31/12/2009

O outro espelho de Vénus


Legousia pentagonia (L.) Druce

Bénigne Legouz de Gerland (1695-1774) foi um aristocrata francês, patrono das ciências e das artes, que fundou, em 1771, o Jardim Botânico de L'Arquebuse, em Dijon. A ele foi dedicado o género Legousia, antes chamado Specularia, que abriga 15 espécies de plantas anuais, de pequena estatura, do norte de África, região mediterrânica e Médio Oriente. Sete espécies americanas, fáceis de identificar pelas brácteas conspícuas, integravam também o género até serem arrumadas num outro (Triodanis). A Legousia mais afamada é o espelho-de-Vénus (Legousia speculum-veneris (L.) Chaix), caprichosa na companhia, preferindo a de pinheiros-silvestres em lugares montanhosos. Floresce de Maio a Julho e distingue-se da espécie nas fotos por ter folhas (simples, alternas e sésseis) onduladas nas margens e flores (hermafroditas, com cerca de 2cm de diâmetro, azuis, raramente brancas) com sépalas maiores do que as pétalas.

A Legousia pentagonia (L.) Druce, de folhas com margens ciliadas, aprecia terrenos cultivados ou pedregosos. Floresce em Julho e Agosto mas, se o sol se esconde, fecha de imediato as corolas. Em cada flor, as 5 pétalas reflexas são pontiagudas com um veio mediano vincado; o estilete - a coluna ao centro com um nectário na base - tem três estigmas no topo; e o pólen, nos cinco estames que circundam o estilete, prende-se ao seu exterior penugento com a ajuda de vários insectos visitantes. O fruto é uma cápsula cilíndrica estreita (vê-se na foto da direita) contendo sementes brilhantes; em vez de se abrir completamente, rasga três janelas junto a uma das pontas.

Habituados às flores em sino das campanuláceas, demorámos a perceber que esta flor lilás estrelada poderia ser da mesma família. Tornou-se, por isso, a nossa referência, neste ano, para medir o deslumbre e o prazer que estes achados nos têm concedido.

30/12/2009

Das plantas e dos temperos


Origanum vulgare L.

Turismo gastronómico não é coisa que nos seduza: podemos fazer umas centenas de quilómetros para fotografar umas ervinhas na Serra dos Candeeiros, mas não para provar de um prato com elas confeccionado. E, se não viajamos para comer em Portugal, seria de todo inconcebível ir a Londres com esse propósito. Entendamo-nos: cada um tem o paladar moldado pelo país onde nasceu e cresceu, e parece haver uma incompatibilidade radical de gostos culinários entre portugueses e britânicos. É esta a maneira airosa de despachar um assunto embaraçoso, evitando comentar o fish & chips encharcado em vinagre, os legumes ultracozidos sem ponta de tempero, os molhos agressivos que obliteram o sabor da comida (se é que ela tem algum), as versões desenxabidas dos «pratos étnicos». Longe de nós afirmar que tudo isso demonstra uma desafinação grave dos orgãos gustativos dos britânicos. Não, mil vezes não. Acontece simplesmente que tais orgãos foram regulados de modo diferente dos nossos.

Os restaurantes indianos, italianos, gregos, chineses e de não sei quantas mais nacionalidades que proliferam em Londres são a escolha natural do visitante para fugir à comida britânica. Acontece que muitos deles praticam uma cozinha preguiçosa e aculturada. Não têm de fidelizar uma clientela exigente, seja porque ela não existe ou porque o afluxo de turistas incautos é inesgotável. É assim uma verdadeira surpresa encontrar um restaurante como o Da Mario, em Gloucester Road (Kensington), que não cobra preços astronómicos, não é chique nem exige reserva de mesa, e serve comida deliciosa. As pizzas, que há muito desisti de comer nos nossos restaurantes ditos italianos, são aqui autênticos tratados de apuro culinário. O que mais nos atrai ao Da Mario são porém as saladas, em especial a incomparável insalata tricolore: mozarela, tomate, abacate, azeitonas, manjericão fresco, tudo regado com um dourado fio de azeite. Nada mais seria preciso para uma refeição perfeita.

O manjericão ou alfavaca (Ocimum basilicum L.), a que os ingleses chamam basil, é a erva aromática mais usada em cozinha italiana; poucas são as pizzas que a dispensam. Como não tenho à mão uma foto dessa planta, decidi convocar o orégão (Origanum vulgare L.), que casa especialmente bem com o tomate e as azeitonas. Pode assim, numa emergência, substituir o manjericão numa versão caseira da insalata tricolore.

O orégão é um pequeno arbusto compacto (até 30 cm de altura), muito ramificado e aromático, com galhos aveludados, que ocorre naturalmente no norte de Portugal e nos países da bacia mediterrânica. As flores tubulares, de corola penugenta, são brancas ou cor-de-rosa, agrupam-se em cachos cimeiros, e medem cerca de 4 mm cada.

29/12/2009

A cor do problema


Anemone palmata L.

.....For those colours you wish to be beautiful, always first prepare a pure white ground.
.....Leonardo da Vinci
.....(Leonardo on Painting, M. Kemp (ed), Yale University Press, 1985)

A anémona já faz parte do nosso pequeno catálogo, mas esta, da região mediterrânica, surpreendeu-nos com os dois tipos de flores que coexistem no mesmo habitat: uma branca de centro amarelo, outra totalmente amarela. Alguma explicação dever haver para esta dupla aparência, para este disfarce que nos deixa baralhados. Alguém faz a fineza de nos elucidar?

A floração da campanilha é temporã e longa, de Fevereiro a Junho. As flores têm uns 3 cm de diâmetro e 10 a 15 sépalas (ou pétalas, a bibliografia não é unânime) de face inferior tomentosa e pintalgada de púrpura. São solitárias e o pé tem a meio um colarinho de 3 folhas sésseis, como se fossem brácteas um pouco descaídas.

No Outono, a anémona-do-Tejo só nos mostra as rosetas de folhas basais, circulares, palmadas, com 3 a 5 lóbulos de margens dentadas. E, mal chega o frio, recolhe-se ao seu tubérculo, bela adormecida a fintar a morte. Prefere prados húmidos, charnecas ou pinhais, ou qualquer lugar onde haja abelhas lambareiras que não se melindrem por o néctar lhes ser servido em malgas sem nectários.

28/12/2009

Senhora de Alcântara


Alcantarea geniculata (Wawra) J. R. Grant

As bromeliáceas, plantas herbáceas de que o ananás é o mais famoso representante, são quase uma especialidade brasileira: dos mais de 60 géneros e 3000 espécies que integram a família, pelo menos 40 dos géneros e 1200 das espécies pertencem à flora do Brasil. Muitas delas, sobretudo as que moram na Mata Atlântica, são epífitas: vivem empoleiradas em árvores e obtêm sustento da humidade, das poeiras e da matéria orgânica em decomposição que existe sobre a hospedeira. Outras espécies são terrestres, abundantes em caatingas (savanas semi-áridas características do nordeste brasileiro) e em restingas (terrenos arenosos, próximos do mar, cobertos com vegetação herbácea).

As inflorescências das bromeliáceas têm brácteas vistosas, por vezes dispondo-se em forma de espátula. As folhas, em roseta basal, frequentemente espinhentas, formam uma imbricação onde a planta armazena água como num tanque. Esses reservatórios líquidos, além de indispensáveis para a boa saúde da planta, cumprem papel ecológico importante, fornecendo humidade e nutrientes a pássaros, insectos, anfíbios e lagartos. Claro que há insectos que não nos são particularmente simpáticos, como os mosquitos. Para evitar que eles depositem as suas larvas no tanque das bromeliáceas, há quem recomende aspergi-las com óleo de cozinha e detergente para a louça, diluindo-se previamente num litro de água uma colher de chá dessa estranha mistura. Por serem em regra fatais para a planta, devem evitar-se o sulfato de cobre e outros insecticidas químicos.

O nome Alcantarea tem inconfundível ressonância portuguesa, e de facto deriva de Alcântara - supõe-se que em homenagem a Dom Pedro II (de seu nome Pedro de Alcântara), segundo e último imperador do Brasil. Até há poucos anos conheciam-se dezena e meia de espécies, todas do sudeste do Brasil. Sem que se tenha ampliado o seu âmbito geográfico, a partir de 2007 acelerou-se a descoberta de novas espécies, que totalizarão hoje umas 28 ou 29 (conferir aqui). São plantas terrestres, altas (de 1 m a 1,8 m), sem espinhos, com flores perfumadas abrindo cedo pela manhã, que preferem habitats rochosos e, quando cultivadas, agradecem um solo bem drenado.

26/12/2009

O jardim que foi cemitério



St George's Gardens - Londres

A meio caminho entre Russell Square e King's Cross encontra-se, escondido entre prédios, um cemitério morto que é uma apoteose de vida. Cemitério morto porque desde há mais de século e meio ninguém lá é enterrado; e vivo por causa das árvores e de toda a fauna de insectos, pássaros e esquilos que lhe está associada. Não ultrapassa um hectare de área, mas é bem mais valioso do que aqueles jardins e parques, mesmo que amplos, onde as árvores nunca são autorizadas a crescer.

Conta a placa no local que o cemitério, um dos primeiros na Grã-Bretanha a não ficarem anexos a uma igreja, foi aberto em 1713 num terreno descampado. Em 1855, quando o cemitério teve de encerrar por sobrelotação, a cidade tinha crescido desmesuradamente a toda à volta. Rebaptizado como St George's Gardens, reabriu em 1885 como jardim público ao gosto vitoriano, mantendo-se os já então seculares plátanos a pontuar os meandros dos caminhos.

De formato rectangular truncado, alongando-se por 200 m no sentido este-oeste, com um acesso no extremo oeste e mais dois no extremo oposto, o jardim, além de nos induzir ao descanso com os bancos bem servidos de sombra, funciona como atalho aprazível, surpreendente ao primeiro encontro, para quem se desloque a pé.

25/12/2009

Sagrada família



Doryanthes palmeri A. W. Hill

    A Sagrada Família comia connosco
cinco dias por mês. Ficava, sem ruído,
sobre a mesa da sala. Brilhava no escuro
a chama diminuta de uma lamparina.
    Disputávamos a honra da moeda na ranhura
sob os pés de S. José. Espécie de slot-machine
    cujo prémio era o regresso do pai,
a bofetada, o princípio da autoridade.
    Anos depois, cabia ao filho mais velho
o cuidado de transportar a imagem
a casa do vizinho. Trezentos metros
a fugir das pedras e das bocas infiéis.
    Até ao dia em que o pai ficou de vez,
para dar por terminada a brincadeira.
Agora, todas as frases eram rematadas
por pontos de exclamação, as portas
    começavam a bater mais depressa.
Nenhum dos filhos levantava a cabeça
quando a mãe nos perguntava, ainda:
quem quer apostar na Sagrada Família?

José Miguel Silva, Vista para um pátio (Relógio D' Água, 2003)

24/12/2009

Jasmineiro-do-monte


Jasminum fruticans L.

O telégrafo deixara de funcionar; ou fora a atmosfera que deixara de funcionar, o que naquelas circunstâncias dava igual. Halípio escreveu uma mensagem com um novo pedido de socorro, colocou-a numa garrafa, selou-a e lançou-a ao mar. A garrafa não se afastou, foi-os seguindo sempre como um cachorrinho tímido, e inclusive chamou outras. Ao vigésimo sexto dia deram com umas boas centenas de garrafas a rodear o barco. Lançaram as redes à água e pescaram algumas. Não eram mensagens de marinheiros que, como eles, houvessem perdido as graças do mar. Eram antes - assegurou-me Halípio baixando a voz - recados do Além: na primeira garrafa que abriram encontraram uma mensagem da mãe do radiotelegrafista, falecida quando este era ainda criança num estúpido acidente doméstico. Na segunda, uma mensagem de um velho amigo de Halípio, desaparecido na guerra, em Moçambique. E por aí fora, sendo que todas as mensagens se dirigiam directamente a cada um dos pescadores presentes no barco. (...)

- Xerto. Era como se o mar estibexe xeio de bojes.

O que querem? Mesmo a falar Halípio Onrado erra a ortografia. Os mortos requeriam nas suas mensagens pequenos favores dos vivos, e a indulgência da sua memória, desculpavam-se por episódios passados, esclareciam outros. Os pescadores estavam tão esfomeados que se alimentaram das mensagens, cozinhando-as com um pouco de água da chuva. Halípio guardou apenas um bilhete da avó, no qual esta lhe transmite a receita dos famosos bolinhos de bacalhau (...). Halípio mostrou-me o bilhete. Um papel amarelo. Tinta azul, um pouco desbotada. Arrancou-mo das mãos antes que eu conseguisse ler o segredo. Os bolinhos são maravilhosos, acreditem: uma receita do outro mundo.


José Eduardo Agualusa, Barroco Tropical (Dom Quixote, 2009)

23/12/2009

Quarto com vista, 2



Russell Square, Bloomsbury, Londres

   They perished on the scaffold: Williams, as I have said, by his own hand;
and, in obedience to the law as it then stood, he was buried in the centre
of a quadrivium, or conflux of four roads (in this case four streets), with
a stake driven through his heart. And over him drives for ever the uproar
of unresting London!
Thomas de Quincey
   On Murder Considered as one of the Fine Arts (1827)
A velocidade e o ruído não começaram com o automóvel, e são mesmo anteriores à invenção da máquina a vapor. Thomas de Quincey (1785–1859) fala-nos de uma Londres incessante e tumultuosa num tempo em que só havia veículos de tracção animal. O mesmo autor, em The English Mail-Coach (1849), descreve como autênticos bólides as carruagens a cavalo que, no primeiro quartel do século XIX, combinavam serviço postal com transporte de passageiros. Quando o cocheiro adormecia, como adormecem hoje ao volante os motoristas de longo curso, as consequências só não eram tão trágicas porque os cavalos à rédea solta sabiam manter-se na estrada. De Quincey, relatando uma quase colisão que ele próprio, como único passageiro desperto num veículo desgovernado, conseguiu evitar com um grito de alarme, dá-nos uma imagem mortífera da velocidade raras vezes igualada nesta nossa época de aeroportos e auto-estradas. Talvez porque o intervalo entre a consciência do perigo e a sua consumação esteja hoje reduzido a zero.

O trânsito em Londres nunca pára. Já não será a chiadeira dissonante das carroças e dos coches, nem o matraquear das patas dos cavalos, mas um ruído mais manso, ronronante, que sobe e desce como o marulhar das ondas. Ruth Rendell, em Thirteen Steps Down (2004), compara o rumor da Westway, um grande braço de auto-estrada que sobrevoa Notting Hill, à agitação do mar, mais calmo de marés à noite mas nunca silencioso.

Quando no hotel me foi dado escolher entre um quarto virado para a praça e outro para as traseiras, não tive dúvidas em optar pelo primeiro. Afinal, além de ficar a saber como é Russell Square vista pelos pássaros, ainda iria ter, a embalar-me o sono, o tal uproar of unresting London celebrado por De Quincey, em versão revista e actualizada para o século XXI. A caixilharia frágil, incapaz de atenuar o ruído, assegurou-me pela noite dentro a plena fruição desse concerto motorizado, com os veículos ligeiros a soarem as notas agudas sobre o baixo trepidante dos autocarros. O registo fotográfico, porém, foi prejudicado pelo estreito ângulo de abertura da janela, e só consegui captar um dos cantos da praça. Daí o bónus de uma foto tirada ao nível do chão.

Bloombsbury e South Kensington são dois dos pedaços de Londres mais aconchegantes, com praças arborizadas como refúgios de sossego que o trânsito automóvel, tantas vezes intenso, não chega verdadeiramente a perturbar. Bloomsbury, menos requintada, é também a mais democrática: as praças e os jardins estão abertos a toda a gente, e não apenas, como sucede em South Kensington e em Chelsea, aos moradores do quarteirão. Russell Square, a dois passos do Museu Britânico e da Universidade de Londres (University College), é tão só a maior de uma meia dúzia de praças ajardinadas que se espalham num raio de quinhentos metros: Bedford Square, Tavistock Square, Gordon Square, Queen Square, Bloomsbury Square. Todas elas estão dominadas por enormes plátanos e colonizadas por esquilos atrevidos, dependentes da (muita) fauna humana para a sua alimentação.

Numa tarde de sábado em Agosto, fui ao cinema Renoir (no Brunswick Centre) ver Home, filme belga que, por inadvertência, deixara fugir aquando da sua exibição no Porto. Com uma auto-estrada a dez metros de casa, há uma família, com Isabelle Huppert no papel de mãe, que quase se suicida ao tentar a todo o custo isolar-se do trânsito atroador. Se o enredo encoraja leituras metafóricas óbvias, o filme não deixa de ser uma lição prática de como o ruído e o tumulto modernos ultrapassam, em capacidade de enlouquecimento, tudo quanto foi testemunhado por Thomas de Quincey.

22/12/2009

Verde vegetal

Em 1845, era a ilha de Hong Kong britânica, a França enviou à China uma equipa de negociadores (Fortune, Randot e De Montigny) para fomentar, na nova conjuntura, as trocas comerciais. Voltaram anos depois com alguns objectos na bagagem, um deles de valor menos óbvio mas que se revelaria o mais precioso: um pote de argila verde, o lo kao.

Até essa altura, colorir tecidos de verde significava mergulhá-los numa cuba de azul e depois noutra de amarelo. Para além do problema de conseguir os mordentes adequados para fixar o pigmento, o processo raramente permitia obter matizes idênticos porque estes dependiam da concentração dos ingredientes e da temperatura desses caldos. Exigências que encareciam o corante: Robin Hood e os seus companheiros vestiam verde-Lincoln não para se camuflarem mas porque esta cor, feita de azul extraído de Isatis tinctoria L. e amarelo da Reseda luteola L., era muito cara, e por isso um bom exemplo do que devia ser roubado aos ricos e distribuído pelos menos afortunados.

A lama verde lo kao era obtida de duas espécies chinesas, Rhamnus utilis Dcne. e Rhamnus chlorophorus Dipp. Na Europa, era conhecido o uso de plantas do género Rhamnus para a confecção de tintas: por exemplo, as folhas de Rhamnus cathartica L. eram utilizadas para produzir amarelo; e as bagas, brevemente fervidas com alúmen, cozinhavam uma seiva esverdeada, tida contudo como um verde de fraca qualidade. Os chineses, porém, produziam o seu verde a partir da casca daqueles arbustos, e dispensavam o uso de mordentes. A cor intensa e resistente à luz era o sedimento, vendido a alto preço, que resultava de um método moroso e complexo. Por isso foi dos primeiros pigmentos a ser substituído na Europa, em 1870, por versões sintéticas que passaram a rumar à Ásia. Os que antes celebravam a natureza renderam-se sem agravo à tecnologia.


Rhamnus alaternus L.

As flores amarelas de R. alaternus (o sanguinho-das-sebes), planta dióica de folhagem perene abundante na região mediterrânica, não têm pétalas. As 5 sépalas das flores masculinas são reflexas, as das femininas são erectas. (Reveja as fotos, estimado leitor, para as identificar.)


Frangula alnus Mill.

Dos ramos de Frangula alnus (ou Rhamnus frangula L., o sanguinho-das-ribeiras da Europa, Ásia e Norte de África), um arbusto lenhoso de folha caduca, com flores verdes hermafroditas de 5 pétalas e 5 sépalas (maiores), e que pode chegar aos 5m de altura, faz-se o melhor carvão para desenho - ou, por ser leve, para o fabrico de pólvora.

21/12/2009

Os nós e as dunas



Polygonum maritimum L.

Depois de termos aqui trazido duas das espécies do género, que há ainda a dizer sobre os polígonos? Mesmo o leitor que não prosseguiu estudos geométricos avançados terá ideia de que polígono não é bem uma planta, mas antes uma figura esquinada que se pode rabiscar num papel. Acontece que ambas as acepções do termo - planta e figura geométrica - são justificadas pela etimologia da palavra: poli e gono são vocábulos gregos que significam muitos e ângulos; e gono tem ainda outros significados de índole semelhante, como nós, articulações ou joelhos. Se a aplicação do nome a entidades como triângulos ou rectângulos não levanta dúvidas, já no que toca à planta ele alude aos nós dos caules, em geral inchados e, no caso do Polygonum maritimum, revestidos por uma bainha (ou estípula) avermelhada. As designações inglesas knotgrass ou knotweed são, aliás, motivadas pela mesma observação.

O polígono-marítimo é uma planta rastejante, perene, de base lenhosa, com ramos que se estendem até 50 cm. As folhas são ovais, estreitas e curtas (2 cm), com margens recurvadas, e as flores (até 4 mm), que aparecem de Março a Dezembro, brotam dos nós dos caules em grupos de duas a quatro. Vive exclusivamente na orla marítima, por vezes ao alcance das marés cheias, em dunas, rochedos ou praias de seixos. Planta europeia, ocorre tanto na costa atlântica como na mediterrânica, e faz ainda incursões nos Açores e às praias do Mar Negro.

19/12/2009

Salada de sinónimos



Sechium edule (Jacq.) Swartz

O chuchu, esse legume que parece uma pêra tosca, de sabor delicado e essencial a um caldo nutritivo, nasce de uma hortaliça que é uma trepadeira. O chayote é uma herbácea monóica (as flores masculinas agrupadas em racimos, as femininas em geral solitárias) com gavinhas de hélice estreita, caules angulosos e flores de pedúnculo curto, não fosse a pêra-crocodilo cair com o peso. A semente, que sabe a amêndoa, é grande e também comestível, como são aliás as folhas, as flores e as raízes. Nas variedades cultivadas a semente germina ainda o fruto está pendurado; nas silvestres, os frutos são mais azedos e fibrosos como defesa contra herbívoros e só amadurecem depois de caírem. A mão-de-Buda pede sol que baste, rega frequente e noites sem geadas.

Nas regiões tropicais os chuchuzeiros frutificam abundantemente e por vezes invadem sem dó a floresta nativa, asfixiando arbustos e árvores. A polinização por vários insectos contribui para o sucesso desta disseminação sem controle. Não se sabe há quanto tempo a batata-aérea é cultivada, mas crê-se que era consumida pelos astecas. A primeira descrição europeia conhecida desta planta é de Francisco Hernández, que esteve no México e Peru em 1571-78, mas, dizem os arqueólogos, a cerâmica decorada do período pré-colombiano exibe claramente desenhos de pepinela.

Desde os anos 90 do século passado os taxionomistas concordam que o género Sechium é composto por, pelo menos, 11 espécies, das quais 9 são silvestres, do México, Costa Rica e Guatemala, e as outras duas cultivadas: S. tacaco, presente apenas na Costa Rica, e S. edulis, embora desta espécie haja também no sul do México populações espontâneas, de folhas maiores, flores mais robustas que nascem de Abril a Dezembro e frutos tomentosos, sazonados entre Setembro e Janeiro.

A caiota mudou de nome científico várias vezes - foi Sicyos edulis, Chocho edulis, Chayote edulis, Cucumis lacinatus, Cucumis acutangulus, Sechium americanum, Sechium cayota - e as designações vernaculares acompanharam esta indecisão. Sechium deriva do grego síkuos, pepino; edulis significa comestível.

18/12/2009

Desaprender


Euphorbia milii Des Moul. [variedade cultivada]

Há uma altura em que, depois de se saber tudo, tem de se desaprender. Sucede assim com o escrever. Com o escrever do escritor, entenda-se. Eu, provavelmente poeta, estou a aprender a... desaprender. E para quê e como se desaprende? Para deixar de ronronar, para que o leitor, quando o nosso produto lhe chega às mãos, não exclame, satisfeito ou enfastiado: «- Cá está ele!».

Na verdura dos seus anos, a preocupação do escritor parece ser a da originalidade. Ser-se original é mostrar-se que se é diferente. E as pessoas gostam das primeiras piruetas que um sujeito dá. E o sujeito gosta de que as pessoas vejam nele um talento.

Atenção, vêm aí as receitas, as ideias feitas, os passes de mão, os clichés, os lugares selectos ou, mais comezinhamente, os lugares comuns. O escritor está instalado. Revê-se na sua obra. Começa a abalançar-se a voos mais altos, a mergulhos mais fundos. É a intelectualidade que o chama ao seu seio, o público que o põe, vertical, nas suas prateleiras. Arrumado.

Quase sem dar por isso, o escritor acomodou-se e tornou-se cómodo, quando propendia, nos seus verdes anos, a incomodar-se e a tornar-se incómodo. Organiza «dossiers» com os recortes das críticas que lhe fizeram ao longo da sua carreira (nome, já de si, chamuscante), vai a colóquios, celebrações, congressos. Ganha prémios. É traduzido e publicado no estrangeiro. Por desfastio (e por que não?, algum dinheiro) aceita colaborar em conspícuas revistas ou em jornais efémeros como o dia a dia em que vão sendo publicados. Está de tal modo visível que já ninguém dá por ele. É o escritor.

Alexandre O'Neill, Uma Coisa em Forma de Assim (1985)

17/12/2009

Ficus fugit



Ficus sycomorus L.

    O rei fez com que, em Jerusalém, a prata e o ouro fossem tão
comuns como as pedras, e os cedros, tão numerosos como os
sicómoros da planície da Chefela.

Tendo entrado em Jericó, Jesus atravessava a cidade. Vivia ali um homem rico, chamado Zaqueu, que era chefe de cobradores de impostos. Procurava ver Jesus e não podia, por causa da multidão, pois era de pequena estatura. Correndo à frente, subiu a um sicómoro para o ver, porque Ele devia passar por ali.

Bíblia Sagrada - 2 Cr 1, 15; Lc 19, 1-4
Sicómoro, ou sycamore em inglês, é nome que já vem no Antigo Testamento; mas, como a árvore de prestígio bíblico assim designada não ocorre em território europeu nem americano, ele foi dado de empréstimo a outras árvores. Quando os britânicos falam de sycamore, referem-se ao nosso padreiro (Acer pseudoplatanus), mas os americanos reservam esse nome para os plátanos - a que os ingleses, por sua vez, chamam plane tree. Se a semelhança na folhagem entre o plátano e o padreiro pode desculpar esta divergência, já custa mais ver que afinidade poderão ter estas árvores com a Ficus sycomorus. Pois a árvore a que subiu Zaqueu para ver Jesus, e que abundava na terra de Israel ao tempo do rei Salomão, era na verdade uma figueira.

O sicómoro é cultivado há milénios no Egipto e na Palestina, e alguns sarcófagos dos faraós foram feitos com a sua madeira, a mais usada, a seguir à da acácia, no país das grandes pirâmides. Originário do continente africano, em habitats variados que vão do nível do mar aos 1850 m de altitude, tem uma área de distribuição ampla, que começa a sul do Sara, inclui parte da península Arábica, e desce até à fronteira norte da África do Sul. Árvore caducifólia, as suas folhas, rugosas na face superior e de margens onduladas, assemelham-se às das amoreiras em tamanho, textura e cor. Os figos, com cerca de 4 cm, ganham tom amarelo ou vermelho ao amadurecerem e são tidos como comestíveis, embora pouca gente lhes gabe o sabor. De facto, parecem ser mais apreciados por pássaros, macacos e babuínos do que por humanos.

Com longos ramos quase horizontais a irradiar do tronco atarracado, o sicómoro do Jardim Botânico Tropical, em Belém, faz jus à fama da espécie como árvore de sombra. Imagino que essas ramadas sejam, em África, poiso de emboscada para os grandes felinos à espera de presa - ou pelo menos era isso que sugeria a foto de grande formato lá pendurada. Mas a maior aventura sucedida a esta árvore é a guerra de morte que lhe é movida por uma sua vizinha e congénere. O tronco inclinado mostra-a em tentativa de fuga, e o caso não é para menos. Relato completo do drama, com todos os protagonistas em discurso directo, nesta notícia de última hora.

16/12/2009

Azedas-bravas


Rumex acetosa L.

O livro French Provincial Cooking, de Elizabeth David, foi precedido por um volume menor, French Country Cooking, uma pequena colecção de receitas da cozinha tradicional francesa tratadas com reverência e - garantia de que foram experimentadas - condimentadas com juízos, inspiradores ou divertidos, sobre as dificuldades de preparação e os resultados a esperar. A autora viveu em Paris como estudante de História e Literatura Francesas, na Sorbonne, e o livro regista os méritos que então provou da haute cuisine e da cuisine bourgeoise, destinando-se a resourceful housewives and enterprising chefs dotados do humor adequado na abordagem culinária: a devoted, determined spirit, but not, it is to be hoped, one of martyrdom. Publicado em 1951, quando ainda vigoravam os racionamentos posteriores à guerra, o texto tem o cuidado de informar em várias receitas que ingredientes podem substituir, sem prejuízo para o paladar, os que o leitor não encontrar disponíveis.

Também na culinária, os parisienses conseguiram estabelecer modas, assegurando mesmo à gastronomia relevância académica: a arte de bem cozinhar é matéria de ensino, como a pintura ou a música. Não tendo nós um paladar exigente ou apurado, nem tempo para apreciar a maioria dos acepipes requintados destes dois textos, reparámos contudo que, não esquecendo um índice remissivo e uma lista bibliográfica comentada (raridades em muitas obras de hoje), E. David assinala várias tendências interessantes da nouvelle cuisine, sabores impertinentes e quase exóticos nos prazeres à mesa francesa a meio do século passado. Uma delas é o vasto uso de molhos avinagrados, em particular os preparados com folhas de azeda-brava (em inglês, sorrel; em francês, oseille), que dão um sabor ácido a sopas, saladas, purés, molhos, etc., e foram em tempos usadas para embrulhar manteiga. Têm, além disso, efeito diurético e um elevado teor de vitamina C. Elizabeth David avisa que é então difícil encontrar azeda-brava em Inglaterra. Para confeccionar Colin à l'oseille, purée d'oseille (it may be hard to believe, but a purée of green gooseberries, barely sweetened, with the same additions of cream and stock, is almost indistinguishable from this one) ou omelette à l'oseille, os londrinos teriam de a comprar em hortos ou mercados especializados. Curioso negócio este: azedas é o que não falta, a julgar pelo que vemos hoje, em baldios, terrenos incultos ou em pousio, margens de regatos e solos arenosos.

A vinagreira é uma planta vivaz de crescimento rápido, podendo atingir um metro de altura, que está presente em quase toda a Europa, Ásia não tropical e América do Norte. Em vários detalhes lembra a trepadeira-russa. As folhas são lineares, oblongas e inteiras; as basais com cerca de 10cm de comprimento e um limbo em forma de seta com pecíolo longo; as superiores sésseis, abraçadas ao caule, rubras no Verão. A floração decorre de Março a Setembro, e as flores esverdeadas ou róseas nascem dispostas em inflorescências ramosas terminais (flores masculinas e femininas em plantas distintas). A polinização é tarefa do vento e o fruto é uma cápsula castanha triangular de textura fina (feita de três sépalas aumentadas e unidas) com uma semente.

Esta espécie hibrida facilmente, confundindo os esforços de identificação. A Rumex acetosa tem uma parente próxima igualmente abundante na Europa, a R. acetosella L., que se distingue daquela por ter menor porte e folhas mais pequenas, com lóbulos revirados para o ápice da folha, e por ser estolonífera (isto é, desenvolve estolhos, caules rastejantes que emitem raízes a espaços regulares).

15/12/2009

Quarto com vista, 1


Lódãos (Celtis australis L.) - Av. Luís Bivar, Lisboa

As instruções tinham sido claras. Uma voz feminina com sotaque espanhol falara comigo ao telefone, e uns dias depois chegara-me por email a confirmação. Devia apresentar-me às 9:30 da manhã no Instituto Luso-Gaulês para me ser entregue o diploma em cerimónia pública. Por isso, numa noite de domingo em Novembro - escura como todas as noites mas, apesar da garoa, tépida e nada tempestuosa -, percorri o quadriculado de ruas de São Sebastião da Pedreira em demanda do hotel onde me tinha sido reservado quarto. O jardim da Fundação Gulbenkian e o Parque Eduardo VII ficam aqui mesmo ao lado, assim como a maternidade que tantos portugueses deu ao mundo, mas estas ruas eram-me desconhecidas: um bairro residencial sossegado, com muitas árvores, num triângulo delimitado por inóspitas vias de circulação automóvel.

Largada a mochila no hotel, saí para jantar. Tal como sucede no Porto, também em Lisboa os restaurantes fecham ao domingo, o que me deu ocasião para calcorrear a vizinhança até topar - na avenida Conde de Valbom, junto a umas tipuanas de encher o olho - com uma cervejaria de portas abertas. Na maioria das ruas e avenidas do bairro, são os lódãos, plantados em alinhamentos duplos, que formam frondosos cordões de verdura. Apesar da presença convidativa das árvores, as placas centrais foram reservadas ao estacionamento e são impróprias para peões, mas é consolador que o convívio sempre problemático entre automóveis e árvores não tenha tido aqui o habitual desfecho funesto.

Na manhã seguinte, fosca e prometendo já a chuva violenta que cairia ao princípio da tarde, saí para a varanda e tirei estas fotos do oitavo andar onde me calhara dormir. Numa cidade e num país que não se distinguem pela dendrofilia, é uma surpresa gratificante acordar numa avenida ocupada a toda a largura pelas copas das árvores.

14/12/2009

My life & thymes

Era estudante em Inglaterra, no final dos anos oitenta, quando o desgosto pelo que me era servido nos refeitórios e bares me compeliu a cozinhar regularmente. Já no ano anterior tivera uma breve experiência culinária, quando fiquei sozinho, durante boa parte das férias de Natal, num alojamento para estudantes. Quando compreendi que todos os estaminés iriam sem excepção suspender a actividade, comprei de emergência tachos, pratos, talheres, molhos, legumes, arroz, salsichas, ovos - e, se não me posso orgulhar do resultado, pelo menos não passei fome nem a mistura improvisada se revelou indigesta. Mas a responsabilidade de confeccionar diariamente as minhas refeições obrigou-me a uma preparação mais séria - que começou, evidentemente, pela compra de um livro de cozinha.

Naquele tempo não havia Google nem Amazon, e quem queria saber de livros ia às bibliotecas ou às livrarias. A universidade estava bem servida: biblioteca com três pisos, corredores de estantes com prateleiras sobre todos os assuntos imagináveis. Foi lá que descobri que o clássico dos clássicos da literatura gastronómica britânica era French Provincial Cooking, de Elisabeth David, publicado originalmente em 1960. Mais ou menos pela mesma época (soube disso pelo filme Julie & Julia), uma americana, Julia Child, tentava igualmente pôr os seus compatriotas a cozinhar à francesa com Mastering the Art of French Cooking. Se americanos e britânicos assimilaram ou não a dita arte com esses livros é controverso, mas ambas as autoras fizeram sucesso estrondoso nos seus países.

Os modernos manuais de cozinha (já eram assim há vinte anos) encenam as refeições em muitas fotos de cores reluzentes, entremeadas com pequenas caixas de texto. Na edição de que disponho, da Penguin, o livro de Elisabeth David não tem fotos; em 500 páginas de texto miúdo, as ilustrações ficam-se por uma dúzia de gravuras a preto e branco. Diria eu agora, compondo os óculos na ponta do nariz, que French Provincial Cooking deixa espaço à imaginação, em vez de a atrofiar pelo excesso de imagens. É verdade que os acepipes coloridos dos outros livros tresandam a fantasia de pacotilha, mas as receitas de E. David, se alguma vez me roçaram pela imaginação, não a fizeram ganhar asas. Não aspirava a converter-me em mestre cozinheiro, mas apenas a aprender o bastante para não estragar a comida. Ensaiei uma dezena de receitas até estacionar em três ou quatro suficientemente simples, comportando-me como aquele que, por já conhecer o caminho para casa, não vê razão para experimentar novos itinerários.

Claro que me muni de uma bateria de ervas aromáticas, pois até o prato mais trivial dependia delas: bouquet garni, épices composées, fines herbes, pimenta, colorau, estragão, orégão, alho, tomilho. Muitos dos condimentos nunca cheguei a usar, mas o tomilho comparecia no Filet d'agneau au four, uma das minhas pièces de résistence. Eis um extracto da receita:

Season your meat, sprinkle it with a little thyme, and for those of you who like the flavour of garlic with lamb and mutton put a clove or two underneath the meat in the roasting-pan, where it will flavour both meat and gravy without being overwhelming.

Tantos anos depois, ao passear na Serra dos Candeeiros por caminhos forrados a tomilho, pega-se-me, com o aroma intenso, a nostalgia do borrego assado. E ficamos eu e a minha companheira tão perfumados como a carne pronta a ir ao forno.


Thymus caespititius Brot.

O tomilho que ilustra esta prosa (Thymus caespititius), fotografado em Valongo, não é o que se encontra mais a sul, nem tem um cheiro tão forte. É conhecido no Continente como tormentelo ou alecrim-da-serra; e nos Açores, onde também é espontâneo, chamam-lhe erva-úrsula. Subarbusto denso, forma tapetes rasteiros com 5 a 10 cm de altura. Além da cor das flores, que brotam de Maio a Agosto, é a forma e a disposição das folhas (estreitas, com cerca de 1 cm de comprimento) que mais facilmente permitem identificá-lo.

12/12/2009

Pink quill


Tillandsia cyanea Linden ex K. Koch

Toda a estética é uma renúncia ao músculo.

Claro que a renúncia ao músculo é sempre temporária porque a morte vem, e nela o corpo tem de estar presente. Porém a estética não. A morte, poderias dizer, torna dispensável a estética.

Se colocares o ouvido junto ao dorso de uma vaca não escutarás o som do mar.

Gonçalo M. Tavares, Biblioteca (2004)

11/12/2009

Sino azul da Califórnia


Phacelia campanularia Gray

Mesmo as plantas domesticadas dos jardins podem ser pretexto para uma incursão livresca aos espaços naturais que nunca iremos visitar. Aqui está uma planta cultivada, vendida em hortos e centros de jardinagem, que, quando revela a sua identidade, nos leva direitinhos aos grandes espaços da Califórnia sem que lá tenhamos de pôr os pés. Conhecida no seu país natal como California Bluebell, esta herbácea anual penugenta, muito ramificada e compacta, de floração tardia (fim da Primavera e Verão), pouco tem a ver com os verdadeiros bluebells; a sua família é a das boragináceas, e é de facto notória a semelhança das suas flores com as do Echium plantagineum, que integra a mesma família.

De um total de cerca de duzentas espécies de Phacelia, noventa são originárias da Califórnia; as restantes são também nativas do continente americano, tanto do norte como do sul. Ocupam habitats variados - encostas pedregosas, charnecas, bosques -, e algumas delas, como o nosso sino azul, são resistentes a geadas e a temperaturas negativas persistentes. As flores, com cinco sépalas proeminentes abraçando a corola em forma de sino ou de tigela, exibem estames longos, e as cinco pétalas têm cores que variam do azul e do violeta ao amarelo e ao branco. Além de agradáveis à vista, são flores úteis pela abundância de néctar com que atraem abelhas e outros insectos.

10/12/2009

Orelhas-de-cordeiro



Salpichroa origanifolia (Lam.) Baill.

Mavioso, o povo inglês chama-lhe pampas lily-of-the-valley. Os franceses, também atentos na Primavera às flores brancas em sino com cinco pétalas recurvadas, tratam-na por muguet-des-pampas e, no Outono, vendo as bagas ovóides de cor creme, atiram-lhe em brincadeira a designação œuf-de-coq. E, como alguém reparou nas folhas - redondinhas como as do orégão, arrebitadas e aveludadas, com pecíolo longo e em geral duas por cada nó -, por cá deram em tratá-la por orelhas-de-cordeiro. Tantas alcunhas levam-nos a desconfiar que a planta é abundante e se faz notada. E de facto consta da lista de invasoras indesejáveis em toda a região mediterrânica, estando no top 25 das piores pragas nas ilhas dos Açores e Madeira.

É uma herbácea perene do sudeste da América do Sul. Chegou cá por mão de quem mima abelhas - para elas, com tanto néctar, é um genuíno porte-bonheur -, gostou do clima temperado, do solo pobre ou arenoso, da vista para o mar a lembrar-lhe o Pacífico da infância, e já não saiu. Embora de folha caduca, é competidora agressiva por espaço e recursos. Além de alterar a prevalência natural de outras espécies, veda às outras plantas o acesso a nutrientes e ao sol ao formar tapetes cerrados com cerca de 1,5 m de altura, adulterando assim os padrões de regeneração da vegetação nativa. E, se em casa lhe basta a ponderada disseminação por sementes, entre nós adoptou ainda a multiplicação vegetativa. A juntar a tudo isto, é um caméfito: as suas gemas de renovo surgem a não mais de 25 cm acima do solo; assim, se for preciso, ficam protegidas do frio intenso dentro de um iglu de gelo sustentado pela folhagem. Rendamo-nos a tanta astúcia.

O termo salpichroa vem do grego: salpinx significa trombeta, e khróa, tez, em alusão ao formato e cor das flores. O género tem uma trintena de espécies vivazes originárias de zonas temperadas da América do Sul e uma (S. wrightii A. Gray) do Arizona e Novo México.

09/12/2009

Na rota dos três patinhos

Nas loas que aqui tecemos à EN 222, muito gerais e abstractas, não mostrámos as variadas paisagens que se desfrutam entre Vila Nova Gaia e Peso da Régua. Faz-se pois necessária uma adenda, quanto mais não seja como comprovativo de que percorremos realmente esses 130 km de estrada. Mas, antes de comentarmos as imagens, queremos aqui lavrar um protesto. Não muito antes de Castelo de Paiva, uma seta num cruzamento faz-nos abandonar o antigo traçado da EN 222, desviando-nos para uma moderna estrada com separadores centrais e viadutos. Ao longo de uma dezena de quilómetros, esse troço de quase auto-estrada usurpa o título e as funções da velha estrada, que só reencontramos à saída da vila. Ficámos muito desagradados com essa contrafacção de mau gosto.



Quase tanto como as rotundas, os parques de merendas são um dos «melhoramentos» fetichistas mais usados pelos nossos autarcas para ostentarem obra feita. Há, porém, um paradoxo difícil de aceitar: apesar de as rotundas serem tantas vezes trambolhos ofensivos, toda a gente é obrigada a dar-lhes uso; mas os parques de merendas, claramente úteis e de inspiração benfazeja, são em regra ignorados pelos seus potenciais utentes.

Findo o desabafo preambular, diga-se que a foto acima foi tirada do Parque de Lazer e Miradouro da Trincheira, na freguesia de Oliveira do Douro, concelho de Cinfães. Obra estreada há pouco, ainda com cartaz a explicar quem mandou, quem financiou e quem executou, não havia ninguém, apesar da hora propícia, às voltas com farnel nas mesas e bancos de pedra. Do miradouro, tínhamos o rio só para nós. É ali na outra margem, numa encosta com aldeias, campos e arvoredo, que a linha férrea, depois de cruzar o rio Tâmega e o túnel de Marco de Canavezes, encontra finalmente o Douro. Da estação de Mosteirô acabara de sair um comboio para a Régua; ou, como se diz na gíria ferroviária, acabara de partir uma composição procedente de Porto-Campanhã com destino à Régua. Como o Inter-Regional 867 - tal era o seu nome de código - vinha dentro do horário, bem merece o prémio de aparecer na foto.



A vila de Resende ufana-se de ser a capital da cereja, e qualquer português com um mínimo de paladar e de discernimento saberá reconhecer a justeza do título. As cerejas têm a sua época e a deste ano já passou há muito, mas, depois de nos terem deliciado o paladar com os seus frutos, as árvores seduzem-nos a vista com este postal de Outono. E, se juntarmos à lista de atractivos a floração logo à saída do Inverno, são três as razões que as cerejeiras nos oferecem, em três alturas do ano distintas, para visitarmos Resende à boleia da EN 222.



É a derradeira curva do rio antes da Régua. O relevo amenizou-se, as vinhas substituíram as árvores nas encostas, o casario adensa-se. Apesar da queda demográfica de quase cinco mil habitantes nos últimos trinta anos (o concelho tem hoje menos de dezoito mil moradores), Peso da Régua é a cidade mais importante de todo o Douro vinhateiro: cidade utilitária, de negócios, armazéns e entrepostos, que cresceu alimentada pela linha férrea e nunca teve disposição para se embelezar. Hoje, com os prédios desmesurados que sobressaem da malha urbana, e apesar do arranjo menos mau da marginal, é uma urbe decididamente feia. Por isso os turistas preferem fazer paragem no Pinhão e não na Régua, e por isso a cidade está ausente da nossa última foto, tirada à distância de uma curva.

Guia das árvores de Cascais





A Câmara de Cascais, através da empresa municipal do ambiente (EMAC), acaba de editar um manual onde são identificadas e descritas trinta espécies de árvores existentes no concelho.

A avaliar pelo sítio virtual do município (veja as ligações nesta página), Cascais é dos concelhos do país com uma atitude mais esclarecida em relação ao seu património arbóreo, ideia que sai reforçada com a edição deste guia. Oxalá outras câmaras sigam tão bom exemplo.

Para mais informações, contacte:
EMIREC Comunicação – Vera Ferreira
Email: vera.ferreira(at)emirec.pt
Tel: 21 301 13 90

08/12/2009

Árvore das passas


Hovenia dulcis Thunb.

No fim do ano passado, naquele minuto e meio em que se engolem com fervor 12 passas - cobiçando apenas o útil e agradável, sem nunca entender o alcance dessa oração em que se comem as contas do rosário - desejámos conseguir identificar esta árvore. Mora num canteiro de cimento nas traseiras de uma estufa do Jardim Botânico do Porto e, confessamos, tentámos forçar a sorte questionando um dos jardineiros sobre o nome dela. Sei o nome, sim senhora, disse-mo uma vez o Doutor (...), mas agora não o tenho presente.

Observem-na como nós o fizemos semanas a fio. Tem uma copa aberta, ramagem longa, folhas alternadas em forma de coração, com três nervuras na base, um longo pecíolo, ápice pontiagudo, margens serradas e face inferior levemente pubescente. As panículas terminais de flores pequeninas hermafroditas (é certo, isto mal se vê) branco-verdosas de cinco pétalas nascem no Verão e são muito perfumadas. E os pedúnculos, depois de a flor cair, intumescem e o recheio sabe a passas sem graínhas embebidas em mel.

Releia isto, natalício leitor, não é todos os dias com árvores que aqui servimos tão singela iguaria.

E para que serve tal requinte de mesa, a quem se destina? Com quem faz esta árvore negócio através desta ambrósia? Dizem os cientistas que se trata de mutualismo com formigas, sobretudo enquanto a planta é jovem, para a proteger de animais herbívoros.

O fruto é essa bolinha verde na ponta do açúcar-em-pau, que amadurece pardusca e contém três sementes, essenciais à planta pois ela não tem outro modo de se multiplicar.

Por mero acaso (ou foram as passas?), quando já não o esperávamos, descobrimos uma foto dela no livro Los árboles y arbustos de la Península Ibérica e Islas Baleares, de G. López González (Mundi-Prensa, 2.ª edição, 2006). Sabemos agora que o género Hovenia é pequeno (sete espécies, que talvez se venham a reduzir a duas, do este e sudeste da Ásia, desenvolvendo-se melhor em regiões de clima quente e seco e solos alcalinos) e que Hovenia deriva de David ten Hove (1724-1787), um holandês que financiou a expedição de Thunberg em 1772-1776 à África do Sul, Java e Japão.