31/08/2012

Poderosa Angélica

Num rectângulo com 17 Km de comprimento e 12 de largura, como é a ilha das Flores, as distâncias são de pouca monta, e é de supor que a rede viária esteja há muito completada. Bastaria uma estrada principal ligando as povoações, todas elas no litoral, complementada por uns poucos acessos secundários à costa ou ao interior da ilha: um esqueleto básico que já foi largamente excedido sem que a construção de rodovias pareça abrandar. O processo, em geral com várias etapas, começa quando um caminho de pé posto é alargado e convertido em estradão; em seguida o estradão recebe uma camada de asfalto, logo depois as bermas são melhoradas, e eis que temos uma estrada a brilhar de nova. É o que está a suceder na zona do Morro Alto, onde se situam as mais valiosas manchas florestais de zimbro com turfeira, e por onde, dentro de poucos anos, passará uma estrada de ligação ao norte da ilha. Falta só asfaltar, pois o estrago maior (abertura e alargamento da via) já foi feito.

Que necessidade há de uma estrada dessas? O interior da ilha é despovoado e ninguém mora no Morro Alto. O trajecto entre a Fajã Grande e Ponta Delgada ficará talvez meia dúzia de quilómetros mais curto, mas não é certo que os florentinos venham, nas suas deslocações, a preferir a nova estrada. Talvez só para variar o itinerário, pois a urgência de chegar não faz parte do seu dia-a-dia. Percorri demoradamente a pé, numa terça-feira com muito sol, a recente estrada que liga a caldeira seca à costa nordeste das Flores. Podia, se o quisesse, andar descansado pelo centro da via, pois nas três horas de uma caminhada com muitas paragens nem dez carros terei visto passar.

Os prejuízos da abertura de estradas em zonas de grande valor natural não se resumem aos inevitáveis desbastes e terraplenagens. Para além de se facilitar o acesso de visitantes a habitats sensíveis, abrem-se vias de penetração para a conteira (Hedychium gardnerianum) e a árvore-do-incenso (Pittosporum undulatum), principais componentes da vegetação infestante que, nas Flores, domina por completo os bosques a média ou baixa altitude.

Admito, com algum egoísmo, que essas novas e nefastas estradas até me deram jeito. Sem elas, não teria tido igual facilidade em dar de caras com a Poderosa Angélica e outras especialidades da flora açoriana.


Angelica lignescens Reduron & Danton



Da angélica ou Angelica lignescens, endemismo açoriano presente em cinco ilhas dos três grupos do arquipélago (Flores, Faial, Pico, Terceira e São Miguel), dir-se-á no mínimo que impõe respeito. Trata-se de uma umbelífera descomunal, que no período de floração atinge os três metros de altura, e em que a inflorescência sustentada por quatro ou cinco dezenas de raios pode chegar a um metro de diâmetro. É uma planta ameaçada, com populações localizadas e escassas. É também impossível de não ver se chegarmos perto dela ou nem assim tão perto. Pude chegar muito perto porque a tal nova estrada de escassíssimo trânsito atravessa justamente a maior população desta planta na ilha das Flores.

Além das plantas em flor, que porém não se tinham ainda desenvolvido em toda a pujança e ficavam aquém das medidas prometidas, havia muitas outras que só mostravam a folhagem — folhas tripinadas com cerca de um metro de comprimento. Florir, para a angélica, é o culminar apoteótico da existência, e não acontece antes do quinto ou sexto ano de vida. Depois de produzir semente, acto em que investe todas as suas reservas de nutrientes, a planta seca e morre. Exemplo mais conhecido do mesmo fatalismo é a Agave americana. As plantas perenes que adoptam esse estilo de vida (ou de morte) dizem-se monocárpicas.

É quase inexplicável como uma planta tão vistosa e singular, embora de claras semelhanças com as angélicas continentais (como a Angelica sylvestris), só tenha sido baptizada em 1997, em artigo da autoria de três botânicos franceses (Philippe Danton, Jean-Pierre Reduron, Michel Baffray: Une nouvelle angélique pour la flore des Açores: Angelica lignescens sp. nov. (Apiaceae). Acta Botanica Gallica 144: 183-189). Durante mais de um século a angélica açoriana foi confundida com o Melanoselinum decipiens, uma umbelífera madeirense igualmente monocárpica e de porte não menos avantajado. As duas plantas só têm alguma semelhança quando não estão em flor; quando estão, são tão parecidas uma com a outra como um elefante com uma girafa. O Melanoselinum decipiens apresenta haste lenhosa, é desprovido de folhas na base, e a sua inflorescência assume tonalidades arroxeadas — tudo características que a Angelica lignescens não partilha.

Mas, para nosso embaraço, alguém confundiu mesmo um elefante com uma girafa e a asneira teve força de lei, como se comprova consultando o vol. I da Nova Flora de Portugal (1971) ou lendo esta passagem do Catálogo das plantas vasculares dos Açores (1966), livro póstumo de Ruy Telles Palhinha: «Em Natural History of Azores [1870] Watson nega a existência desta espécie [Melanoselinum decipiens] nos Açores; um século depois Tutin & Warburg [1932] colheram-na nas Lages do Pico e na Caldeira do Faial.» Para dar um toque de ironia à confusão, decipiens significa enganador em latim.

Em 1998, um ano depois de a angélica ter visto reconhecida a sua verdadeira identidade, o britânico John R. Press e o português Eduardo Dias publicaram, no número 16A da revista Arquipélago, um artigo (PDF) onde contam toda esta rocamblesca história com final feliz. Porque afinal cada um dos arquipélagos, Madeira e Açores, viu a sua flora oficialmente enriquecida com um novo endemismo.

29/08/2012

Erva dos trapos


Senecio jacobaea L.


Nomes vulgares: tasneira, erva-de-São-Tiago; em inglês, ragwort
Ecologia: terrenos baldios ou cultivados mais ou menos soalheiros, bermas de caminhos
Distribuição global: nativa da Europa e da Ásia, naturalizada e invasora nas Américas, no norte de África e na Oceânia
Distribuição em Portugal: praticamente todo o território continental
Época de floração: Julho-Agosto
Data e local das fotos: 2 de Agosto de 2012, Alfena, Valongo
Informações adicionais: uma das plantas mais comuns e disseminadas da flora europeia, a tasneira exibe uma floração abundante e vistosa, e é muito procurada por insectos; pode, contudo, comportar-se como infestante de campos agrícolas, e é indesejável em pastagens por ser venenosa para o gado

28/08/2012

Flores de calças


Thymelaea coridifolia Willd.


Quando, no século passado, a moda feminina incentivou o uso das calças, e não apenas no trabalho ou em climas nórdicos, algumas vozes conservadoras avisaram que, a persistir uma tal indignidade, não se conseguiria reconhecer uma mulher de costas, sem contudo esclarecerem que desvantagens isso traria. A opinião ortodoxa, apesar do sentido prático de tal indumentária, era desfavorável aos traços andróginos que ela sublinhava.

As plantas dióicas também têm como certa a virtude de uma flor feminina se distinguir claramente de uma masculina. O problema é que essa clarividência se garante frequentemente com detalhes que só os polinizadores detectam. E, para as plantas das fotos, não conseguimos, mesmo de frente, decidir se há nelas alguma flor feminina. Os dois tipos de flor são axilares, as masculinas com forma de funil e as femininas... também. Enfim, segundo as Floras, as últimas são um pouco ovaladas e com sépalas ligeiramente maiores (mais 0.2 milímetros, ou algo assim pequenino). Para o ano teremos de voltar a vê-las com lupa e régua de alta precisão.

Esta espécie de Thymelaea é um endemismo ibérico de montanha, abundante em Espanha (onde até há registo de outra subespécie, a T. coridifolia subsp. coridifolia, com flores perfumadas), mas por cá só se conhece uma população de uns 500 indivíduos que sobrevive a uns 1500 metros de altitude numa área reduzida dos cervunais secos da serra da Estrela. Há explicações para o carácter raro desta planta, que o leitor, habituado às nossas queixas, é certamente capaz de enumerar. Para ter uma ideia de quão exígua é a sua presença no nosso país, e de como é urgente a sua menção num Livro Vermelho da Flora Portuguesa (que ainda não existe), ouça o que nos aconteceu. Decidimos ir procurá-la no fim da Primavera, convencidos de que estaria com a floração a começar, e portanto a formar um manto amarelo fácil de descobrir. Choviscava e havia nuvens grossas a prometer borrasca, mas o local é tão plano e tão pobre em vegetação que não duvidámos da boa sorte da empreitada. Pois sim. Só quando o fotógrafo perdeu uma das máquinas no denso tapete de gramíneas (pouco depois recuperada apesar do nevoeiro que ia baixando) e o início da tarde começou a parecer noite, é que decidimos interromper a busca. Voltámos uma semana depois, não sem antes termos anotado as certeiras indicações de Alexandre Silva, do Centro de Interpretação da Serra da Estrela. Afinal tínhamos estado a pouco mais de cem metros da planta. E a floração, ao contrário do que prometia a bibliografia, estava quase passada.

O trovisco-da-Estrela é uma planta perene quase arbustiva, mas de hábito prostrado, com os ramos mais antigos a formar uma estrutura lenhosa de cor avermelhada. Do mesmo género estão listadas sete espécies em território nacional (incluindo uma no Gerês) e há registo em herbário de uma oitava no Algarve (T. hirsuta) que não é vista há muitos anos e talvez se tenha extinguido.

24/08/2012

O preço de uma flor

As Flores e o Corvo, perdidas no Atlântico e com um pé na América, são o pedaço mais remoto de um Portugal já sem império. Mas, com a construção dos aeroportos e os voos regulares para as ilhas, o que é longínquo passou a ser acessível. O preço que pagamos pela facilidade que temos em ir e voltar é que já não é verdadeiramente possível estar nas ilhas. Não nos desligamos do assédio dos prazos e dos compromissos que trazemos do continente. Achamos curiosa a vida despojada dos ilhéus, com tão escasso comércio e tão raros entretenimentos, e não nos imaginamos a viver vida igual. Visitar as Flores por uma semana é como meter o pé na água fria sabendo que nunca mergulharemos de corpo inteiro.

Descendo para o Atlântico sul, há ilhas povoadas, como a de Santa Helena, famosa por Napoleão ter sido para lá exilado, a que ainda hoje só se chega de barco. Para reaprendermos o significado de distância, talvez seja bom visitar Santa Helena antes que lhe construam um aeroporto e com ele venha esse mal moderno do turista apressado.

Dentro da temática que nos é própria, também há motivos para falarmos de Santa Helena a propósito das Flores. São ilhas de dimensões semelhantes, cada uma delas com cerca de 4000 habitantes. Para uma ilha tão pequena (122 Km2), Santa Helena tem um número excepcional de endemismos botânicos, nada menos que 54 plantas vasculares. Por contraste, não haverá mais que 70 plantas endémicas no total das nove ilhas do arquipélago dos Açores. Infelizmente, Santa Helena também se distingue por outro número, o de extinções: pelo menos cinco plantas endémicas estão extintas, e duas outras já só existem em cultivo. Nesse aspecto os Açores parecem ter-se comportado melhor, pois a Vicia dennesiana, colhida algures em São Miguel no século XIX, é o único endemismo açoriano reconhecidamente extinto.

Mas talvez esse menor número de extinções se deva apenas à circunstância de haver nos Açores, proporcionalmente à sua área total, muito menos endemismos do que em Santa Helena. É que não sou poucas, no arquipélago, as extinções locais — plantas que deixaram de existir em algumas ilhas, persistindo porém noutras. E, como seria de esperar em território sob admnistração britânica, a preocupação com a sobrevivência da flora nativa e os programas activos de conservação estão, em Santa Helena, a anos-luz de distância da prática açoriana.

Euphrasia azorica H. C. Watson
A Euphrasia azorica é uma das plantas endémicas açorianas que existem só nas Flores e no Corvo. Embora não esteja oficialmente em risco de extinção, é difícil encontrá-la mesmo em habitats propícios como bordas de crateras, e é provável que, por culpa das cabras e coelhos que andam à solta na ilha, o seu contingente tenha diminuído muito ultimamente. Pelos mesmos motivos, o Myosotis azorica, outro endemismo exclusivo dessas ilhas, está no limiar da extinção. Que medidas têm sido tomadas para prevenir tais catástrofes? O mínimo seria controlar as cabras, mas nem isso foi feito. Intervenção mais activa é de todo irrealista esperar, pois a Secretaria Regional do Ambiente não tem pessoal habilitado e, além do mais, desconhece a localização das últimas populações dessas plantas ameaçadas. Pode haver em breve mais extinções nos Açores sem que ninguém dê por elas.

Tanta displicência poderia emanar de uma superioridade moral semelhante à que alguns brasileiros invocam para justificar a desmatação galopante da Amazónia. Como podem os países desenvolvidos que destruíram as suas florestas exigir ao Brasil que preserve a sua, abdicando assim de altíssimos proveitos económicos? De modo análogo, os açorianos poderiam alegar que o exemplo britânico em Santa Helena os dispensa de ouvir lições de forasteiros. Os Açores também têm direito a extinguir os seus endemismos, se isso for da sua conveniência.

Claro que o raciocínio está de todo viciado. Ao contrário do que sucede no Brasil com a exploração da Amazónia, a ilha das Flores não tirará qualquer lucro do desaparecimento da Euphrasia azorica ou do Myosotis azorica. E, em ambos os casos, há uma amputação auto-infligida que é estranho apresentar como uma retaliação contra outrem.

Euphrasia azorica H. C. Watson
A Euphrasia azorica é uma planta hemiparasita com o aspecto de um arbusto miniatural, atingindo entre 20 e 40 cm de altura e florescendo nos meses de Verão, com flores de cerca de 1,6 cm de diâmetro. Tirando a também açoriana Euphrasia grandiflora, uma planta ainda mais rara que ocorre só no grupo central do arquipélago, as restantes espécies europeias do género Euphrasia são herbáceas anuais. Além de terem distribuições disjuntas, as duas Euphrasia açorianas distinguem-se pela forma das flores (as da E. grandiflora têm os lobos mais fendidos) e das folhas (as da E. grandiflora são arredondadas, enquanto que as da E. azorica são deltóides, com ápice bem definido).

Só com muita sorte ou persistência é que um visitante das Flores encontrará sem ajuda uma Euphrasia azorica. No caso deste escriba, a persistência tem a medida objectiva das dezenas de quilómetros percorridos a pé por toda a ilha. Mas não vá o leitor desistir já, pois há coisas que não exigem esforço e valem a viagem, como este panorama com a Fajãzinha ao fundo que se contempla do Miradouro de Craveiro Lopes.

22/08/2012

Erva-loira de Melgaço

Senecio doria L. subsp. legionensis (Lange) Chater


Nomes vulgares: nenhum em português; em castelhano: barra de oro, lengua de perro, orval
Ecologia: prados húmidos e margens de ribeiros, por vezes sob coberto de árvores caducifólias
Distribuição global: endemismo do noroeste peninsular (se não se reconhecer a subsp. legionensis, como fazem alguns autores, a distribuição é muito mais ampla, abrangendo Marrocos e estendendo-se da Península Ibérica à Itália e à Europa central)
Distribuição em Portugal: planalto de Castro Laboreiro
Época de floração: Junho-Julho
Data e local das fotos: 30 de Junho de 2012, aldeia do Rodeiro, Castro Laboreiro
Informações adicionais: herbácea perene que pode superar 1,6 m de altura, quase glabra, com folhas de margens inteiras e capítulos florais com poucas "pétalas"; a sua presença no extremo norte de Portugal já tinha sido assinalada nas floras de António Xavier Pereira Coutinho (1939) e de Gonçalo Sampaio (1947), mas Amaral Franco, no vol. II da sua Nova Flora de Portugal, "corrigiu" essa referência para Senecio nemorensis subsp. fuchsii, cuja ocorrência no nosso país é incerta; só em 1999, com este artigo (PDF), é que a verdade foi reposta
Nota: esta é a primeira de uma série de cinco fichas semanais dedicadas a plantas do género Senecio em Portugal (veja também: S. vulgaris, S. pyrenaicus e S. lusitanicus)

21/08/2012

Boiardo

Utricularia australis R. Br.


Como outras plantas carnívoras que aqui mencionámos, a Utricularia sobrevive se só consumir ar, sol e água, mas não cresce tanto nem se dissemina com a mesma eficácia. Como não tem raízes, o melhor que consegue, para manter os caules delgados e as folhas (muito divididas, feitas de numerosos segmentos) perto da superfície das águas estagnadas que aprecia, é boiar. Conta para isso com a ajuda de uns balões (utrículos) que se desenvolvem nas folhas e cujo recheio ela controla habilmente. É que tais orgãos — como descobriu a naturalista americana Mary Lua Adelia Davis Treat — são também um mecanismo ardiloso para capturar pequenos animais: a entrada destes balões é sensível à presença de alimento e abre-se e fecha-se em poucos segundos, sugando água recheada de crustáceos miúdos que, assim aprisionados, são depois digeridos lentamente com enzimas apropriadas.

O género Utricularia é dos mais vastos entre os de plantas carnívoras, abrigando mais de duzentas espécies. Por existirem em quase todo o mundo, dir-se-ia tratar-se de plantas que se ajustam facilmente a habitats variados, desde que não lhes faltem humidade e nutrientes. Mas não, por cá não é fácil encontrá-las. As Floras referem a existência de três espécies de Utricularia em Portugal (U. australis, U. gibba e U. subulata), indicam até que a U. australis ocorre no noroeste mas, ao fim de dois anos de buscas no Minho, só conseguimos ver as das fotos (das outras duas só há registo de populações mais a sul do país) numa lagoa privada junto ao rio Cávado, porque o João Lourenço nos revelou a sua localização. No bordo da lagoa predominavam os nenúfares e, por isso, quase todas as flores de Utricularia estavam a meio do lago, demasiado longe para se notar a corola amarela com veios vermelhos, o esporão ou o lóbulo giboso e ondulado na margem. O fotógrafo, descontente, insistiu em voltar lá com outra objectiva no dia seguinte; como seria de esperar, desta vez o dono da propriedade (ou um seu representante) estava por perto e resmungou, mas não nos vedou o acesso. Pela primeira vez questionámo-nos sobre como e onde se compra uma lagoa.

As plantas deste género são exigentes: precisam de luz, que acácias, canas, jacintos-de-água e outras infestantes de ambientes aquáticos portugueses podem apagar sem dó; exigem a presença de certos componentes químicos na água, que não estão lá se a contaminam; e pedem um período de dormência no Inverno, não resistindo se o seu sono é perturbado. Além disso, por causa da formação de turiões durante o Inverno, crê-se que as espécies espontâneas na Europa têm origem tropical, e nem sempre o clima europeu se adequa a seres desse lado do planeta. São razões, para além da degradação geral dos habitats aquáticos, para recear pelo futuro das populações deste género em águas lusas.

17/08/2012

Aprender pelo nariz

Genista florida L.


Há tempos, em sessão pública, um popular botânico português contava de um seu ilustre colega, já falecido, que ele era incapaz de reconhecer as plantas vivas no seu habitat. Precisava de colhê-las, espalmá-las numa pasta de arquivo e esperar que perdessem o viço e a cor, só então assumindo para ele uma identidade reconhecível. Um pouco como um médico legista de tal forma moldado pela sua profissão que só reconhecesse uma figura humana no estado de cadáver.

Optamos por omitir nomes porque alguém nos afiançou que a história era exagerada, e não é nossa função propagar mitos, mesmo que eles sejam lisonjeiros para amadores como nós, incapazes de lidar com certas minúcias morfológicas mas com algum olho para as plantas no campo. Verdadeira ou falsa, a historieta é plausível e ajuda a explicar a aridez de certas obras de referência dirigidas a especialistas. Por que é que a Flora Ibérica e a Nova Flora de Portugal raramente incluem o perfume entre as características distintivas das espécies que descrevem? Talvez porque as plantas secas de herbário, em que os peritos se baseiam, não guardam vestígio do perfume que alguma vez exalaram. É verdade que as cores também se desvanecem, mas quem recolheu a planta poderá tê-las anotado.

Não é tarefa simples, e às vezes nem sequer exequível, traduzir um perfume por palavras. A Genista florida, conhecida no vernáculo como giesta-piorneira ou piorno-dos-tintureiros, é das mais olorosas dentro de um género em que a maioria das espécies (15 delas são nativas em território português) parece ter flores inodoras. A Genista florida não irradia um cheiro intenso e enjoativo como a giesta-amarela (Cytisus striatus): precisamos de nos aproximar para que um suave perfume a limão nos acaricie o olfacto. Uma vez o nariz ensinado, não há engano possível. É mais um sentido, a juntar à vista e ao tacto, que nos ajuda a reconhecer as plantas.

Diz-se que Lineu escolheu para este arbusto o epíteto florida para celebrar a abundância da sua floração, embora ele não se destaque especialmente por essa qualidade entre os seus congéneres. Notável é o tamanho que atinge, por vezes três metros de altura e um porte quase arbóreo, quando a maioria das espécies de Genista são arbustos rasteiros. Floresce entre Maio e Julho, é nativo da Península Ibérica, França e Marrocos, e em Portugal aparece no norte e no centro, com alguma predilecção por lugares elevados.

Genista micrantha Ortega
No outro extremo da escala está um endemismo peninsular, a Genista micrantha, um arbusto que quase parece de consistência herbácea. Do seu caule grosso e prostrado nascem finas hastes pouco ou nada ramificadas de 20 a 40 cm de altura, cada qual rematada por uma dezena de flores dispostas em espiga. Se, como indica o epíteto micrantha, as flores são de facto pequenas, com cerca de 1 cm de diâmetro, isso está na justa proporção das dimensões gerais da planta. Singular é a sua preferência por prados húmidos e turfeiras de montanha, o que limita a sua distribuição em Portugal a umas poucas cumeadas da metade norte do país.

15/08/2012

Delgada e sem espinhos

Crupina vulgaris Pers. ex Cass.


Ao contrário do que, infelizmente, vai sendo adoptado noutras paragens, é ainda tradição nossa receber bem estrangeiros, turistas ou não, apoiando a sua integração no país quando o desejam. Contudo, são muitos os que receiam que a mesma benevolência com as plantas exóticas se torne um perigo para a flora nacional. Mais ou menos os mesmos reagem depois sem lucidez ao problema oposto, o criado pelas nossas plantas que se tornam invasoras indomáveis em habitats onde são introduzidas, como a mãe que defende irracionalmente a sua criança mal-comportada. E, triste ironia, por cá vão-se tornando raras.

A lista de plantas acusadas de serem daninhas para a agricultura fora da Europa dá a esta asterácea algum destaque por se adaptar facilmente a ambientes e climas diversos (embora prefira locais secos e pedregosos), as suas folhas ásperas, armadas de pêlos rígidos, não agradarem ao gado (que, contude, a consome na falta de outro alimento) e não se conhecerem agentes biológicos que controlem a sua disseminação. Em países onde há regras restritivas no uso de herbicidas, só uma estratégia concertada de pastoreio, manutenção dos campos e erradicação das plantas antes da produção das sementes (o único meio de ela se espalhar) permite deter a propagação e prevenir os estragos desta erva oportunista que, emigrante ansiosa e competitiva, consegue transformar um campo de milho num extenso crupinal. Entre nós, pelo contrário, o controle químico é a estratégia de que se abusa para eliminar as ervas indesejadas, não poupando naturalmente as outras. A crupina-comum, planta anual, não está a resistir aos herbicidas que contaminam os nosso prados, clareiras de matos e bermas de caminhos, e já foi mais fácil de encontrar.

A primeira vez que a vimos, junto a um campo de escuteiros na serra de Aire, parecia uma herbácea rasteira orgulhosa da sua haste de uma só flor. Engano nosso. Meses depois, numa rocha ultrabásica de Macedo de Cavaleiros, ela parecia ter tomado uma dose saudável de vitaminas e atingido uns respeitáveis 40 cm de altura. Não toda, porém: apenas a haste floral tinha crescido, afastando-se da roseta basal de folhas verde-pálidas, mas enfeitando-se com folhas menores e mais recortadas. Em geral, só a flor central de cada inflorescência não é estéril, produzindo no fim do Verão um fruto duro, coberto por uma penugem lustrosa, com forma de dedal e uns 6 milímetros de comprimento, encimado por picos com que se prende aos dispersores. Cada planta pode produzir uma centena de aquénios que se espalham com a ajuda do vento, dos animais ou dos cursos de água, germinam no Outono seguinte e se mantêm viáveis durante uns três anos.

O género Crupina contém duas espécies, a Crupina vulgaris (do sul da Europa e região mediterrânica) e a mediterrânica Crupina crupinastrum (Moris) Vis., ambas exibindo no fim da Primavera ou Verão esguios capítulos de flores cor-de-rosa ou magenta. As populações das duas espécies são abundantes em Espanha, mas só da primeira há notícia em Portugal.