28/08/2018

Canarina

Apesar de persistir alguma controvérsia, os estudos geológicos parecem confirmar que algumas das ilhas Canárias se originaram em vulcões no Atlântico, não tendo sido nunca parte do continente africano. Mas Lanzarote e Fuerteventura, pelo menos, terão sido território do norte de África. Certo é que são todas ilhas muito antigas, onde se refugiaram espécies que foram frequentes há milhões de anos na região que hoje margina o mar Mediterrâneo ou no norte de África, e que actualmente só se encontram nos bosques de laurissilva dos arquipélagos da Madeira, Açores e Canárias. Nestas ilhas, ficaram a salvo dos períodos glaciares e outras mudanças climáticas drásticas a norte, e da secura e aridez que se foi instalando a sul. Segundo David e Zoe Bramwell, autores da obra Flores Silvestres de las Islas Canarias, algumas das espécies endémicas destas ilhas têm actualmente os seus parentes mais próximos no sul de Espanha e em Portugal (entre eles contam-se Laurus nobilis, Prunus lusitanica e Convolvulus fernandesii) ou, não sendo endémicas, têm populações residuais na Península Ibérica (exemplos: Myrica faia e Woodwardia radicans); e outras endémicas insulares pouco diferem de espécies que ocorrem em florestas e montanhas africanas. Talvez a planta que agora vos mostramos seja uma dessas relíquias da flora que outrora verdejaram na região hoje ocupada pelo deserto do Sáara.

Canarina canariensis (L.) Vatke


Tal como acontece com a Azorina vidalii, espécie única do género Azorina e que só ocorre nos Açores, e do género Musschia, que existe somente na Madeira e Desertas e de que há registo de três espécies, também as ilhas Canárias têm a sua quota de campanuláceas endémicas. A Canarina canariensis é uma trepadeira glabra da floresta laurissilva, relativamente comum nos bosques frescos (mas raramente frios), húmidos e quase sempre enublados das partes altas destas ilhas. As flores, raiadas de vermelho e polinizadas por pássaros, têm cerca de 7 cm de comprimento. Os parentes em África apresentam semelhanças notórias: veja, por exemplo, aqui imagens da Canarina eminii, que se distingue essencialmente pela cor das flores da também africana Canarina abyssinica.

Como se tivesse memória dessa conexão africana, a C. canariensis floresce entre Novembro e Janeiro, enquanto na África meridional é Primavera ou se inicia o Verão. Hiberna entre Maio e Setembro, sobrevivendo das reservas de nutrientes que guardou em vigorosos tubérculos nas raízes, lançando anualmente um novo talo que pode atingir os 3 metros. O fruto é uma baga carnuda, escura quando madura, que é comestível e, asseguram, doce.

14/08/2018

A confusão dos dentes-de-leão



Hieracium amplexicaule L.


Antes que o nomadismo (ainda que virtual) nos arraste para outras paragens, não ficaria completo este breve regresso ao Gerês se não nos detivéssemos num dente-de-leão. Nem só de caviar vive o homem, e um aspirante a botânico não pode atentar apenas nas plantas prestigiadas por uma aura de beleza ou raridade. Numa abordagem imediata, avessa a subtilezas, diríamos que os dentes-de-leão nada têm de raro. Quanto à beleza, depende de quem vê, pois há gostos para tudo. Se eles vivem em relvados urbanos, despontam entre as rachas dos passeios, proliferam em terrenos baldios e em jardins mal amanhados, e conseguem ainda aparecer em bosques, prados e praias, não parece que tenham a sobrevivência ameaçada.

Acontece que, nessa designação imprecisa de dentes-de-leão, cabem coisas muito diversas: a saber, todas as (inúmeras) asteráceas de capítulos amarelos em que estes são compostos apenas por florículos ligulados — não havendo, como nas margaridas (outro nome demasiado abrangente), uma diferença clara entre os florículos que formam o disco central e aqueles que dão as "pétalas". Os dentes-de-leão mais frequentes em ambientes ruderais pertencem aos géneros Taraxacum, Leontodon, Hypochaeris, Sonchus e Crepis. Mesmo dentro destes géneros mal-afamados há espécies que frequentam ambientes mais selectos (como o Crepis lampsanoides, que aparece em carvalhais) e outras que, tendo-se desenvolvido em habitats peculiares, alcançaram inegável prestígio: no género Leontodon há três formosos endemismos açorianos; e, na Madeira e nas Canárias, os Sonchus cresceram e multiplicaram-se até ficarem irreconhecíveis, com muitas espécies transformando-se em árvores.

O dente-de-leão que fotografámos entre as rochas, no estradão dos Carris, pertence ao género Hieracium, famoso pela sua dificuldade. É um género em que os não-especialistas se devem abster de dar palpites sobre a identificação das espécies. Certezas? Só aquelas que a alegre inconsciência permite, e por isso apenas ao alcance dos principiantes mais absolutos.

Bem prega Frei Tomás, pois afinal as fotos vêm etiquetadas como sendo do Hieracium amplexicaule. Se o escriba não tem certezas, arroga-se pelo menos o direito de mandar palpites. Como desculpá-lo? Das cerca de seiscentas espécies de Hieracium que se admite ocorrerem na Península Ibérica, os especialistas identificaram umas 26 principais que por sucessivos cruzamentos terão dado origem a todas as outras. Cada espécie principal estaria assim rodeada por uma constelação de espécies secundárias semelhantes em cuja progenitura esteve envolvida. Entre as espécies principais, o Hieracium amplexicaule é distintivo por ser densamente glanduloso em todas as suas partes (o que o torna muito pegajoso), e por ter as folhas superiores abraçando o caule (é esse o significado de amplexicaule). A espécie vive em zonas pedregosas de montanha, descrição que encaixa sem favor no habitat ocupado pela planta geresiana, ajudando a reforçar o palpite. As dimensões também parecem correctas, atingindo o H. amplexicaule uns 40 cm de altura máxima (ou, excepcionalmente, até 55 cm).

Assim, se a planta do Gerês não for H. amplexicaule, será pelo menos filha ou neta dessa espécie — ou talvez filha e neta, pois vergonha é coisa que as plantas desconhecem. Está em flor em meados de Junho. Também a vimos, ou ingenuamente a julgámos ver, no topo da serra do Marão, florescendo aí umas semanas mais tarde.