28/07/2015

Creme de cenoura



Daucus carota L. subsp. azoricus Franco



Com a globalização galopante, vão-se perdendo as marcas da identidade nacional. Qualquer dia os restaurantes portugueses só se distinguirão dos espanhóis por terem o menu traduzido em mau inglês e por os garçons se exprimirem, perante os estrangeiros, numa língua de circo a que caridosamente chamaríamos portunhol. Move-os (aos garçons) a ideia de que, seja qual for a nacionalidade dos clientes, eles os entenderão melhor se disserem pêzzcáda ou criémê de zênôra (palavras que não existem em língua nenhuma) em vez de pronunciarem correctamente pescada e creme de cenoura. O dito creme de cenoura, porém, configura um abastardamento dos costumes em comparação com o qual a questão linguística não passa de um fait divers. A tragédia é que os portugueses estão a deixar de comer sopa. Quando se senta à mesa em clima de festa uma família numerosa, a sopa é um castigo reservado às crianças. Talvez se julgue que ela faz bem até certa idade (13 ou 14 anos) mas para um adulto é sinal de fraqueza ingerir um caldo de legumes. E a sopa-enquanto-alimento-infantil deve previamente ser convertida em creme, não vá a dentição frágil quebrar-se ao mastigar um talo de couve mal cozida. Constatando que a sopa não tem saída ou, quando tem, só é servida depois de "passada", os restaurantes que ainda a incluem na ementa ficam-se pela versão "creme de legumes". E se é para desfazer os legumes, misturando-os indistintamente, escusado será usar uma grande variedade deles. Com isto chegamos ao malfadado creme de cenoura, que é a sopa à beira da extinção.

Cumprido o desabafo, aqui vai a primeira informação paracientífica do dia: o que há de mais estranho no creme de cenoura é a cor. É natural que o creme assuma a cor do ingrediente (neste caso a cenoura) que foi triturado para o produzir, mas o que já não é natural é que a cenoura tenha a cor que tem. Aquilo que consumimos sob o nome de cenoura é a raiz intumescida de uma umbelífera, Daucus carota subsp. sativus. Acontece que os antepassados silvestres dessa planta têm raízes brancas ou amareladas, e a versão cor-de-laranja a que estamos habituados só surgiu no século XVII, provavelmente na Holanda. Nos países com um mercado gourmet mais diversificado, encontram-se ainda à venda essas cenouras pálidas que, parecendo curiosidades, são afinal menos artificiais do que as cenouras comuns. Creme de cenoura branco? Seria uma novidade, mesmo que não fosse menos insípido.

A versão silvestre da cenoura tem em geral raízes minguadas e pouco comestíveis (são-no apenas quando muito tenras) — caso contrário, sendo ela tão abundante por toda a Europa e também na Ásia, nunca teria havido necessidade de a domesticar. Para os botânicos, a variabilidade da espécie Daucus carota é motivo de estudo, discussão e controvérsia. A Flora Ibérica considera existirem na Península oito subespécies de cenoura silvestre, mas o critério usado nessa divisão não é universalmente aceite e, ao desvalorizar como subespécie um endemismo lusitano distintivo como o Daucus halophilus, não parece isento de pendor nacionalista. Não menos discutível será a subordinação da subespécie maritimus, formada por plantas quase glabras, débeis, de umbelas pequenas, à subespécie carota, que integra plantas mais hirsutas e espigadas, de umbelas maiores. A única vantagem da simplificação proposta pela Flora Ibérica é que a cenoura que vemos em quase em todo o continente pertence à subespécie carota, tendo as outras três subespécies por cá assinaladas uma presença muito pontual. Mas se dermos dois passos do lado de lá da fronteira já tudo se complica.

E nos Açores? Graças à circunstância de a Flora Ibérica não se ter ocupado das ilhas, ainda hoje ocorrem oficialmente duas subespécies de Daucus carota no arquipélago. A mais comum das duas, ilustrada nas fotos, é tida como endemismo açoriano, ocupando em todas as ilhas habitats muito diversos desde falésias costeiras até terrenos baldios, pastagens e bermas de estrada. A segunda, presente apenas em quatro ilhas (São Miguel, Graciosa, São Jorge e Faial), é a subespécie maritimus. Há uma clara diferença de tamanho entre as duas subespécies, com a subespécie azoricus a vencer por larga margem, e há diferenças também na pilosidade e no formato das folhas: na subespécie azoricus os segmentos de última ordem das folhas são curtos e arredondados (4.ª foto), enquanto que na subespécie maritimus são longos e estreitos, quase lineares. Talvez estas diferenças não passassem no crivo de quem gosta de amalgamar coisas díspares, mas enquanto isso não sucede este Daucus carota subsp. azoricus vai segurando o seu incerto galardão de endemismo açoriano.

26/07/2015

Flor-aranha

Ao contrário de nós, que podemos viver por várias dezenas de anos e ultrapassar inúmeras estações, morrendo por doença, velhice ou acidente sem saber previamente quando, algumas plantas têm o poder de decidir por quanto tempo querem existir. As espécies anuais têm um único ciclo de vida, igual para todas as plantas dessa espécie, que pode durar umas poucas semanas ou alguns meses, e que se resume a desenvolver raízes, talos, folhas, flores e sementes; uma vez terminadas estas tarefas, a planta morre. O que implica que, durante meses, estas espécies não existem no planeta, restando delas apenas sementes, se as conseguirem produzir. Correndo tudo bem, as sementes dormem até uma altura oportuna do ano, momento em que se inicia a geração de novas plantas.

Esta estratégia de existência (que alguns descreveriam erradamente como live fast and die young), apagando-se e recomeçando quase do zero, é muito arriscada. Então por que optam algumas plantas por um tal esquema? Bem, pode não ser uma escolha mas resultado de condicionalismos que lhes são alheios, como a temperatura ou a quantidade de água e luz disponíveis no habitat. Não há, por agora, certezas sobre que processo leva à existência de plantas anuais. O que se sabe é que estas herbáceas têm de investir na reprodução, criando flores sofisticadas para atrair muitos polinizadores e gerando uma quantidade generosa de sementes fáceis de disseminar e com longo prazo de validade. É nestes pormenores que a planta gasta toda a sua energia, ao contrário das plantas perenes. Estas podem levar anos até dar a primeira flor, durante os quais se empenham em ganhar raízes fundas, gavinhas eficientes ou uma forma lenhosa; depois, resistentes, conseguem florir no ano antes de outras espécies e não ser tão exigentes com o tipo de solo, porque afinal têm bastantes nutrientes armazenados. Sem dúvida, desse modo garantem alguma superioridade na competição natural no seu habitat. Mas o regime anual não comporta só desvantagens. As plantas anuais são em geral mais versáteis, crescem mais depressa e têm flores ou folhas muito formosas. São, por isso, frequentemente usadas em jardins. Ou seja, têm nos apreciadores de jardins um aliado poderoso com que não contavam. Além disso, a reprodução por semente favorece a diversidade genética, o que, com uma produção abundante, protege as plantas anuais da extinção por mudanças bruscas e nocivas no ambiente. Finalmente, há a estação de clima mais agreste (seja o Inverno nas terras frias ou o Verão inclemente nas outras) com que as plantas anuais não têm de se preocupar. Pelo contrário, as perenes precisam muitas vezes de se auto-podar, como um barco que larga lastro para não se afundar, para se livrarem de folhas ou ramos que já não são eficientes na recolha de nutrientes ou estão a gastar numa estação recursos que serão essenciais no futuro a outras componentes da planta.



Cleome violacea L.


Por certo o leitor já adivinhou: as folhas trifoliadas, as flores púrpura e as vagens longas carregadas de sementes que hoje aqui mostramos são de uma herbácea anual. A distribuição global desta espécie restringe-se ao Norte de África e à Península Ibérica. Por cá, há registos da presença dela de norte a sul do continente. Em espanhol, chamam-lhe mostarda louca; os portugueses designam por flor-aranha as plantas do género Cleome. As folhas, com glândulas e pelinhos vários, foram o que primeiro conhecemos dela quando a vimos numa escarpa pedregosa de rocha ácida junto à ribeira da Foupana, em Alcoutim, no Algarve. Depois reencontrámo-las, também ainda jovens, num afloramento ultrabásico na margem esquerda do rio Sabor, em Mogadouro. Julgámos então que já não seria este ano que conheceríamos o resto da planta. Mas numa visita às margens do rio Mente, na fronteira de Chaves com Vinhais, vimos uma população com centenas de exemplares em flor, alguns com meio metro de altura.

Desconfiamos que o leitor já não nos está a prestar atenção, tendo ficado embevecido pelos detalhes violáceos, amarelos ou brancos que as fotos mostram. Esteja à vontade, demore-se quanto quiser, faça de conta que tem o seu tempo sob controle, como esta Cleome.

21/07/2015

Falésia dourada



Festuca petraea Seub.



Nos Açores, é em Junho que nas falésias brilha o amarelo do bracel contra o fundo negro das rochas, o azul do mar e a espuma branca das ondas. Nos outros meses estão lá os mesmos ingredientes, mas o dourado converteu-se em verde ou degenerou num castanho de palha ressequida. Não são só o negrume e a porosidade das rochas vulcânicas que diferenciam as escarpas insulares das do continente: esta gramínea sacudida pelos ventos salgados, tão comum nos Açores, é destas ilhas e de mais sítio nenhum no mundo. Mesmo que os visitantes que se passeiam à beira-mar não se apercebam disso, têm ali o que tantas vezes não têm nos lugares que são cartaz turístico do arquipélago: uma amostra genuína do antigo coberto vegetal das ilhas, anterior à ocupação humana. Com jeito, podem enquadrar nas suas fotos imagens que os primeiros povoadores facilmente reconheceriam.

As gramíneas, pese embora a sua importância crucial na nossa alimentação, não são plantas que entusiasmem muito o comum botânico amador. É verdade que têm flores, mas elas, não tendo a função de atrair polinizadores, são em geral pouco vistosas. Para aprender a distinguir gramíneas, há que estudar chaves de identificação repletas de termos especializados e estar atento a pormenores subtis como o número de estrias em cada folha, o seu ponto de inserção no caule, as glumas que protegem os florículos, a forma e o comprimento das anteras. O género Festuca é dos mais complexos da família, com mais de 400 espécies distribuídas por todos os continentes à excepção da Antárctida. As festucas são plantas perenes que formam tufos de folhas finas, muitas vezes azuladas; várias delas (com destaque para a europeia Festuca glauca) são usadas em jardinagem para fornecer contraste com plantas mais coloridas ou como alternativa aos tristonhos relvados. Esta Festuca petraea açoriana, ou bracel-da-rocha, parece fácil de reconhecer pelo habitat e pelo aspecto geral, mas há que ter cautela. O habitat costeiro é um dado importante, pois há nos Açores outra Festuca endémica (F. francoi, conhecida como bracel-do-mato), que prefere rochas e taludes enevoados no interior das ilhas. Nas Flores, onde o excesso de pluviosidade faz com que os dois habitats tenham uma extensa sobreposição, acaba por ser incerto, em muitos lugares situados a altitudes intermédias (entre os 100 e os 300 m), qual das duas espécies estamos a observar, a menos que tenhamos a lição bem estudada.

A Festuca petraea foi uma das espécies descritas por Moritz August Seubert na sua pioneira Flora Azorica (1844). Por contraste, a Festuca francoi teve que esperar até 2008 para ser reconhecida como endemismo açoriano: foi nesse ano que, em artigo publicado no Botanical Journal of the Linnean Society, os botânicos J. A. Fernández Prieto, Carlos Aguiar, Eduardo Dias e M. Isabel Gutiérrez Villarías mostraram que a espécie açoriana era diferente, em especial na morfologia foliar (caráctar decisivo para destrinçar as espécies do género), da madeirense F. jubata, com a qual até então tinha sido confundida. Porque a flora madeirense sempre foi a mais bem conhecida das duas, outros casos houve (Angelica lignescens, Lotus azoricus, etc.) em que as espécies açorianas foram erradamente assimiladas a espécies madeirenses. Ainda hoje há equívocos semelhantes por desfazer: é duvidoso que os Ranunculus cortusifolius açorianos e madeirenses pertençam à mesma espécie (os dos Açores são bem mais robustos), e acumulam-se indícios de que o nome Tolpis succulenta designa indevidamente duas espécies distintas, uma endémica dos Açores e outra da Madeira.

18/07/2015

Saúde com árvores


Sorbus latifolia (Lam.) Pers. — Parque da Saúde, Guarda


Entre as muitas criações humanas, há uma que distingue povos e eras pelo modo inventivo como é interpretada e pela evolução que a tem vindo a moldar: trata-se da estrutura arquitectónica, urbanística e paisagística a que chamamos «cidade», guardiã de uma vivência colectiva inestimável. Opõe-se ao «campo», também artificial, essencialmente por ter quase todo o solo impermeabilizado em vez de terrenos de cultivo, bosques ou matos. Todavia, mesmo nas cidades há recantos que a vegetação espontânea consegue colonizar, sejam eles cemitérios, parques, envolventes ajardinadas de escolas ou taludes de estrada, embora a biodiversidade seja pequena. Dirão que tem de ser assim, que é o preço que o uso dos lugares e o conforto que apreciamos comportam, mas a verdade é que algumas cidades (inglesas, mas não só) mostram que a incompatibilidade entre a vida urbana e a vida silvestre pode não ser tão grande como se imagina. Entre nós, parte da culpa da desertificação dos nossos habitats é da limpeza excessiva, com roçadeiras mas também (o que é muito pior) com herbicidas, dos relvados, jardins, parques ou margens de ribeiros que os municípios não entubaram. A pedido, os agentes dessa limpeza podem (raramente) poupar a vegetação de umas poucas manchas, mas têm de as rodear de uma sebe elegante para que não haja queixas pelo aparente desleixo. É que, para muitos, vegetação espontânea é ainda sinónimo de erva daninha, e o que é valioso num jardim ou parque citadino é a planta dita ornamental, de preferência vinda do estrangeiro.

Mas há excepções, e são elas que merecem atenção. Quando entramos no Parque da Saúde da Guarda (classificado como “conjunto de interesse público” no ano passado), somos recebidos por um bosquete denso e tranquilo de sequóias (Sequoiadendron giganteum) cuja penumbra mal permite a sobrevivência de umas poucas herbáceas rasteiras, mantidas com saúde pelos zeladores do Parque. Os edifícios, de 1907, onde funcionou um sanatório para tratamento de doentes com tuberculose, têm janelas altas, varandas com vista ampla para as montanhas e gradeamentos primorosos. Em volta, persistem caminhos por bosques frondosos, assentos para o descanso de quem ali convalesce, e alegres pipilares de muita passarada. Mais acima, há uma zona rochosa onde viceja vegetação da serra. Estranha-se tanto verde: não é este o modelo mais recente de hospital, com fachadas em esquadria, gigantescos parques de estacionamento, entradas de hotel, corredores sem luz directa a cheirar a cloro, e umas magras floreiras onde a natureza domada parece feita de plástico.

É precisamente nessa elevação granítica, num pinhal ralo, que moram alguns exemplares de Sorbus latifolia. Esta é uma árvore caducifólia que aprecia bosques frescos, soutos e principalmente carvalhais, em zonas de montanha perto de linhas de água. Entre os exemplares que vimos no Parque da Guarda, um é uma árvore adulta de copa bonita e os outros têm ainda porte arbustivo. Em Junho, estavam todos profusamente enfeitados com corimbos densos de flores brancas pequeninas, com cálice e pedicelo forrados por lã branca. O fruto é um pomo alaranjado que parece uma pêra anã. As folhas são simples, arredondadas, de margens duplamente serradas, com lóbulos triangulares pouco profundos separados por indentações mais vincadas e face inferior penugenta de cor cinza. Estas características das folhas lembram outras espécies de Sorbus, e crê-se que a S. latifolia resulte de uma hibridação da S. torminalis com a S. aria (que nunca vimos).

Esta Sorbus é nativa da metade norte da Península Ibérica, centro e sul da Europa. Por cá a distribuição é preocupante, pois só parece ocorrer no centro-leste do país, e no portal Flora-On são ainda poucos os registos. Consta também do catálogo das espécies ameaçadas em alguns locais da Europa.

14/07/2015

Línguas viperinas nos Açores

Ophioglossum azoricum C. Presl

Pela sua raridade e dificuldade de detecção, as línguas-de-cobra — ou, se quisermos, os fetos do género Ophioglossum — são dos melhores pretextos botânicos para brincar à caça ao tesouro. Talvez os cépticos considerem exagerado chamar tesouro a uma planta tão discreta e de tão escasso efeito ornamental, mas a beleza não é uma condição objectiva: é a soma do que vemos com o que sabemos, e depende do valor de mercado atribuído pela comunidade de apreciadores. Mesmo que uma busca bem sucedida não se traduza na posse efectiva da raridade (colher uma planta como esta seria um acto gratuito de destruição), mas apenas em meia dúzia de imagens comprovativas do achado, devemos admitir que não somos imunes à cobiça do coleccionador nem ao espírito de competição.

Depois de termos mostrado as línguas-de-cobra maior e menor, faltava-nos a lingua-de-cobra intermédia. Terceira espécie de Ophioglossum presente em território português, o Ophioglossum azoricum configura, pelas suas dimensões, uma média aritmética quase perfeita dos seus congéneres. Ou talvez seja mais apropriado falar de média geométrica: a sua folha (ou fronde estéril, se quisermos ser pedantes), que terá uns 4 cm de comprimento (às vezes bastante menos, outras vezes mais), é pelo menos duas vezes maior do que a do O. lusitanicum, mas tem por seu turno cerca de metade do tamanho da do O. vulgatum. E, nesta sequência crescente de línguas-de-cobra, as folhas não vão apenas ficando mais compridas mas também proporcionalmente mais largas. Igualmente se registam diferenças na temporada em que cada uma delas escolhe ficar visível. O O. lusitanicum prefere o Inverno, surgindo com as primeiras chuvas de Outono; raramente se deixa ver depois de Fevereiro ou Março. Já o O. azoricum e o O. vulgatum optam por esperar pela Primavera, podendo persistir até Junho ou Julho. Quanto à ecologia, os três Ophioglossum preferem sítios mais ou menos húmidos, mas o tamanho impõe as suas exigências: o O. vulgatum dá-se bem em prados altos ou até lameiros, no meio de outras plantas amigas da frescura; para o O. lusitanicum, mais versátil, basta-lhe uma rala cobertura de musgo sobre uma rocha para se sentir em casa.

Dizem os entendidos que O. azoricum é uma espécie poliplóide gerada pelo cruzamento do O. vulgatum com o O. lusitanicum, e na verdade todos os indícios visíveis são a favor de uma origem híbrida. Herdou portanto de cada um dos seus progenitores um completo conjunto de cromossomas. O género Ophioglossum detém o recorde conhecido do ser vivo à face da Terra com maior número cromossómico, cabendo o título ao tropical O. reticulatum, com 1260 cromossomas. As fontes consultadas não são unânimes, mas o O. azoricum ostenta um honroso número de cromossomas, algures entre os 480 e os 720. Por comparação, a espécie humana tem apenas 46.

O número cromossómico não é uma medida fiável da complexidade de um organismo nem do seu grau de inteligência, caso contrário os Ophioglossum estariam a caminho de dominar o mundo. Muito pelo contrário, em Portugal parecem em vias de desaparecer. A excepção é o O. lusitanicum: pelo seu porte diminuto deveria ser o mais difícil de encontrar, mas vai aparecendo aqui e ali de norte a sul do país e também nas ilhas. Por contraste, as observações dos outros dois registadas no portal Flora On contam-se pelos dedos de uma só mão. Já que, apesar das ajudas, não conseguimos observar o O. azoricum em Portugal continental, pareceu-nos adequado procurá-lo nos Açores. O epíteto não significa que ele só se encontre nessas ilhas ou nelas seja especialmente abundante, e de facto nem uma coisa nem outra são verdadeiras: está distribuído por grande parte do centro e oeste da Europa, e nos Açores só existe, que se saiba, em cinco ilhas (Santa Maria, Terceira, Faial, Flores e Corvo). Acontece apenas que os exemplares que serviram de base à descrição original da espécie (pelo botânico checo Carl B. Presl, na sua obra Supplementum Tentaminis Pteridographiae, datada de Dezembro de 1844) foram colhidos nos Açores, e mais exactamente na Terceira, pelo nosso bem conhecido Karl Hochstetter.

Foi nas Flores que concentrámos as nossas buscas, e foi sobre uma falésia debruçada sobre a costa ocidental da ilha mais ocidental da Europa que finalmente vimos o O. azoricum, já com as hastes dos esporângios (as tais línguas viperinas) amadurecidas e tingidas de amarelo. Morava num rego entre duas pastagens, porventura a salvo da voracidade das muitas vacas, ovelhas e cabras que são as verdadeiras donas da ilha. O leitor com visão mais apurada pode tentar descobri-lo na foto em baixo.

11/07/2015

Feto orelhudo

Asplenium auritum Sw.

O estudo da flora açoriana atravessa um período de grande animação: há endemismos que deixam de o ser (um exemplo é a "Marsilea azorica" — que, sabe-se hoje, é na verdade a M. hirsuta e tem origem australiana), outros que não o eram mas passam a sê-lo (como o Centaurium scilloides e o Solidago azorica, antes chamado Solidago sempervirens), e outros ainda que, mantendo-se como endemismos do arquipélago, vêem a sua posição taxonómica alterada (como o Polypodium azoricum, cujo nome correcto é agora P. macaronesicum subsp. azoricum). Das recentes novidades taxonómicas, a que mais nos entusiasmou é a que vem proposta no artigo A revision of the genus Leontodon (Asteraceae) in the Azores based on morphological and molecular evidence, da autoria, entre outros, de Mónica Moura & Luís Silva, publicado em Maio de 2015 na revista Phytotaxa. Concluem os autores que são três e não duas as espécies de patalugo (como são popularmente conhecidos os Leontodon açorianos) endémicas dos Açores, e que elas se distribuem com uma lógica inatacável pelos três grupos do arquipélago: o patalugo-maior (Leontodon filii) é exclusivo do grupo central, mas o patalugo-menor, que se diferencia por ter uma inflorescência em umbela com um número muito grande de capítulos, teve de ser desdobrado em duas espécies, já que as plantas de São Miguel são morfológica e geneticamente distintas das do grupo ocidental (Flores & Corvo). Estas últimas pertencem agora à espécie Leontodon hochstetteri M. Moura & L. Silva, ficando o Leontodon rigens a constituir um endemismo de uma única ilha, a de São Miguel.

Os fetos, que são parte tão importante da flora açoriana, trazem-nos aquela que é de todas a melhor notícia, ilustrada pelas fotos que encabeçam o texto. Não se trata de uma mudança de estatuto ou de dar novo nome a algo já conhecido, mas sim de uma descoberta genuína. O Asplenium auritum existe numa única localidade da ilha das Flores e, assim o defendem os autores do artigo em que a novidade é reportada [Asplenium auritum Sw. sensu lato (Aspleniaceae: Pteridophyta) — an overlooked neotropical fern native to the Azores, F.J. Rumsey, H. Schaefer & M. Carine, Fern Gazette 19(7), 2014], é nativo do arquipélago. Ainda que até 2008 ninguém tenha dado por ele ou notado a sua peculiaridade, o herbário do Museu de História Natural, em Londres, guarda exemplares deste feto colhidos nas Flores em duas ocasiões (em 1857 por Henri Drouet, e em 1967 por C. M. Ward) mas erradamente identificados. A parte menos boa da história é que a população do Asplenium auritum nas Flores é muito reduzida, não excedendo os 50 indivíduos. Vive sobre velhos muros ladeando caminhos rurais por entre antigos campos de cultivo, hoje em dia completamente invadidos pela árvore-do-incenso (Pittosporum undulatum). Não o incomoda a densíssima sombra fornecida por esse bosque adulterado, mas a sua condenação parece certa se alguém se lembrar de recuperar os caminhos ou de desbastar a vegetação.

Para quem se habituou a observar fetos, o Asplenium auritum é bastante distintivo, embora seja inegável a sua semelhança geral com o A. bilottii e o A. onopteris, ambos presentes e relativamente comuns no arquipélago. No entanto, as frondes do Asplenium auritum são menos divididas e, ao contrário das do A. bilottii, têm um formato distintamente triangular; além disso, as pinas inferiores exibem aurículas que estão ausentes nas outras duas espécies.

O Asplenium auritum apresenta duas grandes áreas de distribuição: a América tropical (incluindo Caraíbas) e parte da costa leste do continente africano (incluindo Zimbabwe, Moçambique, Congo e Madagáscar). Contudo, a sua variabilidade é muito grande e a taxonomia está mal resolvida: é provável que várias espécies diferentes tenham sido agrupadas sob esse nome, com as plantas açorianas a assemelharem-se mais às americanas do que às africanas. Não é porém de descartar, segundo os autores do artigo, que o (chamemos-lhe assim à falta de melhor nome) Asplenium auritum dos Açores seja uma espécie nova, resultando então num novo acrescento à cada vez mais numerosa lista de endemismos insulares. Em todo o caso, e isso reforça a importância da descoberta, é a primeira vez que o Asplenium auritum ou um seu parente próximo são detectados nos Açores, na Macaronésia ou até na Europa.


Fajã Grande, ilha das Flores

07/07/2015

Costa do dragão

Uma espécie diz-se um endemismo quando só há populações silvestres dela num local restrito do planeta. Se a área onde ocorre a planta não é assim tão diminuta, diz-se que é nativa dessa região (é inapropriado falar de "endemismos europeus" ou, pior ainda, de "endemismos euro-asiáticos"). Na prática, como se atestam estas propriedades? Actualmente, com os meios tecnológicos ao dispor da genética, é mais simples destrinçar espécies; além disso, reconhece-se que a criação de endemismos é favorecida por habitats biologicamente isolados, pela radiação adaptativa, pela hibridação ou pela poliploidia. E, portanto, os botânicos sabem onde procurar endemismos. Mas há um problema intrínseco à definição anterior: ser ou não endémico é um estado que evolui com o tempo. A análise de fósseis tem revelado que algumas plantas, hoje consideradas endemismos de ilhas ou desertos, tiveram em outras eras uma distribuição muito mais ampla, foram quase cosmopolitas. Porém, com as alterações geológicas e do clima, ou por outras causas desconhecidas, extinguiram-se em quase todos os habitats, e as parcas sobras recolheram-se aos seus nichos de conforto.


Dracaena draco (L.) L.
Vem este arrazoado a propósito do dragoeiro (Dracaena draco). Recordemos que é uma árvore perenifólia (e muito longeva: há referências — talvez exageradas — a dragoeiros com seis mil anos) que se reconhece facilmente pelas folhas cinza-verde-azuladas, embora avermelhadas na base, com formato de espada; ou pela ramagem que se arranja numa coroa de cabelinho espetado; ou ainda pelo um tronco peculiar, cilíndrico, rugoso e dividido em muitos caules, que se dispõem como varetas de um guarda-chuva. (Com estes dados, consegue o leitor detectá-lo nas próximas fotos?) As inflorescências são terminais e paniculadas, com flores verdes ou brancas que só surgem quando a planta tem 10 a 15 anos, e que regressam periodicamente com intervalos de igual duração — curiosamente, o tronco ramifica-se só quando se dá uma floração, o que permite estimar a idade dos espécimes com alguma fiabilidade. O fruto é uma baga pequenina, comestível e doce, da cor da toranja. Entre os séculos XV e XIX, os portugueses extraíram da resina do dragoeiro uma substância vermelha corante, de preço elevado, usada em tintas, vernizes e produtos farmacêuticos.



Em estado silvestre, o dragoeiro é, hoje, uma planta muito rara. Embora se cultive em jardins de Portugal continental há vários séculos (diz-se que foi de um jardim de Lisboa que Lineu obteve, pela mão do botânico Domenico Vandelli, o material que lhe permitiu descrever a espécie), e se tenha naturalizado rapidamente em muitos outros locais de clima quente (porque as suas bagas são alimento preferido de vários pássaros), o habitat natural do dragoeiro restringe-se a escarpas rochosas à beira-mar, frequentemente inacessíveis, e a algumas florestas de Pittosporum. Pois bem: vimos os dragoeiros das fotos na ilha das Flores, e sabe-se que ele ocupa lugares semelhantes no Faial, mas há dúvidas de que o dragoeiro seja nativo destas ilhas. Por exemplo, Amaral Franco não o inclui na sua Nova Flora de Portugal, que decerto pretendeu completa sobre a vegetação do continente e dos Açores.

Mas, afinal, o dragoeiro é um endemismo de que locais? Segundo G. Lopez González, em Los árboles y arbustos de la Península Ibérica e Islas Baleares, o fruto do dragoeiro terá chegado a uma das ilhas Canárias vindo de África (Marrocos ou Cabo Verde), transportado por aves. Ter-se-á daí disseminado para as demais ilhas das Canárias e para os outros arquipélagos da Macaronésia, ou seja, Açores e Madeira. E Carlos Aguiar revela aqui que a intersecção dos conjuntos de plantas com flor nativas dos arquipélagos de Cabo Verde, Canárias, Madeira e Açores se reduz a uma espécie, precisamente a Dracaena draco. Tendo em conta estas informações, e os testemunhos do médico alemão H. Muntzer (que, em 1494, reportou a existência de florestas de dragoeiros na costa do Faial) e do navegador italiano A. Cadamosto (que, em 1455, o descobriu na ilha de Porto Santo, onde hoje está extinto), é talvez de aceitar uma destas alternativas:

1. O dragoeiro é um endemismo do norte de África e da Macaronésia (onde se confinou depois de ter uma distribuição vasta na Europa e na região mediterrânica, por estas ilhas beneficiarem de um clima ameno que não sofreu variações drásticas ao longo das eras).

2. O dragoeiro é nativo de África, tendo-se naturalizado nas ilhas atlânticas da Macaronésia.

O que parece certo é não termos razões científicas para acreditar na seguinte versão defendida por várias Floras:

3. O dragoeiro é um endemismo das Canárias, Madeira, Cabo Verde e Marrocos.

Seria bem-vinda uma comparação genética dos dragoeiros açorianos (que vivem em ambiente muito chuvoso) com os dos outros habitats (alguns quase desérticos), para se esclarecerem estas dúvidas e se formar um juízo convincente. Antes disso, porém, precisamos de formar botânicos alpinistas.

04/07/2015

Salsa das vacas


Anthriscus sylvestris (L.) Hoffm.


Segundo algumas fontes, o nosso povo chamaria cicuta-dos-prados a esta herbácea. É um nome enganador para uma planta que, ao contrário da verdadeira cicuta, não é venenosa; e aliás, como sugere o nome inglês cow parsley, pode ocasionalmente ser empregue em culinária. Sendo ambas umbelíferas de porte elevado (a salsa-das-vacas atinge 1,5 metros de altura, a cicuta pode chegar aos 2 metros), que dão flores brancas e apresentam folhas tripinatissectas, é de facto grande o risco de serem confundidas por gente pouco versada em subtilezas morfológicas. Não seria com tranquilidade que consumiríamos uma refeição alegadamante condimentada com este Anthriscus, se ele tivesse sido colhido na natureza. O fraco uso que em Portugal se dá às ervas aromáticas espontâneas empobrece a nossa cozinha e é por isso de lamentar, mas podemos interpretá-lo como o instinto de defesa de quem se reconhece ignorante: é melhor não nos metermos com o que conhecemos mal, não vão as coisas dar para o torto. A mesma atitude de humilde abstinência preveniria os trágicos envenenamentos com cogumentos que ocorrem quase todos os anos.

Apesar de o Anthriscus sylvestris ser comestível, não é dos condimentos mais recomendados, havendo quem descreva o seu sabor como desagradável. Será bom talvez para vacas, mas para pessoas nem tanto. Anda longe de ter prestígio equiparável ao do seu congénere Antheriscus cerefolium: o cerefólio (em francês cerfeuil, em inglês chervil), amplamente cultivado em França, é um dos quatro componentes da mistura de ervas finas tão usada na culinária gaulesa (os outros são a salsa, o cebolinho e o estragão).

A salsa-das-vacas distribui-se por grande parte da Europa e da Ásia, e está ainda naturalizada na América do Norte, mas é pouco comum na região mediterrânica e também em Portugal, onde ocorre esporadicamente no centro e no interior norte. Quem conseguir encontrá-la nos nossos campos (ela floresce de Abril a Junho) pode, ainda assim, desejar experimentá-la nos seus cozinhados sem ter que correr risco de vida, e é para essas pessoas que aqui deixamos umas dicas breves. Notemos primeiro que a salsa-das-vacas apresenta caule hirsuto, desprovido de manchas e marcadamente estriado (ver 2.ª foto), enquanto que o caule da cicuta é glabro, comparativamento liso e com manchas púrpuras. Os frutos, se estiverem presentes, também ajudam na diferenciação: os da salsa-das-vacas são alongados (4.ª foto), os da cicuta (foto) quase esféricos. Finalmente, assinalemos as muito características brácteas pendentes (4.ª e 6.ª fotos) que a salsa-das-vacas exibe na base da cada uma das umbélulas (uma umbélula é cada um dos "cachos" de flores que constituem uma umbela; na 6.ª foto em cima vemos uma umbela composta por 8 umbélulas).