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12/09/2024

O veneno não mora aqui



As umbelíferas são plantas fáceis de reconhecer pelas umbelas floridas, que lembram guarda-chuvas, e pelas folhas miudamente recortadas, de formato mais ou menos triangular. Represen­tantes típicos da família, muitos usados em culinária, são a salsa, a cenoura e o funcho. Para que não se pense que todas estas plantas existem para nos gratificar o apetite, cumpre deixar o aviso de que muitas delas (e até algumas que se parecem superficialmente com a cenoura, como o embude e a cicuta) são mortalmente venenosas, pelo que a colheita de umbelíferas silvestres para fins culinários é totalmente desaconselhada.

Hoje falamos de duas umbelíferas que destoam vincadamente da família a que pertencem. Uma delas, Bupleurum fruticosum, recebeu em castelhano o nome de matabueyes, sugerindo que a sua ingestão é perigosa para o gado bovino. Ora essa acusação é de todo infundada, pois as plantas do género Bupleurum nada têm de tóxico e de algumas delas até se confeccionam medicamentos — que, como sucede com todos os fármacos, devem ser usados na dose indicada e tomando nota das contra-indicações. Contudo, não são conhecidos casos em que o consumo directo da planta (não das essências dela extraídas) provoque efeitos graves.

Bupleurum fruticosum L.


Não é na forma e disposição das flores, geralmente amarelas, que os bupleuros divergem das restantes umbelíferas. As folhas é que são novidade: em vez de divididas, são simples, lanceoladas e de margens inteiras; quase sempre apresentam uma venação longitudinal bem visível, mas por vezes, como no caso do B. fruticosum, a venação é reticulada. O porte destas plantas é muito variável: tanto o B. fruticosum (em cima) como o B. spinosum (em baixo) são arbustos, o primeiro de altura respeitável (pode superar os dois metros) e o segundo rasteiro (não excede os 40 cm), mas a maioria das espécies do populoso género Bupleurum — que abrange umas 150 espécies, todas menos uma no hemisfério norte — são herbáceas anuais ou perenes.

Bupleurum spinosum Gouan
[= Bupleurum fruticescens subsp. spinosum (Gouan) O. Bolòs & Vigo]


Entre os bupleuros há endemismos de distribuição restrita, como este português que há mais de vinte anos aguarda reconhecimento taxonómico. Em contraste, o Bupleurum fruticosum tem uma distribuição ampla dos dois lados da bacia mediterrânica, de Portugal até à Grécia, e de Marrocos até à Tunísia. Apesar de por duas ocasiões o termos visto no Algarve, onde é bastante comum, só em Granada o pudemos observar em flor. Menos viajado do que o seu congénere, o B. spinosum, que também fotografámos em Granada, consegue ainda assim fazer a ponte entre dois continentes, ocorrendo no sul de Espanha e no norte de África. É uma planta arbustiva que com a idade ganha o aspecto de uma almofada espinhosa, perfeitamente adaptada às condições áridas do seu habitat. Os espinhos, por sinal bem rígidos e aguçados, são na verdade as hastes secas das umbelas após a frutificação.

31/03/2024

Salsa caprina

Pimpinella dendrotragium Webb


Prosseguimos o nosso ciclo de plantas com aspecto familiarmente europeu mas que são endémicas das Canárias, um arquipélago geograficamente africano. Desta vez é uma salsa, que é como chamamos, preguiçosamente, às umbelíferas cuja folhagem faz lembrar a desse tão popular condimento culinário. Na planta acima ilustrada, as flores de cor branca já são aviso suficiente de que não se trata da verdadeira salsa, pois esta costuma dar flores amareladas. E é de todo desaconselhável colher folhas de presumíveis salsas silvestres com intenção de as consumirmos: as possiblidades de confusão são inúmeras, e algumas destas salsas fingidas são mortalmente venenosas.

Não são apenas os portugueses, tradicionalmente ignorantes em matéria de plantas silvestres, que confundem as salsas. Nas Canárias, todas as espécies endémicas do género Pimpinella, num total de cinco, são tratadas como perejil, que é o nome vulgar da salsa em castelhano. A Pimpinella dendrotragium, endémica de Tenerife e de La Palma, é conhecida como perejil cabruno, o que se traduz por salsa caprina. A menção à cabra vem do epíteto dendrotragium, que combina uma referência ao dito animal (em "tragium"), motivada talvez pelo odor da planta, com uma alusão (através do prefixo "dendro") ao carácter lenhoso dos exemplares idosos.

Distribuídas pela Europa, Ásia e África, há no mundo inteiro cerca de 150 espécies de Pimpinella. Ao contrário da verdadeira salsa, que é folharuda de alto a baixo, a folhagem das pimpinelas costuma concentrar-se na base das plantas. E é atendendo ao recorte e ao número de divisões das folhas basais que é possível, sem dificuldade, distinguir as diferentes espécies do género nas Canárias (na verdade, só em Tenerife, onde ocorrem quatro espécies, é que essa distinção é menos imediata). Das cinco espécies em questão, só a Pimpinella dendrotragium e a Pimpinella cumbrae têm folhas basais simplesmente pinadas; as restantes têm-nas bipinadas ou tripinadas. E, para destrinçarmos estas duas espécies, basta notar que, contrastando com a folhagem verde da P. dendrotragium, as folhas da P. cumbrae são glaucas e apresentam um recorte muito mais regular (veja esta foto). E há a questão da ecologia: como o próprio nome sugere, a P. cumbrae está restrita às maiores altitudes (de 2000 metros para cima) das ilhas onde ocorre, que são Tenerife e La Palma. A P. dendrotragium, que fotografámos nos pinhais de La Cumbrecita, em La Palma, onde a espécie é moderamente frequente, vive entre os 400 e os 1400 metros de altitude.

28/08/2023

Cenouras na praia

É curioso o talento da linguagem para descrever em detalhe o que é pequeno. Tarefa exagerada, dirão alguns, essa que valoriza o que há de menos. Contudo, nem tudo o que é pequeno o é pelas mesmas razões, e as etiquetas podem combinar-se para realçar a diversidade no mundo das coisas diminutas. Em latim, usado frequentemente em taxonomia para os epítetos específicos, pequeno pode dizer-se de muitas maneiras: minutus, parvus, exiguus, brevis, pusillum, humilis, lenonius, exilis, improcerus, vegrandis, pumilus, minusculus.

Pseudorlaya minuscula (Pau) M. Laínz


Às plantas das duas espécies conhecidas do género Pseudorlaya (P. minuscula e P. pumila) assenta bem qualquer um destes adjectivos, pois são rasteiras e os seus talos não ultrapassam em geral os 10 cm de comprimento. O problema é que estes dois nomes idênticos não permitem distinguir estas umbelíferas: dizem apenas que são ambas de estatura reduzida, semelhantes às espécies do género Orlaya. Recorrendo ao volume apropriado da Flora Iberica, porém, podemos resumir deste modo as diferenças essenciais: a P. pumila tem frutos um pouco maiores, com espinhos de tamanhos distintos; a P. pumila restringe-se ao litoral a sul do Tejo, tendo a P. minuscula uma distribuição mais vasta.

A P. minuscula é uma herbácea anual, ramificada na base. A umbela de flores é compacta, com 6 a 10 flores, das quais cerca de metade são hermafroditas e as restantes funcionalmente masculinas. Note-se como toda a planta está coberta de pêlos duros, que decerto a protegem do vento que a fustiga com areia, além de reduzirem a exposição solar e permitirem captar a água produzida pela condensação da neblina costeira.

Há registo desta herbácea apenas na Península Ibérica e em Marrocos. Os exemplares das fotos são de uma praia em Esposende, do bordo de um caminho numa duna primária muito erodida, perto de uma população numerosa do raro Phleum arenarium. Por ser minúscula, é difícil de encontrar; se o leitor quiser procurá-la, o melhor é fazê-lo em dunas menos perturbadas, e onde a competição com outras plantas seja reduzida.

01/06/2022

Erva-negra

Bupleurum semicompositum L.


Viajar para encontrar o mesmo é a sina de todos nós na era da globalização: as mesmas vozes nos altifalantes dos aeroportos, as mesmas cadeias de restaurantes e cafetarias, os mesmos supermercados com iguais produtos nas prateleiras, o mesmo mar desenrolando as ondas em areais onde preguiçam banhistas indiferenciados, as mesmas palmeiras namorando um pôr-do-sol de postal ilustrado em idênticas esplanadas à beira-mar. E até as plantas, se não nos esforçarmos por romper a barreira da mesmice, se repetem com imperturbável desprezo pelas variações de latitude e longitude. Há plantas que são invasoras globais (como a Lantana camara), outras que se fizeram cosmopolitas pela predilecção que têm por lugares humanizados (como o rícino [Ricinus communis], a beldroega [Portulaca oleracea] e a erva-azeda [Oxalis corniculata]), e outras ainda que, tidas como bonitas e fáceis de propagar, são usadas por jardineiros indolentes em todos os cantos do mundo (como as hortênsias, os agapantos e as estrelícias). A uma quarta categoria, mais simpática, pertencem aquelas plantas que lograram alcançar ampla distribuição sem a nossa ajuda. Uma das campeãs indiscutíveis é a avenca [Adiantum capillus-veneris], nativa de climas temperados, subtropicais ou tropicais em todos os continentes habitados.

O género Bupleurum — que é atípico dentro da família das umbelíferas pelas suas folhas simples, lanceoladas — não tem grande vocação para cosmopolitismos: integra centena e meia de espécies, quase todas no hemisfério norte (com uma excepção), a maioria na Ásia ou nos países mediterrânicos (Europa e norte de África), e muitas delas endémicas de áreas restritas. Até em Portugal tivemos direito a um Bupleurum endémico: vive na serra do Cercal, e aguarda há vinte anos a validação de «estudos recentes» que o dão como exclusivo dessa faixa do sudoeste alentejano. O porte destas plantas é extremamente variado: há espécies arbustivas — como o B. fruticosum em Portugal continental, e o B. salicifolium na Madeira e nas Canárias —, há herbáceas perenes de aspecto robusto, e há ervas anuais pequenas ou minúsculas. O Bupleurum semicompositum, que fotografámos em Fuerteventura, é uma planta anual rasteira e pouco conspícua; mas, como costuma frequentar zonas de vegetação rala, não é difícil de detectar. O que a notabiliza é fazer o pleno da bacia mediterrânica, incluindo o sul de Portugal, e, além disso, ainda surgir em seis das ilhas Canárias — onde, até hoje, só não foi observada em La Palma.

Talvez a facilidade de deslocação de que o Bupleurum semicompositum deu provas se deva às dimensões microscópicas das suas sementes: cada fruto não tem mais que 1,5 mm de diâmetro, e as flores, que se reúnem em grupos de seis a nove e têm pétalas amarelas ou esverdeadas, ficam-se por igual tamanho. Ainda assim, com o seu hábito prostrado e muito ramificado, a planta pode exceder os 30 cm de comprimento, resgatando-se desse modo da invisibilidade que aflige, por exemplo, o B. tenuissimum. Folhas e caules são glabros, de cor glauca, de modo nenhum enegrecidos. Por que misteriosa razão se chamará ela hierba negrilla nas Canárias?

17/05/2022

O problema da salsa

Petroselinum crispum (Mill.) Fuss


A cozinha popular portuguesa — aquela que é praticada nos restaurantes acessíveis a salários como os nossos, congelados vai para duas décadas — tem vindo gradualmente a prescindir de temperos e condimentos, bastando-lhe o sal para despachar a ração diária de fritos e grelhados. As ervas aromáticas vão sendo descartadas e caindo no esquecimento, prevalecendo talvez a ideia de que o seu uso iria adulterar o sabor natural dos alimentos. Presume-se assim que eles tenham algum sabor independente da preparação a que são sujeitos, e que ao comermos não buscamos o prazer da degustação mas sim o conhecimento de algo supostamente genuíno.

A salsa, essa erva que reputaríamos de indispensável em tantos cozinhados, também tem vindo a perder terreno. Durante algum tempo, abandonado o hábito de a usar como condimento, muitos restaurantes, porque continuavam a tê-la à mão e havia que dar-lhe utilidade, empregavam-na como enfeite. Não havia travessa de filetes de pescada ou de tripas que chegasse à mesa do comensal sem o sainete de um raminho de salsa. O cliente contemplava a salsa, não a achando particularmente bonita, e com um gesto rápido de talheres empurrava-a para a borda da travessa, onde ela permaneceria até que, terminada a refeição, toda a prataria regressasse à cozinha. Talvez sejam caluniosas as suspeitas de que o mesmo ramo de salsa, enquanto mantivesse o viço, regressava periodicamente às salas de refeições enfeitando travessas de sucessivos clientes, porque afinal nunca faltou salsa e, tratando-se de um produto barato, seria imperdoável tanta forretice.

O efeito ornamental da folha de salsa nunca foi convincente. Mesmo sem solicitarem aos clientes que preenchessem inquéritos de satisfação, os restaurantes acabaram por concluir que a salsa só por si era insuficiente para dar um toque de requinte e sofisticação estética aos pratos do dia. E houve a questão do IVA. Enquanto o governo não desceu a taxa aplicada às refeições, a margem de lucro dos restaurantes era tão apertada (a acreditar nas queixas dos proprietários) que até os ramalhetes de salsa encomendados à mercearia da esquina iriam desequilibrar as contas. O IVA acabou por descer, mas já não foi a tempo de salvar a salsa.

Esta situação é lamentável. Urge recuperar a salsa — assim como todos as ervas culinárias que vêm preguiçosamente sendo desprezadas — e, mais do que isso, dar-lhe oportunidade de se regenerar, usando-a como verdadeiro condimento e não como pífio adorno. Mesmo que os restaurantes persistam em desdenhá-la, podemos nós fazer bom uso dela nos nossos cozinhados caseiros. Não é preciso gastar um cêntimo nem dispor de um quintal doméstico onde cultivá-la, porque a planta cresce ao deus-dará pelo país fora e é só servimo-nos do que a natureza oferece.

Há apenas o óbice sério de o Petroselinum crispum (é esse o nome científico da salsa) ser uma umbelífera que um olho menos experimentado facilmente confunde com muitas outras plantas da mesma família, várias delas mortalmente venenosas (como a cicuta e o embude). Colher salsa na natureza sem estarmos treinados para reconhecer plantas silvestres é tão suicidário como colher cogumelos que não saibamos identificar. Quando colhemos salsa, devemos atender ao formato das folhas, à coloração das flores e, sobretudo, ao perfume característico que as folhas emitem ao esfregarmo-las com os dedos.

Cientes de todas estas cautelas, onde podemos afinal encontrar salsa silvestre? Devemos procurá-la no Verão, que é quando a planta floresce e mais fácil se torna de avistar. Tem alguma preferência, não exclusiva, por zonas costeiras, e nos Açores parece ser comum na faixa litoral de todas as ilhas, sobretudo na proximidade das povoações. Procurar salsa pode assim ser pretexto para desfrutar de bonitas paisagens junto ao mar como a que se vê nesta foto de São Miguel, captada no mesmo local onde as plantas que ilustram o texto foram fotografadas.

21/02/2022

Cenoura à beira-rio


Myrrhoides nodosa (L.) Cannon


Eis uma umbelífera de ampla distribuição europeia e mediterrânica que, à partida, pouco tem para se fazer notada. Em Portugal, estando no limite da sua área de distribuição, é uma planta pouco vista, praticamente restrita ao quadrante nordeste do país. De seu nome Myrrhoides nodosa, vive em lugares sombrios, algo nitrificados, na proximidade de cursos de água, e não chama a atenção nem pelo porte (entre 30 e 100 cm de altura), nem pela floração (as umbelas são modestas, com dois a quatro raios, cada um deles sustentando meia dúzia de pequenas flores brancas), nem pela folhagem (semelhante à de muitas outras umbelíferas, em especial à do cerefolho). Contudo, quem olhar os detalhes não terá dificuldade em identificá-la se atentar nos pêlos brancos, longos e rígidos que revestem hastes, bractéolos, pedúnculos e frutos. Outro pormenor inequívoco é o inchaço do caule abaixo de cada nó, como se vê nesta foto.

Por preguiça ou conveniência, associámos a planta, no título deste escrito, à umbelífera de flor branca mais comum no nosso país: a cenoura-brava (Daucus carota). Não consta, contudo, que a Myrrhoides nodosa tenha usos culinários ou seja sequer comestível. Talvez decifrando-lhe o nome a consigamos inscrever numa linhagem prestigiada: Myrrhoides significa presumivelmente "semelhante à mirra". Referir-se-á à mirra que trouxeram os reis magos do Oriente? Não, é antes à Myrrhis odorata, uma umbelífera também de flores brancas, por certo olorosa, que não é espontânea em Portugal e que, na Península Ibérica, está restrita aos Pirenéus e à Cordilheira Cantábrica. A verdadeira mirra é extraída de uma pequena árvore, Commiphora myrrha, nativa de África e da Península Arábica — e com a qual, obviamente, a nossa Myrrhoides não tem qualquer afinidade. E mesmo esta associação espúria está em risco, pois há quem defenda a revogação do género Myrrhoides, ficando a nossa umbelífera a chamar-se Chaerophyllum nodosum.

02/01/2022

Rabaça dos charcos

Apium inundatum (L.) Rchb. f. (= Helosciadium inundatum (L.) W. D. J. Koch)


No planalto de Miranda a chuva é escassa e, no Verão, as altas temperaturas são um castigo difícil de suportar. O arvoredo é esparso, dominado por azinheiras (Quercus rotundifolia) que aprenderam a viver com a aridez e a canícula. Alguns cursos de água cruzam preguiçosamente o planalto, quase todos temporários e de reduzido caudal. Há ainda charcos, naturais ou artificiais, que, enquanto sustêm água, são focos de vida e de diversidade. Perto de Vila Chã de Braciosa, corre um ribeiro num leito granítico claramente definido, assinalado por pequenas pontes nos locais onde cruza alguma estrada. O período em que a água flui é breve: ainda a Primavera não terminou e o que se vê é uma sucessão de charcos onde se desenvolve uma flora típica de águas estacionárias, em geral de surgimento efémero. As plantas que buscam esses instáveis habitats são, algumas delas, raras ou até únicas em Trás-os-Montes, ou mesmo no norte do país. De fácil detecção, por cobrir uma extensa área e ter um aspecto inconfundível, é o Eryngium corniculatum, um cardo-azul frequente em charcos no Alentejo e no Algarve mas raríssimo a norte do Tejo. Também da família das umbelíferas mas muito menos chamativo, com caules delgados e flores e folhas de poucos milímetros de diâmetro, é o Apium inundatum (fotos acima). Trata-se de uma planta aquática anual que sempre foi rara no nosso país e parece estar hoje restrita ao planalto mirandês e aos arrozais do baixo Mondego. Talvez por falta de material de herbário, ou simplesmente por lapso, o revisor do género Apium para a Flora Iberica (vol. X, 2003) nem considera que a espécie, cuja distribuição global abrange o norte de África e grande parte da Europa, exista em Portugal.

Em compensação, o Apium nodiflorum, conhecido popularmente por rabaça, é frequente em todo o país, em fontes, charcos e leitos de ribeira. Tem folhas pinadas muito maiores, com grande número de folíolos, e não há confusão possível entre os dois congéneres. Sucede que, em nome do rigor taxonómico, várias espécies hidrófitas do género Apium, entre elas Apium inundatum e A. nodiflorum, têm sido transferidas para o género Helosciadium, um nome bem mais problemático de memorizar. Se aceitarmos a mudança, o aipo comum (A. graveolens), que vive à beira-mar e não tem o mesmo gosto por lugares encharcados, fica a ser o único representante do género Apium na flora portuguesa. Para nos habituarmos a tão arrevesado nome, foi descrito em 2020 o Helosciadium milfontinum, endemismo da costa alentejana (o epíteto refere-se a Vila Nova de Milfontes) antes confundido com o Helosciadium repens (= Apium repens), espécie que agora se supõe não existir em Portugal.

13/12/2021

Belas adormecidas

As plantas que sincronizam o seu ciclo de vida com o do pastoreio ou o da agricultura tendem a depender tanto dessa ajuda como de um clima sem grandes imprevistos. Essas tarefas, quando não intensivas nem regadas a herbicida, arejam o solo, erradicam saudavelmente plantas competidoras e impõem pousios que aliviam o desgaste natural da terra. Mas com a lavoura mecanizada, que revolve os torrões com a agilidade de uma colher na sopa, e com as mudanças no clima, as plantas precisam de maior cautela. A umbelífera que vos mostramos hoje, anual e pequena (não vai além dos 40 cm de altura), tem um truque adicional para lidar com as más notícias do seu habitat. As sementes formam-se antes das colheitas mas, se o tempo não está de feição, se há indícios de que o campo está sob ameaça ou se a competição entre as novas plantas e as já adultas se torna melindrosa para a espécie, então as sementes adormecem. Isso mesmo: enquanto a humanidade se afadiga em atrasar a morte e em promover a natalidade, estas plantas dominam um relógio formidável que adia o começo da germinação, tendo até em conta o benefício que isso possa trazer às plantas-mães.

Turgenia latifolia (L.) Hoffm.


Durante o sono, as sementes mantêm-se viáveis, até que (passados por vezes muitos anos) haja sinais, anunciados sabe-se lá por que meios, de que a probabilidade de um embrião sobreviver aumentou. Enquanto dormem, podem dispersar-se, colonizando depois novos locais, o que talvez justifique a maior incidência de novas espécies entre géneros que dominam este estratagema. Curiosamente, há quem afirme que esta é uma solução para as longas viagens interplanetárias, de mudança dos habitantes da Terra para outros mundos.

As espécies que afinam o seu ciclo com a evolução do ambiente não servem para jardins, por não se vergarem à impaciência dos que anseiam pela floração exuberante em vasos e canteiros. Mas é esta habilidade que favorece, por exemplo, a produção de cereais em grande escala. O banco de sementes que assim se cria assegura que os frutos não germinam todos num mesmo outono de temporais catastróficos, evento que condenaria futuras gerações de plantas.



Há outros indícios de que a Turgenia latifolia, que aprecia olivais em solo calcário, é medrosa mas sabe proteger-se. As flores de pétalas rosadas não têm sépalas mas as umbelas nascem num ninho de ganchos macios, que mais tarde endurecem e ajudam a disseminar os frutos. Percebe-se mal que, sendo assim talentosa e de distribuição vasta pelo centro e sul da Europa, Ásia e norte de África, seja afinal tão rara em Portugal, onde só há registo de uma população, e com escasso número de exemplares.

11/09/2021

Aipo madeirense

Há nomes que são começos de desmentido. É o caso do Melanoselinum decipiens, que é como quem diz aipo enganador. Esta é uma umbelífera de grande porte (pode atingir 3 metros de altura) com folhas que lembram as das angélicas, parecença que já foi fonte de alguns equívocos. Não sendo, pelo seu tamanho, planta fácil de herborizar, houve quem atentasse apenas no formato das folhas e a confundisse com o endemismo açoriano Angelica lignescens. Na verdade, bastaria que se vissem as duas espécies em flor para confirmar como afinal são bastante distintas, podendo-se depois notar mais diferenças ao analisar os frutos. Erros à parte, há que reconhecer que as espécies dos géneros Melanoselinum (endémico da Madeira e monoespecífico) e Angelica não se pouparam a esforços para aproveitar os bons ares, solos, crateras e escarpas húmidas dos arquipélagos da Madeira e dos Açores para engordar sem remorsos e se situarem a meio caminho entre uma herbácea com caule lenhoso e uma árvore.

Melanoselinum decipiens (Schrad. & J. C. Wendl.) Hoffm.


O aipo-da-serra é perene mas monocárpico (tal como a Angelica lignescens), o que significa que tem vida curta (dois ou três anos; a Angelica lignescens dura uma meia dúzia). As folhas são divididas e enormes, com cerca de 60cm de comprimento e 40cm de largura (as da Angelica lignescens são maiores), dispostas em roseta na parte superior do caule. As flores são pequeninas, com pétalas de um rosa pálido, mas reúnem-se em umbelas vistosas que se juntam numa inflorescência terminal larga e plana, uma umbela de umbelas com uns 50-90cm de diâmetro. Na Angelica lignescens, pelo contrário, as flores são esverdeadas e agrupam-se em bolas gigantes, que por sua vez se dispõem num arranjo esférico ainda maior, como se mostra nesta foto.

Estes números são expressivos: ainda que o Melanoselinum fosse raro, pelo tamanho e cor seria fácil detectá-lo nas ravinas rochosas do interior da Madeira, tal como é fácil avistar a angélica açoriana nas caldeiras de Santa Bárbara (Terceira) ou do Faial. Os exemplares de aipo-da-serra das fotos (com a excepção em baixo) moram em escarpas sombreadas do Curral das Freiras, aproveitando o solo firme mas húmido junto a um túnel desactivado que só deve percorrer quem consiga dividir a atenção, ainda que não igualmente, entre as inúmeras plantas que por ali se vêem e o frequente desprendimento de pedras.