflectir toda esta óbvia diversidade, houve que dar primazia, na circunscrição de espécies e subespécies, aos critérios morfológicos. Mas, agora que a genética permite reconstruir a árvore genealógica de cada ser vivo, "espécie" passou a ser o conjunto (mais ou menos homogéneo, e formado por indivíduos sexualmente compatíveis) de todos os descendentes de um certo antepassado comum. De facto, todas as categorias taxonómicas (ordem, classe, género, espécie, subespécie, variedade) devem, idealmente, subordinar-se à genealogia: cada uma delas deve reunir todos os descendentes, e só os descendentes, de um mesmo antepassado. Houve assim que reorganizar, à luz da filogenia, toda a antiga árvore taxonómica, e o género Argyranthemum não poderia ficar imune à mudança. A tarefa ainda não está concluída, mas já se pode afirmar com segurança (veja-se Oliver W. White et al., 2020) que não houve exagero no número de espécies e subespécies descritas nas Canárias pelos métodos tradicionais: às diferenças morfológicas observadas correspondem reais diferenças genéticas. Mas certas entidades taxonómicas que pareciam próximas, tendo sido por isso descritas como subespécies de uma mesma espécie, revelaram ser evolutivamente afastadas. O mais provável, portanto, é que esta modernização taxonómica resulte num aumento do número de espécies de Argyranthemum reconhecidas no arquipélago.

Argyranthemum gracile Sch. Bip.


Da árvore filogenética apresentada no artigo de O. W. White et al. deduz-se, por exemplo, que as subespécies de Argyranthemum frutescens, agora em número de sete, não se podem manter como tal, a menos que duas espécies actualmente reconhecidas (A. gracile e A. vincentii, ambas ilustrando o texto de hoje) sejam também despromovidas a subespécies de Argyranthemum frutescens. E uma espécie com nove subespécies morfologicamente tão díspares é quase um contra-senso: a taxonomia tem como missão reconhecer as diferenças entre organismos e classificá-los em conformidade, e é preguiça indesculpável declarar que são iguais coisas obviamente diferentes.

Tanto o Argyranthemum gracile (em cima) como o Argyranthemum vincentii (em baixo) são endémicos de Tenerife e singularizam-se, face a outros congéneres seus, pelas folhas com segmentos lineares estreitos e compridos. No entranto, as folhas do primeiro parecem um garfo com apenas três dentes (2.ª foto acima), enquanto que as do segundo são bipinadas ou tripinadas, sempre divididas em numerosos segmentos (penúltima foto abaixo). O Argyranthemum vincentii é o mais robusto dos dois — por vezes aproxima-se dos 2 m de altura — e apresenta as folhas aglomeradas na parte terminal dos ramos, formando uma silhueta muito característica (1.ª e 2.ª fotos abaixo). Na ecologia, as duas espécies têm preferências algo similares: ambas moram em barrancos no sul de Tenerife, mas o Argyranthemum gracile prefere o sudoeste da ilha — tanto assim que o nosso encontro com ele se deu no Barranco del Infierno, acima da vila de Adeje. O Argyranthemum vincentii, por seu turno, apareceu-nos em local um pouco menos inóspito, no Barranco de Badajoz, em Güímar, indicando talvez uma apetência por habitats menos secos.

Uma curiosidade: apesar de o nome ser usado, desde há vários anos (pelo menos desde 2016), em guias e portais sobre a flora das Canárias, o nome Argyranthemum vincentii não parece ter sido ainda formalmente publicado. Talvez os autores aguardem que alguém ponha ordem no género Argyranthemum (desenredando, em particular, o emaranhado novelo de subespécies do Argyranthemum frutescens) antes de avançarem para a publicação.

Argyranthemum vincentii Santos & Feria

07/03/2023

Nova linária do Sul

Na maioria das Floras, as espécies estão organizadas por ordem alfabética dentro dos respectivos géneros e famílias. Esta opção editorial serve sobretudo quem, face a uma planta que desconhece, já possui indícios sobre qual a família ou o género a que a planta pertence, faltando-lhe apenas identificar o epíteto específico. Todavia, há guias ilustrados que agrupam as plantas pela coloração das flores. Em tais livros, as margens das folhas são elas mesmas coloridas, servindo quase como índice remissivo. Mas como é que se identifica a cor de uma flor? Em inúmeros exemplos a tarefa é simples porque a coloração é homogénea. Veja-se o caso da Linaria spartea, em que não há dúvidas de que as flores são amarelas, ou o da Linaria aeruginea em que são obviamente vermelhas. Mas se agora considerarmos a Linaria pedunculata ou a Linaria tursica que cor devemos entender como dominante, o roxo do esporão ou o amarelo do labelo? E as flores da Linaria argillicola, da cor do fogo, em que cor primária se enquadram?

Por razões que desconhecemos, cada espécie do género Linaria tem uma assinatura de cor que a distingue das demais, ainda que se notem padrões comuns às várias espécies (como os veios mais escuros nos esporões). Mas nem sempre esta distinção é inequívoca. Durante anos, no sudeste algarvio, muitos julgaram ver a Linaria amethystea subsp. amethystea (espécie de distribuição ampla em Portugal e sujeita a alguma variabilidade morfológica, como se confirma aqui), quando de facto se tratava de uma outra espécie, que coabita no sudoeste da Península Ibérica com a anterior mas que, até há poucos dias, não tinha nome. Trata-se afinal de um endemismo das províncias de Huelva e Sevilha, em Espanha, e do sudeste de Portugal. Um artigo publicado no fim de Fevereiro (de que podem ler um resumo nesta página) elabora uma comparação entre esta nova linária e três outras morfologicamente próximas, baptizando-a como Linaria pseudamethystea.

Linaria pseudamethystea Blanca, R. Carmona, Cueto & J. Fuentes
Linaria amethystea (Lam.) Hoffmanns. & Link subsp. amethystea
Enquanto se aguarda por um estudo genético da Linaria pseudamethystea que esclareça a sua genealogia, notemos como as diferenças morfológicas são convincentes. É uma espécie anual glabra de inflorescências lassas, em cujas flores o lábio inferior está enfeitado por um reticulado de cor azul-violeta. A L. amethystea subsp. amethystea, pelo contrário, tem indumento glanduloso nos pedicelos e cálices das flores, e o padrão de manchas roxas no lábio inferior é mais esparso e ponteado.

E só agora é que se reparou nisso?, pergunta o leitor indignado. Na verdade, plantas desta nova linária foram colhidas pela primeira vez em Castro Marim, no ano de 1847, por Frederich Welwitsch (naturalista austríaco que entre 1853 e 1860 realizou uma viagem notável de exploração botânica a Angola), e bem mais recentemente, em 2022, pelo botânico português João Farminhão, que depositou exemplares no herbário da Universidade de Lisboa (LISU); entre essas datas outros exemplares foram sendo depositados em diversos herbários nacionais, sempre com a identificação errada. Tanto o austríaco como o português notaram bem as diferenças desta linária com a L. amethystea subsp. amethystea, mas a descrição formal da nova espécie acabou por ser publicada por botânicos espanhóis trabalhando nas universidades de Granada e de Almería. Afinal, a botânica desconhece fronteiras e, apesar da sua distribuição restrita, esta linária ocorre nos dois países vizinhos.



Para completar a história deste equívoco sobre linárias, permita, caro leitor, que lhe confessemos que também nós já tinhamos encontrado esta recém-descrita linária. Em Fevereiro de 2015, num passeio nas margens da ribeira da Foupana, deparámo-nos com uma linária que suspeitámos não ser apenas uma variação da L. amethystea subsp. amethystea. Não sendo botânicos e desconfiando até das nossas dúvidas, guardámos as fotos dessa planta na pasta das espécies por identificar. Sabemos agora que podemos chamar-lhe L. pseudamethystea, e assim o mundo está mais bem arrumado.

27/02/2023

Ramalhete de estreleiras (I)

Que fazer com a mercadoria acumulada em armazém, já coberta de pó, que nenhum cliente mostra interesse em comprar? Anunciar descontos, três pelo preço de um, oportunidade única a não perder? Ou até gabar a raridade do produto, coisa antiga como hoje já não se fabrica? (Agora vem tudo da China.) O que temos, na verdade, são flores: flores fotografadas, que não murcham nem perdem a cor, imunes ao pó e à passagem do tempo, sempre na moda porque nunca estiveram na moda. O preço que por elas cobramos é imune à inflação, e exprime-se pelo mesmo número em todas as moedas conhecidas (mesmo as já fora de circulação): zero euros, zero escudos, zero dólares ou zero xelins. Ainda assim, não queremos distribuí-las ao desbarato. Vamo-las dispondo cuidadosamente na montra, não muitas de cada vez, dando-lhes espaço e tempo para serem apreciadas com vagar. Bastará uma semana para que alguém se interesse por elas?

Começamos a época de saldos (chamemos-lhes assim) com um ramalhete de três malmequeres arbustivos do género Argyranthemum, todos endémicos de Tenerife. Das 24 espécies de Argyranthemum actualmente aceites, três vivem na Madeira, uma nas Selvagens e vinte nas Canárias. A espécie mais comum na Madeira, A. pinnatifidum, é conhecida popularmente como estreleira, e esse parece-nos um bom nome para aplicar indistintamente a todas as espécies do género. Estrelas-de-prata também não estaria mal, até porque Argyranthemum, que vem do grego antigo, significa "flores de prata". A ilha mais abonada em estreleiras é Tenerife, com dez espécies (subindo o número para catorze se contarmos subespécies), seguida da Grã-Canária com cinco (nove se incluirmos subespécies), de La Palma com quatro, de La Gomera e El Hierro com três cada, e finalmente de Lanzarote e Fuerteventura com uma espécie por ilha. A maioria das espécies são exclusivas de uma só das ilhas, mas há espécies partilhadas por diversas ilhas, embora por vezes com diferentes subespécies em diferentes ilhas. Um bom exemplo é o A. frutescens, que ocorre em todas as ilhas do arquipélago excepto Fuertventura, e de que se contam sete subespécies, quatro delas endémicas de uma ilha só e três com distribuições mais alargadas. Os habitats ocupados pelas diferentes espécies são dos mais diversos, desde a laurissilva húmida até aos pinhais de Pinus canariensis, desde a costa até aos cumes mais elevados, desde barrancos pouco acessíveis até às bermas das estradas mais movimentadas.

Argyranthemum broussonetii (Pers.) Humphries


Planta robusta, capaz de chegar aos 1,2 m de altura, com folhas grandes e atraentes, duas a três vezes divididas, o Argyranthemum broussonetii (em cima) vive em Tenerife, em lugares umbrosos da laurissilva de Anaga e, mais escassamente, do vale de La Orotova. Até 2021 considerava-se que a espécie estaria também representada em La Gomera por uma subespécie própria (A. broussonetii subsp. gomerensis), mas estudos genéticos e morfológicos (ver artigo) mostraram que as duas putativas subespécies eram evolutivamente afastadas, devendo em vez disso a planta de La Gomera ser tratada como subespécie da endémica A. callichrysum. Com floração prolongando-se entre Fevereiro e Julho, este novel endemismo tenerifenho, bem adaptado a climas frescos, parece feito de encomenda para jardins de regiões temperadas.

Argyranthemum tenerifae Humphries


Sem sairmos de Tenerife, damos um salto à montanha do Teide para admirarmos o Argyranthemum tenerifae ou estreleira-dos-cumes (fotos em cima), que vive a pleno sol nas extensões pedregosas aos pés do grande vulcão. Numa típica adaptação ao habitat inóspito, exibe uma forma compacta e arredondada, e também na folhagem se diferencia radicalmente da sua prima da laurissilva. Quem não gostaria de as ter lado a lado no mesmo jardim? Desejo impossível, pois a casa que convém a uma é inabitável para a outra. E ainda há a suspeita de que, como sucede à maioria das plantas de alta montanha com distribuição restrita, o Argyranthemum tenerifae seja avesso à domesticação e impossível de cultivar em jardins.

Argyranthemum adauctum subsp. dugouri (Bolle) Humphries


Eis mais uma estreleira de Tenerife, aqui incluída para aviso e instrução dos nossos leitores. É que, vivendo ela também no Teide, o observador desprevenido pode confundi-la com a estreleira-dos-cumes. Do Argyranthemum adauctum estão descritas sete subespécies nas várias ilhas do arquipélago, e a subsp. dugouri (nas fotos) é uma das duas que são endémicas de Tenerife. Vive sobretudo em pinhais, mas em certos pontos da montanha do Teide os bosques de Pinus canariensis ascendem a altitudes superiores a 2000 metros, e é na orla desses bosques que se podem dar os encontros imediatos entre a estreleira-dos-cumes e a estreleira-dos-pinhais. Contudo, esta última distingue-se sem dificuldade pela indumentação das folhas e das hastes (é muito mais hirsuta do que a sua congénere), pela forma das folhas, e mesmo pelo aspecto geral (tem hastes erectas, pouco densas, contrastande com o aspecto compacto da estreleira-dos-cumes).

Temos mais estreleiras em armazém para despachar — e a seu tempo, depois de lhes puxarmos o lustro para brilharem como novas, aqui as traremos para tentar despertar o desejo de quem nos vier espreitar a montra. Não desdenhe o leitor delas por lhe parecerem antiquadas ou por estar habituado a desconfiar dos produtos de ocasião. Dentro da gama em que nos especializámos, são produtos excelentes, e não encontra melhor nem mais barato nas lojas da concorrência.

21/02/2023

Simetria sem espelho

A Astronomia é a única ciência que tem lugar cativo nas páginas de divulgação científica dos jornais portugueses, a par de uma ou outra notícia mais desenvolvida quando damos uma voltinha por Marte. Entende-se a preferência: todos queremos estar informados de que é feita a matéria escura que parece preencher quase todo o universo, e ser os primeiros a saber mal se descubra um planeta não demasiado longínquo idêntico à Terra. Um tal planeta nem precisa de ser novo, por estrear. Muitos até preferem que seja habitado, crentes de que isso o tornará mais acolhedor, com o conforto de uma casa, um céu azul, água da chuva e uma paisagem que nos alegre a memória. Sabemos, porém, que é improvável que alguma vez se encontre um tal lugar. Não faltam por aí rochas, átomos, energia e força gravítica para fabricar mundos como o nosso, mas são tantas as possibilidades que é muito difícil repetir um formato no universo. Só não nos sentimos sozinhos na Terra, tolhidos de medo e tédio, porque os cientistas ainda não desistiram de procurar.

Atente, agora, caro leitor, no caso de uma semente ou uma planta que, sem a nossa imaginação, aporte a uma ilha onde não há nada reconhecível, nenhuma semelhança apaziguadora com o seu habitat de origem. Não sofre por isso, nem fantasia com monstros, perigos e Solaris. Os seus genes ordenam-lhe apenas que vá e se multiplique. E ela chega, descansa, e toma nota do solo, da água disponível, do lado onde o Sol nasce, de quem a poderá polinizar, trincar as folhas, fazer sombra. E, em não mais do que dois ou três milhões de anos, temos mais uma espécie novinha em folha.

Ora vejamos o exemplo do género Hypericum, cosmopolita, com cerca de 500 espécies e 35 representantes na Península Ibérica. Tem nas ilhas Canárias (e na Macaronésia) várias espécies endémicas notáveis. Há-as de porte arbustivo, outras herbáceas, com ou sem glândulas escuras nas folhas, sépalas e pétalas. Mas todas exibem flores amarelas de estames proeminentes, dispostas em inflorescências vistosas no topo dos ramos. Algumas espécies continentais têm flores brancas ou rosadas, mas a tendência é de as acomodar no género Triadenum.

A espécie que vos mostramos hoje é um endemismo da Grã-Canária, Tenerife e La Gomera. Distingue-se das demais espécies das Canárias essenciamente pelas folhas. Estas são ovadas, quase glabras, com margens glandulosas (que rescendem a uma substância que afasta os predadores), e nascem em pares opostos a abraçar o caule. O traço distintivo é a folhagem decussada: as folhas dispõem-se em andares muito próximos entre si, estando cada par de folhas rodado de 90 graus relativamente ao que está abaixo, formando os dois pares uma cruz e evitando esconder o sol uns aos outros. As fotos são de Maio, de exemplares do barranco de Añavingo e do barranco de Herques, em Tenerife.

Hypericum reflexum L. f.