19/12/2017

A prímula mais alta


Primula elatior (L.) Hill


As convulsões que têm afligido Espanha, ameaçando a sua integridade, são o resultado inevitável das más partilhas feitas pelos primeiros reis ibéricos. Na senda da deriva independentista da Catalunha, veio há semanas a público uma proposta do parlamento andaluz de se criar uma Grande Andaluzia, agregando-se à província com esse nome os demais «países andaluzes»: Múrcia, Algarve e Alentejo. Portugal não deve ficar mudo e quedo face a estas pulsões expansionistas que ameaçam reduzi-lo e retalhá-lo. Sim, deve afirmar desde já a vontade firme de anexar a Andaluzia — ou, em versão diplomática, a calorosa disposição de acolher a Andaluzia e as suas gentes, se elas enveradarem por uma trajectória secessionista face a Madrid. Mas não deve ficar por aqui. Que a Galiza não faça parte de Portugal é um erro crasso denunciado há muitos séculos por patriotas portugueses e galegos. Este é o momento de agir: Portugal cumpre o seu destino histórico e, ao mesmo tempo, remedeia a sua vergonhosa penúria em espécies do género Primula.

Os números são de uma triste eloquência: temos uma única espécie, Primula acaulis, quando, sem contar híbridos nem subespécies, em Espanha há oito, na Europa 33, e na China e Himalaias mais de 300. Unindo-nos à Galiza passaríamos a ter três. Sem ser bom, ajudaria a atenuar a injustiça. A mais alta das prímulas (é isso que garante, com algum exagero, o epíteto específico), Primula elatior, faria parte do enxoval, acompanhada pela Primula veris (se o seu latim anda tremido, saiba que aquele veris não significa que esta prímula seja mais verdadeira que as outras, mas sim que floresce na Primavera, como aliás fazem quase todas). Ficaríamos ainda privados desta jóia, mas ganharíamos alento para novas conquistas.

A P. elatior, que encontrámos nas Astúrias e na Cantábria, é mais frequente no norte de Espanha, ao longo dos Pirenéus e da cordilheira cantábrica; no resto da Península, só aparece na serra Nevada e, muito esporadicamente, em algumas serras do Sistema Central ibérico (Gredos e Guadarrama). As suas flores são pálidas como as da P. acaulis e surgem agrupadas na extremidade de hastes erectas como na P. veris; as suas folhas muito rugosas, reunidas em roseta basal, são também uma média entre as folhas das duas outras espécies. É natural que se levante a suspeita: será a P. elatior, não uma verdadeira espécie, mas um híbrido da P. verna com a P. acaulis? A resposta é negativa, pois o híbrido entre as duas ocorre naturalmente, acompanhado pelos seus progenitores, em grande parte da Europa; e, como podemos confirmar nesta página, não tem a cara da P. elatior, embora faça lembrar. As flores são mais pequenas, exibem manchas escuras na base das pétalas, e não estão todas viradas para o mesmo lado como sucede na P. elatior; além disso, os cálices são claramente diferentes (compare com a 3.ª foto acima) e as hastes florais mais curtas.

13/12/2017

Flores vorazes



Pinguicula grandiflora Lam.


As plantas do género Pinguicula vivem em geral em solos pobres, complementando a dieta com o que de nutritivo vá caindo nas suas folhas rígidas e suculentas. Alguns insectos, julgando ver gotas de água nas glândulas espalhadas na superfície das folhas, aproximam-se delas, descobrindo tarde de mais que a água é afinal uma cola que os aprisiona sem redenção. Uma vez agarrada a presa, as folhas recurvam as margens formando uma taça, e um segundo tipo de glândulas segrega enzimas que digerem o que a planta finalmente absorverá através de minúsculos orifícios. Neste processo, também as folhas se deterioram, mas a planta faz nascer outras sem demora. Para que os polinizadores não sejam comidos por engano, as flores são solitárias e surgem no topo de hastes altas com corolas bastante vistosas. Nunca fiando, as da P. grandiflora são também grandes, as maiores que já vimos neste género, ainda que parecidas com as da P. vulgaris.

Há um outro pormenor que só dissecando uma flor se conseguiria ver. Como já notou pelas fotos, a flor é tubular, com dois lóbulos e um esporão contendo umas gotinhas de néctar. Os estames com o pólen estão escondidos no tubo, e um estigma de duas faces cobre-os como uma tampa. O arranjo é tal que, se uma abelha quiser lamber o néctar ou recolher o pólen, terá de se roçar na face exterior do estigma (a única polinizável), deixando lá o pólen que trouxe de outra flor; pelo contrário, a face adjacente ao pólen não é receptiva, o que impede a auto-fecundação.

Morando habitualmente junto a fontes de água, estas plantas adaptaram-se sabiamente às vantagens (muitos insectos esvoaçantes e incautos por perto) e aos riscos inerentes a uma tal vizinhança. Por exemplo, as cápsulas que guardam as inúmeras sementes podem manter-se fechadas caso haja demasiada humidade no ambiente, o que poderia arruinar as sementes ou impedi-las de se dispersarem pelo vento. Além disso, em algumas espécies as sementes nascem com coletes salva-vidas que lhes permite flutuarem se tombarem na água.

Como todos os prodígios, não há muitas espécies de Pinguicula. Das cerca de oitenta conhecidas (quase todas da América Central e do Sul), só uma dúzia é nativa da Europa, delas ocorrendo nove na Península Ibérica e apenas duas em Portugal.

05/12/2017

Saponária dos assobios


Saponaria ocymoides L.


A grande vantagem de planearmos os passeios ao milímetro é podermo-nos desviar vários quilómetros da rota traçada. Se o improviso correr mal, se aquele desvio que por impulso fazemos afinal não se revelar compensador, podemos sempre retroceder e conformarmo-nos com o que estava previsto. O planeado é apenas a rede de segurança, um último recurso para que o passeio valha a pena. Mesmo nesta época dos satélites, do Google Earth e do GPS, os caminhos só se conhecem caminhando, e muitos vezes, quando pisamos o local que antevíramos nas imagens aéreas, percebemos que o melhor de dois caminhos é aquele que não tínhamos mapeado.

Em Maio, na nossa semana de vagabundagem pela cordilheira cantábrica, quisemos visitar a cascata de Las Pisas, em Soncillo, na província de Burgos. O trilho até lá, embrenhando-se por um bosque cerrado, era difícil de adivinhar pelas imagens aéreas, mas pareceu-nos que partiria de Villabascónes, um povoado com cinco ou seis casas convertido ao turismo de habitação. Erro nosso, como poderíamos ter verificado pelo mapa geográfico de Espanha (disponível aqui). Seguimos teimosamente o caminho errado, esperando que ele, dando-se conta do equívoco, guinasse à esquerda e se dirigisse para a cascata. Quando compreendemos que nunca chegaríamos a ela, já tínhamos sido seduzidos pelo ribeiro (arroyo Saúl, informa o mapa) que o caminho insistia em acompanhar, e tornara-se-nos tão impossível retroceder como a um marinheiro arrastado pelo canto da sereia. Havia faias, freixos, amieiros e... tílias, uma novidade para quem, como nós, só as conhecia domesticadas em jardins. Ervas-pombinhas (Aquilegia vulgaris) e madressilvas (Lonicera sp.) acrescentavam azul e amarelo à exuberância do verde; e, nos pontos onde o caminho se afastava do leito encaixado do ribeiro, deu-se o nosso feliz reencontro com o raríssimo (em Portugal) Aphyllanthes monspeliensis, que se empoleirava nos taludes soalheiros.

A certa altura o caminho cruzava um viaduto e desembocava numa estrada, seguindo o exemplo do ribeiro que, no mesmo ponto, desaguava num rio de caudal já respeitável (rio Nela, afluente do Ebro). Quebrara-se o feitiço e já podíamos inverter a marcha. Logo antes do viaduto, atrás do portão de uma casa decrépita, um cão triste ladrava para justificar a existência. Fingindo ir embora, esperámos que ele se calasse para ir, em bicos de pés, fotografar uma planta de flores cor-de-rosa, parecida com um assobio (assim chamamos nós às Silenes), que crescia num muro.

Dar nome à suposta Silene revelou-se intrincado, e o problema só se resolveu quando concluímos que não se tratava de uma Silene. Se fôssemos botânicos conscienciosos (mas nem botânicos somos), uma inspecção à lupa revelaria que a planta tinha apenas dois estigmas em cada flor, enquanto que as do género Silene têm três (ou raramente cinco) — fotos aqui e aqui. Sendo nós irremediavelmente descuidados, acabámos por nem registar esse detalhe crucial nas fotos. Como iríamos adivinhar estar em presença de uma prima da Saponaria officinalis? Uma planta peluda, de múltiplos caules decumbentes, agarrada a um muro, de flores diminutas: eis um retrato em tudo contrastante com o da erva-saboeira, que é glabra, tem caules erectos, flores e folhas grandes, e cresce em terrenos húmidos.

Em Espanha ocorrem cinco espécies de Saponaria, quatro delas ausentes de Portugal. Vendo-lhes as caras (espreite ao fundo desta página), concluímos que a Saponaria ocymoides, acima ilustrada, se integra bem no conjunto, e que quem mais destoa é a S. officinalis. A S. ocymoides ocorre em grande parte da Europa mediterrânica, desde os Balcãs até Espanha. É uma planta perene de 30 a 50 cm de altura, de base lenhosa nos exemplares mais idosos, que por vezes se apresenta com os caules muito emaranhados. O epíteto ocymoides refere-se à (hipotética) semelhança da planta com o manjericão (Ocimum basilicum).