28/10/2018

Amarelo de Inverno



A costa noroeste de Tenerife é uma paisagem vulcânica e árida, exposta ao sol e a longos períodos de secura. Mas não é um deserto: em recantos mais abrigados, cobre-a um mato rasteiro, moldado pelos reveses num lugar tão inóspito. Sem chuva que as livre das elevadas concentrações de sal, as plantas deste ecossistema têm mecanismos eficientes de recolha de água pura do solo salgado e arenoso mas humedecido. Aí dominam as eufórbias, acompanhadas por um número em geral restrito de outras espécies.



Neochamaelea pulverulenta (Vent.) Erdtman [sinónimo: Cneorum pulverulentum Vent.]
A lenha-santa (tradução para o espanhol do nome dado pelos nativos das ilhas, que a terão usado em rituais fúnebres ou pelo seu valor medicinal) é um arbusto de ramagem densa, com folhas acinzentadas e protegidas da insolação por uma camada aveludada de pêlos, que também inibe a evaporação da água. As flores nascem durante o Inverno aninhadas entre as folhas jovens, na ponta dos ramos. Os frutos vistosos, de cor rubra, parecem os das eufórbias e são apreciados por lagartos que, comendo-os, os disseminam.



Também chamada oliveira-tabaiba (tradução livre do nome inglês, spurge olive), a N. pulverulenta é um endemismo das ilhas Canárias, frequente na Grã Canaria e em Tenerife mas ausente de Fuerteventura, Lanzarote e La Palma. É a única espécie do género Neochamaelea, designação proposta em 1952 por O. G. Erdtman. Alguns botânicos, porém, entendem que a criação de um género para abrigar esta espécie é desnecessária: estudos recentes indicam que ela se inclui no género Cneorum, dando assim razão a E. P. Ventenat — que, em 1802, a descreveu como Cneorum pulverulentum. Sob qualquer destes sinónimos, é uma espécie protegida por lei devido à sua distribuição restrita num habitat em risco, alvo da concorrência de espécies não autóctones mais resistentes.

20/10/2018

Orquídea dos três dedos


Habenaria tridactylites Lindl.


À medida que nos aproximamos dos trópicos, esbatem-se as diferenças entre as estações do ano. É verdade que, com as alterações climáticas, também nos climas temperados se assiste à descaracterização das estações intermédias — um exemplo eloquente é este Outono de 2018 que tarda em descolar do Verão. No entanto, as plantas que durante muitos milhares de anos evoluíram num certo clima continuam para já a comportar-se como se nada tivesse mudado. Mesmo com o tempo meteorológico às avessas, elas obedecem ao calendário para que foram programadas: há muitas mais flores na Primavera do que no Outono, e é na Primavera que as árvores ganham folhas novas, deixando-as cair no Outono. É assim na Europa continental, mas não nos arquipélagos da Macaronésia — onde, só para começo de conversa, não há árvores nativas caducifólias. Na Madeira são várias as plantas endémicas que florescem no Inverno, e nas Canárias ainda é maior o desrespeito pela convenção eurocêntrica que proíbe um Inverno florido. Em rigor, Inverno e Outono são, nessas ilhas, conceitos postiços.

Esta orquídea é uma das plantas que, nas Canárias, florescem nos meses que para nós são de Inverno; a semana entre o Natal e o Ano Novo é uma boa altura para a observar. Com duas únicas folhas basais, largas e achatadas, e uma haste esguia de 10 a 40 cm de altura sustentando umas tantas pequenas flores esverdeadas, não é das orquídeas mais vistosas, nem de cor mais apelativa. Pelas suas flores discretas e pelo aspecto geral, esta Habenaria tridactylites canarina faz aliás lembrar as orquídeas açorianas do género Platanthera. Tanto assim é que estas últimas foram inicialmente incluídas (em 1844, por Maurice Seubert, na sua Flora Azorica) no género Habenaria, erro que só seria corrigido em 1920 por Schlechter. Se atendermos aos detalhes, contudo, a orquídea das Canárias é bem diferente das açorianas: não possui folhas caulinares, e as flores, que estão dispostas de forma menos densa, têm o labelo dividido em três segmentos lineares que se assemelham a dedos longos e finos (daí o epíteto tridactylites), além de apresentarem um esporão muito mais comprido.

Contando com sete orquídeas nativas, das quais apenas três são endémicas, as Canárias não são um destino prioritário para os orquidófilos: tanto em quantidade como em diversidade, qualquer ilha do Mediterrâneo, por pequena que seja, é incomparavelmente mais rica em orquídeas do que Tenerife — que é a maior das ilhas Canárias, nela ocorrendo todas as espécies de orquídeas presentes no arquipélago. Mas em Dezembro ou Janeiro não há, no Mediterrâneo ou na Europa continental, orquídeas silvestres para admirar, e um saltinho às Canárias para ver a Habenaria tridactylites é um modo de amenizar a espera. Acresce que o género Habenaria não está representado na flora europeia, o que significa que a orquídea-dos-três-dedos é totalmente diferente de qualquer orquídea que possamos encontrar na Europa. (Nisto a Europa faz figura triste, pois calcula-se que haja umas 840 espécies de Habenaria distribuídas por zonas tropicais e subtropicais de todo o mundo, 240 delas só em África.)

Foi à vista dos ilhéus de Anaga, na ponta nordeste de Tenerife, que encontrámos pela primeira vez esta orquídea. Mas vimo-la depois, às vezes em grupos de largas dezenas, em muitos outros lugares da ilha, sobretudo em clareiras de matos em zonas de média ou baixa altitude.

14/10/2018

Alecrim do mar

Apesar do turismo intenso na ilha durante todo o ano, a flora do litoral de Tenerife superou as nossas expectativas. Claro que ajuda à conservação da biodiversidade que as falésias à beira mar sejam íngremes, com ladeiras pedregosas e escorregadias, onde a aridez e o vento desaconselham as visitas e evitam o pisoteio. E que seja precisamente esse habitat, que nos parece tão inóspito, o que algumas das espécies mais bonitas preferem.


Campylanthus salsoloides (L.f.) Roth


O alecrim-do-mar (em espanhol, romero marino) é um endemismo das ilhas Canárias, presente em quase todas elas mas quase sempre em núcleos escassos. Há registo de duas variedades, uma de flores violeta-carmim (a mais frequente) e outra bastante rara de flores brancas, ambas com a base das pétalas claras e o interior do tubo amarelo. É um arbusto perene e lenhoso (diz-se que dos seus troncos secos se faziam outrora cachimbos), ramificado desde a base, com folhas cilíndricas e carnudas a lembrar as de algumas espécies do género Salsola. As suas flores agrupam-se em arranjos terminais, e o seu formato sugeriu a A. W. Roth (em 1821) o nome do género: Campylanthus provém dos termos gregos kampylos (encurvado) e anthos (flor), aludindo à curvatura do tubo floral (que se nota na 3ª foto) e às pétalas ligeiramente recurvadas para trás. Cerca de quarenta anos antes, o filho de Lineu designara esta espécie como Eranthemum salsoloides, de que se preservou o epíteto específico aquando da mudança de género.

Vimos estes exemplares em Dezembro de 2017, há muito passada a época oficial de floração desse ano (que, segundo as Floras, se prolonga de Janeiro a Julho). Mais um mês, e as inflorescências do ano seguinte mostrar-se-iam assim mais vistosas.

06/10/2018

Violeta de Anaga



Viola anagae Gilli


Anaga, no extremo oriental de Tenerife, feita de relevos abruptos e acidentados, cortada por (poucas) estradas todas em curvas e contra-curvas, suspensas em encostas vertiginosas, esconde uma floresta laurissilva que, embora menos húmida e luxuriante do que a da Madeira, não lhe fica nada atrás em riqueza botânica. É um mundo à parte que parece ter-se juntado por acidente à mesma ilha onde pontifca a paisagem lunar da montanha do Teide. Seguimos de carro pela crista arborizada, a 900 metros de altitude, com a floresta derramando-se pelas encostas, e acessível por caminhos partindo dos vários lugares onde era possível estacionar. Nesta latitude subtropical, mesmo em Dezembro havia flores na berma de estrada que nos obrigaram a sucessivas paragens: uma misteriosa Pericallis, um gerânio gigante, os sinos alaranjados da Canarina. Chegámos por fim ao ponto onde tinha início o trilho quase secreto (só o encontrámos à segunda tentativa) que, entre loureiros e urzes, e pontuado pelo nosso bem conhecido feto-do-botão e por algumas orquídeas temporãs, nos conduziria ao almejado pico Chinobre.

O nosso objectivo era encontrar a Viola anagae, uma violeta endémica de Tenerife que só existe nos bosques desta ponta da ilha. Ao longo do trilho, assim como no exacto lugar onde deixámos o carro, avistámos tapetes de folhas que pertenciam indubitavelmente a alguma violeta — mas, sendo eles tão extensos e numerosos, supusemos tratar-se de coisa banal como a Viola riviniana, comum em toda a Europa e igualmente presente nas Canárias. Mas as folhas anormalmente grandes e coriáceas, com as margens peculiarmente serradas, acabaram por despertar suspeitas que, alcançado o pico Chinobre, se converteram em certezas: aquilo era mesmo a Viola anagae, e ali no pico (mas não antes) havia meia dúzia de flores a comprová-lo. Aprendemos a lição: um endemismo muito restrito (a área total de distribuição da Viola anagae é talvez inferior a 3 km2) pode afinal ser abundante nos poucos nichos onde se acolhe.

A Viola anagae é uma planta rizomatosa, de longos caules rastejantes e folhagem perene, com flores pequenas (1,5 a 2 cm de diâmetro) mas de coloração distintiva. Não é a mais vistosa do seu género nas Canárias, mas dificilmente se confunde com qualquer outra Viola nativa do arquipélago. Sendo tão fácil de encontrar na laurissilva de Anaga, e sendo a flora canarina tão intensamente estudada pelo menos desde o século XIX, é um mistério que a espécie só em 1979 tenha sido reconhecida. Quem dela publicou a primeira descrição foi o botânico austríaco Alexander Gilli (1904-2007).