Poderosa Angélica
Num rectângulo com 17 Km de comprimento e 12 de largura, como é a ilha das Flores, as distâncias são de pouca monta, e é de supor que a rede viária esteja há muito completada. Bastaria uma estrada principal ligando as povoações, todas elas no litoral, complementada por uns poucos acessos secundários à costa ou ao interior da ilha: um esqueleto básico que já foi largamente excedido sem que a construção de rodovias pareça abrandar. O processo, em geral com várias etapas, começa quando um caminho de pé posto é alargado e convertido em estradão; em seguida o estradão recebe uma camada de asfalto, logo depois as bermas são melhoradas, e eis que temos uma estrada a brilhar de nova. É o que está a suceder na zona do Morro Alto, onde se situam as mais valiosas manchas florestais de zimbro com turfeira, e por onde, dentro de poucos anos, passará uma estrada de ligação ao norte da ilha. Falta só asfaltar, pois o estrago maior (abertura e alargamento da via) já foi feito.
Que necessidade há de uma estrada dessas? O interior da ilha é despovoado e ninguém mora no Morro Alto. O trajecto entre a Fajã Grande e Ponta Delgada ficará talvez meia dúzia de quilómetros mais curto, mas não é certo que os florentinos venham, nas suas deslocações, a preferir a nova estrada. Talvez só para variar o itinerário, pois a urgência de chegar não faz parte do seu dia-a-dia. Percorri demoradamente a pé, numa terça-feira com muito sol, a recente estrada que liga a caldeira seca à costa nordeste das Flores. Podia, se o quisesse, andar descansado pelo centro da via, pois nas três horas de uma caminhada com muitas paragens nem dez carros terei visto passar.
Os prejuízos da abertura de estradas em zonas de grande valor natural não se resumem aos inevitáveis desbastes e terraplenagens. Para além de se facilitar o acesso de visitantes a habitats sensíveis, abrem-se vias de penetração para a conteira (Hedychium gardnerianum) e a árvore-do-incenso (Pittosporum undulatum), principais componentes da vegetação infestante que, nas Flores, domina por completo os bosques a média ou baixa altitude.
Admito, com algum egoísmo, que essas novas e nefastas estradas até me deram jeito. Sem elas, não teria tido igual facilidade em dar de caras com a Poderosa Angélica e outras especialidades da flora açoriana.
Da angélica ou Angelica lignescens, endemismo açoriano presente em cinco ilhas dos três grupos do arquipélago (Flores, Faial, Pico, Terceira e São Miguel), dir-se-á no mínimo que impõe respeito. Trata-se de uma umbelífera descomunal, que no período de floração atinge os três metros de altura, e em que a inflorescência sustentada por quatro ou cinco dezenas de raios pode chegar a um metro de diâmetro. É uma planta ameaçada, com populações localizadas e escassas. É também impossível de não ver se chegarmos perto dela ou nem assim tão perto. Pude chegar muito perto porque a tal nova estrada de escassíssimo trânsito atravessa justamente a maior população desta planta na ilha das Flores.
Além das plantas em flor, que porém não se tinham ainda desenvolvido em toda a pujança e ficavam aquém das medidas prometidas, havia muitas outras que só mostravam a folhagem — folhas tripinadas com cerca de um metro de comprimento. Florir, para a angélica, é o culminar apoteótico da existência, e não acontece antes do quinto ou sexto ano de vida. Depois de produzir semente, acto em que investe todas as suas reservas de nutrientes, a planta seca e morre. Exemplo mais conhecido do mesmo fatalismo é a Agave americana. As plantas perenes que adoptam esse estilo de vida (ou de morte) dizem-se monocárpicas.
É quase inexplicável como uma planta tão vistosa e singular, embora de claras semelhanças com as angélicas continentais (como a Angelica sylvestris), só tenha sido baptizada em 1997, em artigo da autoria de três botânicos franceses (Philippe Danton, Jean-Pierre Reduron, Michel Baffray: Une nouvelle angélique pour la flore des Açores: Angelica lignescens sp. nov. (Apiaceae). Acta Botanica Gallica 144: 183-189). Durante mais de um século a angélica açoriana foi confundida com o Melanoselinum decipiens, uma umbelífera madeirense igualmente monocárpica e de porte não menos avantajado. As duas plantas só têm alguma semelhança quando não estão em flor; quando estão, são tão parecidas uma com a outra como um elefante com uma girafa. O Melanoselinum decipiens apresenta haste lenhosa, é desprovido de folhas na base, e a sua inflorescência assume tonalidades arroxeadas — tudo características que a Angelica lignescens não partilha.
Mas, para nosso embaraço, alguém confundiu mesmo um elefante com uma girafa e a asneira teve força de lei, como se comprova consultando o vol. I da Nova Flora de Portugal (1971) ou lendo esta passagem do Catálogo das plantas vasculares dos Açores (1966), livro póstumo de Ruy Telles Palhinha: «Em Natural History of Azores [1870] Watson nega a existência desta espécie [Melanoselinum decipiens] nos Açores; um século depois Tutin & Warburg [1932] colheram-na nas Lages do Pico e na Caldeira do Faial.» Para dar um toque de ironia à confusão, decipiens significa enganador em latim.
Em 1998, um ano depois de a angélica ter visto reconhecida a sua verdadeira identidade, o britânico John R. Press e o português Eduardo Dias publicaram, no número 16A da revista Arquipélago, um artigo (PDF) onde contam toda esta rocamblesca história com final feliz. Porque afinal cada um dos arquipélagos, Madeira e Açores, viu a sua flora oficialmente enriquecida com um novo endemismo.