O preço de uma flor
As Flores e o Corvo, perdidas no Atlântico e com um pé na América, são o pedaço mais remoto de um Portugal já sem império. Mas, com a construção dos aeroportos e os voos regulares para as ilhas, o que é longínquo passou a ser acessível. O preço que pagamos pela facilidade que temos em ir e voltar é que já não é verdadeiramente possível estar nas ilhas. Não nos desligamos do assédio dos prazos e dos compromissos que trazemos do continente. Achamos curiosa a vida despojada dos ilhéus, com tão escasso comércio e tão raros entretenimentos, e não nos imaginamos a viver vida igual. Visitar as Flores por uma semana é como meter o pé na água fria sabendo que nunca mergulharemos de corpo inteiro.
Descendo para o Atlântico sul, há ilhas povoadas, como a de Santa Helena, famosa por Napoleão ter sido para lá exilado, a que ainda hoje só se chega de barco. Para reaprendermos o significado de distância, talvez seja bom visitar Santa Helena antes que lhe construam um aeroporto e com ele venha esse mal moderno do turista apressado.
Dentro da temática que nos é própria, também há motivos para falarmos de Santa Helena a propósito das Flores. São ilhas de dimensões semelhantes, cada uma delas com cerca de 4000 habitantes. Para uma ilha tão pequena (122 Km2), Santa Helena tem um número excepcional de endemismos botânicos, nada menos que 54 plantas vasculares. Por contraste, não haverá mais que 70 plantas endémicas no total das nove ilhas do arquipélago dos Açores. Infelizmente, Santa Helena também se distingue por outro número, o de extinções: pelo menos cinco plantas endémicas estão extintas, e duas outras já só existem em cultivo. Nesse aspecto os Açores parecem ter-se comportado melhor, pois a Vicia dennesiana, colhida algures em São Miguel no século XIX, é o único endemismo açoriano reconhecidamente extinto.
Mas talvez esse menor número de extinções se deva apenas à circunstância de haver nos Açores, proporcionalmente à sua área total, muito menos endemismos do que em Santa Helena. É que não sou poucas, no arquipélago, as extinções locais — plantas que deixaram de existir em algumas ilhas, persistindo porém noutras. E, como seria de esperar em território sob admnistração britânica, a preocupação com a sobrevivência da flora nativa e os programas activos de conservação estão, em Santa Helena, a anos-luz de distância da prática açoriana.
Tanta displicência poderia emanar de uma superioridade moral semelhante à que alguns brasileiros invocam para justificar a desmatação galopante da Amazónia. Como podem os países desenvolvidos que destruíram as suas florestas exigir ao Brasil que preserve a sua, abdicando assim de altíssimos proveitos económicos? De modo análogo, os açorianos poderiam alegar que o exemplo britânico em Santa Helena os dispensa de ouvir lições de forasteiros. Os Açores também têm direito a extinguir os seus endemismos, se isso for da sua conveniência.
Claro que o raciocínio está de todo viciado. Ao contrário do que sucede no Brasil com a exploração da Amazónia, a ilha das Flores não tirará qualquer lucro do desaparecimento da Euphrasia azorica ou do Myosotis azorica. E, em ambos os casos, há uma amputação auto-infligida que é estranho apresentar como uma retaliação contra outrem.
Só com muita sorte ou persistência é que um visitante das Flores encontrará sem ajuda uma Euphrasia azorica. No caso deste escriba, a persistência tem a medida objectiva das dezenas de quilómetros percorridos a pé por toda a ilha. Mas não vá o leitor desistir já, pois há coisas que não exigem esforço e valem a viagem, como este panorama com a Fajãzinha ao fundo que se contempla do Miradouro de Craveiro Lopes.
2 comentários :
Excelente post e lindíssima a Euphrasia azorica! As populações destas plantas deveriam estar "oficialmente" sinalizadas!Quantos valores botânicos já se perderam à custa da ignorância "oficial"!
Obrigado, Ana. A "ignorância oficial", que testemunhei em primeira mão, é ainda mais triste porque de facto os dados de localização dessas espécies raras foram disponibilizadas à Secretaria Regional do Ambiente por quem estudou exaustivamente a flora da ilha das Flores, mas ficaram esquecidos nalguma gaveta ou desapareceram com a mudança de chefias. Não há monitorização possível nessas condições, mas no mínimo podiam controlar as cabras.
Enviar um comentário