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11/01/2025

Medusa no deserto

Barranco de Garcey, Fuerteventura
Fuerteventura, a ilha mais antiga do arquipélago das Canárias e a que se localiza mais perto do continente africano, tem recantos que lembram as imagens que a NASA tem divulgado de Marte: áreas extensas sob clima árido, com solo pedregoso castanho-avermelhado (o chamado jable), perturbadas apenas pelo assobio do vento e algum redemoinho engraçado de areia. Imersos nesta quietude, caminhamos quilómetros sem ver plantas ou ouvir o som de pássaros. É tal a monotonia da paisagem que a dado momento já nos perguntamos o que estamos ali a fazer. O bom senso diz-nos, porém, que, embora nas Canárias não haja cactos como nos desertos americanos, não faltam por aqui espinhos. São inúmeras e engenhosas as soluções de adaptação da vegetação ao solo resvaladiço, à estiagem, ao sol inclemente, às tempestades de poeira e à eventual insuficiência de polinizadores. E, de facto, bastou redobrarmos a atenção para logo detectarmos exemplares de Cosentinia vellea, um feto que suporta a desidratação completa por períodos prolongados, e que aqui aproveita as fissuras mais frescas das rochas. Animados, corremos para a meta desta aventura marciana: o barranco de Garcey, lugar costeiro sem sombra e exposto ao vento, mas que conserva a humidade após os raros chuviscos. É nele que mora uma das populações mais vigorosas desta corriola admirável, que só existe em Fuerteventura e na Grã-Canária.

Convolvulus caput-medusae Lowe


Ao contrário da quase totalidade das espécies de Convolvulus que ocorrem em Portugal, que são herbáceas anuais ou perenes (a excepção é o C. fernandesii, endemismo do Cabo Espichel), o C. caput-medusae forma arbustos de pequena estatura, com um máximo de 40 cm de altura por 60 de largura. Garantidamente, no interior destes coxins, a temperatura é mais amena, há maior humidade e o vento não é tão grande incómodo; mas, para maior estabilidade e protecção da planta, as folhas são sésseis, coriáceas, densamente pubescentes, e os ramos terminam em espinhos muito rijos. O tom geral da planta é verde-cinza, onde sobressaem as flores solitárias e pequenas (quando abertas, têm 10 a 15 mm de diâmetro), com sépalas longas e corola hirsuta, branca ou levemente rosada. A floração decorre oficialmente de Janeiro a Maio, mas em Dezembro do ano passado já havia bastantes flores.

Ainda que aprecie zonas costeiras baixas e planas (algumas fotos são de exemplares do istmo de La Pared, onde o vimos em arribas e dunas marítimas), a distribuição do C. caput-medusae em Fuerteventura estende-se à montanha de Melindraga, a mais de 500 m de altitude e distando uns 7 quilómetros do mar. A semelhança de morfologia e habitat leva-nos a desconfiar que é parente (muito) próximo do C. trabutianus, que ocorre em Marrocos. Concorda?

Alguns estudos indicam que várias espécies do género Convolvulus passam bem sem a ajuda de polinizadores, e que a produção de sementes é elevada mesmo quando só há auto-polinização. Mas a viabilidade das sementes do C. caput-medusae parece reduzir-se perigosamente com a maior frequência de invernos secos que se tem registado em Fuerteventura. Se for preciso indicar aos incrédulos mais uma consequência gravosa das alterações climáticas repentinas, esteja o leitor à vontade para se servir deste exemplo.

01/01/2025

2025

Degollada de Cofete — Fuerteventura
Até o ar livre precisa de mudar de quando
em quando de ar. A circulação é um bem
inestimável para qualquer forma da natureza.
Uma competição de ciclismo que percorra uma
montanha é uma dádiva para a montanha.
Os animais e tudo o que se move
movem-se também em nome das coisas imóveis.
Sem movimento em seu redor
a montanha cairia como um vulgar edifício antigo.
Gonçalo M. Tavares, Uma viagem à Índia (Editorial Caminho, 2010)

12/02/2023

Mato mourisco

Suaeda vermiculata J. F. Gmel. [= Suaeda mollis (Desf.) Delile]


As plantas do género Suaeda são pequenos arbustos ou herbáceas anuais, com folhas carnudas mais ou menos cilíndricas, que vivem em solos arenosos ou argilosos, muitas vezes em locais alagadiços e com alto teor de sal. É por isso curioso saber que Suaeda vem do árabe — é de facto o nome que nessa língua se dá à Suaeda vera, a espécie mais comum do género na região mediterrânica — e significa insossa. Apesar de frequentarem habitats semelhantes, as diversas espécies de Suaeda não acumulam sal como fazem as salicórnias e sarcocórnias, e portanto não têm vocação para tempero culinário.

Mas as Suaedas são mais versáteis do que as salicórnias e aparentadas: não são exclusivas de sapais e estuários, e por vezes vivem longe do mar, dispensando o sal mas não a areia. A proximidade da água, salgada ou doce, não parece ser determinante para espécies que se adaptaram a climas desérticos como o de Fuerteventura, nas Canárias, ou o de Marrocos, no quadrante noroeste do continente africano. Um exemplo é dado pela Suaeda vermiculata, acima ilustrada, que se distribui por quatro das ilhas Canárias (Fuerteventura, Lanzarote, Tenerife e Grã-Canária) e ainda por Cabo Verde e pelo norte de África. Conhecida no arquipélago espanhol como matomoro brusquillo, é um arbusto rasteiro, glabro, com folhas glaucas frequentemente tingidas de vermelho, de uns 5 mm de comprimento, apresentando a face superior plana ou ligeiramente côncava; as suas flores são axilares, reunidas em grupos de duas ou três, e exibem anteras de um amarelo vivo.

São cinco as espécies de Suaeda presentes nas Canárias, todas elas ocorrendo em Fuerteventura, a mais árida das ilhas e também a que, com as suas dunas a perder de vista, tem maior extensão de habitat favorável. Pela coloração das flores e das folhas, a Suaeda vermiculata distingue-se bem de quase todas as suas congéneres no arquipélago, mas não da Suaeda ifniensis — que, em todo o caso, aparenta ter folhas mais estreitas e compridas e estames não tão vistosos.

Na berma de estrada em Fuerteventura onde captámos as fotos, a secura do solo argiloso parecia corroborar o desdém da Suaeda vermiculata pela água. Contudo, uma ligeira depressão no terreno, indicadora da passagem de maquinaria pesada, terá permitido a acumulação de humidade e talvez criado algum efémero charco. Sinais de água não havia, mas as plantas têm sensores mais apurados do que os nossos e estavam à espreita de uma oportunidade. E, além da Suaeda, preparada para sobreviver à mais impenitente secura, algumas plantas anuais, entre elas uns muito apelativos goivos, aproveitavam a inesperada benesse para germinar e florir fora da época prevista.

13/07/2022

Outras uvas, o mesmo mar



A penínusula de Jandía, que remata Fuerteventura pelo sul, tem um contorno que faz lembrar uma bota de cano alto, tal como o da Itália. O modelo transalpino é o mais estiloso dos dois (nem outra coisa se esperaria do país que dita a moda em calçado), mas exagera na altura do tacão e é bem menos confortável para o pé do que o modelo de sola rasa adoptado por Fuerteventura. Em contraste com a chocante agressividade da Itália, que não se cansa de pontapear a Sicília, Jandía não quer atingir nada nem ninguém, nem sequer agitar as águas mais do que o necessário para que as ondas continuem a rolar.

Tetraena gaetula (Emb. & Maire) Beier & Thulin subsp. gaetula


Pouco depois de passarmos pelo casario branco de uma aldeia piscatória, a estrada de Jandía, sempre de terra batida, termina num farol situado exactamente na biqueira de bota. Entre a esparsa vegetação que pontua a terra ressequida, e muito mais abundante do que a endémica erva-pulgueira, destaca-se um arbusto rasteiro, de folhas carnudas e avermelhadas, quase esféricas. A sua semelhança com a uva-do-mar (Tetraena fontanesii), que conhecemos de outras ilhas do arquipélago, é inegável, mas as diferenças são também claras: a planta de Jandía é de menor porte, e apresenta folhas mais pequenas e com diferente coloração. Trata-se de facto de duas espécies distintas do género Tetraena; nas ilhas Canárias, ambas são exclusivas de habitats costeiros, mas em Marrocos e na Argélia podem ocorrer em ambientes desérticos afastados do mar. Nas Canárias, a Tetraena gaetula é de longe a mais rara das duas, vivendo apenas em Fuerteventura, onde está restrita à ponta de Jandía. No aspecto geral, os exemplares canários de T. gaetula divergem de modo significativo das plantas tidas como da mesma espécie originárias do continente africano, e que são documentadas nas fotos destas páginas. Não quererá alguém averiguar se as diferenças observadas no hábito, na folhagem e na forma dos frutos se reflectem em diferenças genéticas, merecendo por isso adequado reconhecimento taxonómico?

Até 2003, ano em que foi publicado um artigo por dois botânicos suecos e um inglês propondo uma reorganização da família Zygophyllaceae, quase todas as espécies hoje incluídas no género Tetraena pertenciam ao género Zygophyllum. Tetraena era até essa data um género mono-específico: o seu único membro, T. mongolica, provinha das estepes da Ásia central. Com a nova circunscrição, passou a ser um género maioritariamente africano: das 40 espécies reconhecidas, só duas são asiáticas, e as restantes distribuem-se desde o norte de África e o médio Oriente até à África do Sul, havendo apenas uma (T. alba, presente em Espanha e na Grécia) que consegue atravessar o Mediterrâneo e pôr um pé na Europa.

06/07/2022

A melhor árvore para o seu deserto

As ilhas Canárias, tal como as do arquipélago da Madeira, são poiso de muitas margaridas, distribuídas por vários géneros, alguns endémicos. Mas a que lhe mostramos hoje é especial. Ora veja se concorda.


Kleinia neriifolia Haw.


Parece um cacto, por ter folhas suculentas (de largura variável conforme as ilhas) e ramos articulados (lembrando os dragoeiros), grossos e nodosos. É um arbusto alto (pode atingir os 3 metros), perene, embora de folhagem caduca: depois da floração, fase muito perfumada entre Agosto e Novembro, muda bastante de aspecto. As folhas são coriáceas e sésseis, formando rosetas verdes no topo dos ramos, caindo no início da estação mais seca. As inflorescências em corimbos terminais, com um pé longo, agrupam inúmeras florinhas tubulares de um tom geral amarelo pálido, com corolas brancas de cinco pétalas. Os aquénios (estruturas modificadas, semelhantes a pára-quedas para facilitar a dispersão das sementes pelo vento) são tantos e tão aveludados que, antes de se desprenderem, dir-se-ia que a planta agarrou uma nuvem com que cobre a cabeça.

Esta espécie ocorre em todas as ilhas das Canárias e é muito frequente nas zonas costeiras. Aprecia ravinas pedregosas com clima semi-árido, entre os 50 e os 1000 metros de altitude, mas pequenas variações da temperatura. Crê-se que vive só de ar, mas as raízes são longas e não desperdiçam nenhuma da água que se acumula nas fissuras das rochas.

Quererá agora o leitor voltar às fotos acima para conferir estes detalhes? Está bem, nós esperamos.

O nome do género é dedicado a Jakob Theodor Klein (1685-1759), um botânico alemão que criou uma classificação controversa para os organismos vivos (enfim, alguns animais) baseada em características morfológicas simples e fáceis de detectar (número de patas, e assim), e que, com o trabalho mais científico e metódico de Lineu, caiu no esquecimento. Para nós, matemáticos, a Kleinia bem poderia ser uma homenagem ao geómetra Felix Klein (1849-1925), autor de uma teoria unificada em Geometria, entre muitos outros contributos matemáticos, e também da famosa superfície não orientável conhecida como garrafa de Klein.

28/06/2022

Estrela sedosa

Asteriscus sericeus (L. f.) DC.


Cada ilha deveria ter a sua estrela, e só mereceria encontrá-la quem para isso não se poupasse a esforços, estudando mapas e guiando-se por bússolas nos difíceis e pedregosos caminhos que a ela conduzissem. Por culpa da poluição luminosa que afecta as nossas urbes, quem queira ver as estrelas do céu tem também que demandar lugares remotos e isolados. Só que aqui falamos das estrelas da terra — mais precisamente, das plantas arbustivas do género Asteriscus existentes nas Canárias, que têm uma repartição por ilhas muito desigual. Fuerteventura e Lanzarote contam cada uma com a sua estrela endémica (Asteriscus sericeus na primeira, Asteriscus intermedius na segunda) e partilham entre si uma terceira estrela, Asteriscus schultzii, que também ilumina os desertos de Marrocos; e só uma das restantes ilhas, Grã-Canária, teve direito a uma estrela própria, Astericus graveolens, ainda que dividida em duas subespécies.

Embora a estrela-marroquina (Asteriscus schultzii), com os seus capítulos inesperadamente brancos, suscite a simpatia geral, a opinião maioritária é que a estrela-sedosa (tradução possível para Astreriscus sericeus), hoje no escaparate, é a mais bonita de todas. As flores, produzidas com abundância ao longo da Primavera, são vistosas, duas vezes maiores do que as da concorrência, e as folhas, de um verde acetinado, são largas, formando rosetas perfeitamente simétricas nas extremidades dos galhos. A planta é robusta e encorpada, alcançando por vezes um metro de altura, mas sem nunca perder o característico porte arredondado. Graças a estas qualidades, foi ela a única, entre as suas congéneres canarinas, a entrar no comércio hortícola internacional e a conquistar lugar de relevo em jardins de muitos países. Pena é que o nome de exportação que lhe arranjaram (Canary Island Daisy) seja tão vago e desinspirado: serão mais de meia centena as espécies de asteráceas endémicas das Canárias às quais o mesmo nome não assentaria pior.

Assim, não é de facto necessário ir a Fuerteventura para admirarmos o Asteriscus sericeus e lhe passarmos a mão pelas folhagem sedosa enquanto lhe aspiramos o perfume (sim, é verdade: ele também se notabiliza pela fragrância). Mesmo nas Canárias, é possível encontrá-lo noutras ilhas (Grã-Canaria, Tenerife, El Hierro) onde foi introduzido e se naturalizou, talvez para que Fuerteventura não tivesse o exclusivo de tão forte chamariz turístico. E os que preferem jogo limpo, insistindo em visitar Fuerteventura, têm ainda assim quem teime em facilitar-lhes a vida, plantando profusamente A. sericeus em jardins e bermas de estrada. Nós recusámos asceticamente ser seduzidos por plantas domesticadas, e fomos aos cumes da ilha visitar o A. sericeus no seu habitat. Só que nada tem de heróico ascender ao Morro Velosa, em Betancuria, havendo uma estrada muito confortável que nos conduz até ao topo. E seria lá — e não no Pico da Zarza, cuja conquista não foi moleza — que a estrela-sedosa se nos apresentaria florida e fotogénica. Fora de época, é verdade, mas ficou-nos a lição de que nem sempre um esforço maior se traduz em recompensa acrescida.

21/06/2022

Amarelos de Fuerteventura



A quem procura plantas à beira-mar, de olhar curioso e máquina fotográfica pronta, exige-se uma desatenção instruída. É que os veraneantes, em geral em trajes sumários, podem presumir que o fotógrafo está à procura de imagens suas, talvez para divulgar em poucos minutos nas redes sociais — e isso seria uma desgraça. Curiosamente, muitos deles ter-se-ão fotografado mal chegaram à praia, antes e depois do primeiro banho de mar, sem receio de expor a sua privacidade a olhares alheios. Mas fizeram-no em pose, como heróis felizardos, não como gente real que sacode a areia dos pés e a quem o vento desajeita o cabelo. Em fotos muito antigas, também adultos e crianças surgem com postura afectada, em formação quase militar. Mas não se vê um sorriso, tal é o receio de que a foto, incapaz de mentir, revele algum segredo. Uns chegaram ao futuro com ar ponderado e maduro, e a foto é um recado aos descendentes; os outros só querem fazer inveja aos demais. O improviso, que se diria garantia do que é genuíno em fotografia, parece ter perdido de vez a pertinência.



Na praia de La Pared, na costa oeste de Fuerteventura, o fotógrafo pode esquecer-se destes melindres, e até das pessoas. Depois de estacionarmos o carro junto às poucas casas, bem afastadas do mar, que servem pescadores e turistas, seguimos pela praia extensa de areia fina, com dunas tão altas e barrigudas que não nos cruzamos com ninguém em quilómetros de passeio. Pudemos, assim, apreciar calmamente os detalhes desta asterácea endémica de Fuerteventura e do sudoeste de Marrocos.

Pulicaria burchardii Hutch.


As plantas do género Pulicaria têm inflorescências muito elegantes: ao contrário das margaridas mais comuns, as lígulas (falsas pétalas) são fininhas e de cor amarelo-pálido; no centro do capítulo, onde se reúnem os florículos, o tom que domina é de um amarelo mais intenso e fácil de detectar. Como aqui lhe contámos, o arquipélago das Canárias foi bafejado com um endemismo excluivo no género Pulicaria, que só ocorre em Fuerteventura e Lanzarote. Difere bastante da P. buchardii, que é quase um arbusto, com folhas lineares e lanuginosas, de um tom prateado que não é raro em plantas à beira-mar. Forma coxins compactos, cujos talos laterais se enterram firmemente na areia — para ajudar à pose.

14/06/2022

Pseudo-estrela do monte Sinai



Uma extensão de terra ressequida, sem ponta de vegetação, é muitas vezes o esconderijo onde as sementes aguardam meses ou anos pela humidade que as fará despertar. Em Fuerteventura, essa inesperada eclosão pode dar-se em qualquer época do ano e em qualquer recanto da ilha, pois as plantas anuais só cuidam da sua sobrevivência e não se guiam pelo calendário. Quem conduza pelas estradas da ilha deve por isso prestar atenção às raras manchas de cor que, nas bermas, assinalam as plantas que lograram tirar proveito da presença efémera da água. Ainda que nem todos os condutores respeitem esses sinais de trânsito, nós não hesitamos em acatar-lhes as ordens, parando de imediato o carro e procedendo ao inventário da vegetação presente no local.

Desta vez o sinal que nos obrigou a parar era violeta e estendia-se ao longo de dezenas de metros por uma vala deixada pela passagem de maquinaria pesada — talvez as mesmas escavadoras com que, uns quilómetros adiante, se faziam obras de alargamento da via. Em vez de configurar um acto de destruição, essa cicatriz na berma da estrada favoreceu a acumulação de água e deu ímpeto à vida vegetal. Mesmo em Dezembro, as plantas não se fizeram rogadas: o tapete arroxeado era obra da Matthiola bolleana — que, fosse ela planta obediente, respeitadora dos manuais botânicos e da erudição de quem os escreve, só deveria florir de Fevereiro em diante. Quando as obras rodoviárias estiverem concluídas, talvez este precário habitat tenha deixado de existir; mas, entretanto, muitas sementes foram deitadas à terra, e elas saberão espreitar a sua oportunidade, aqui ou umas centenas de metros ao lado.

Astragalus sinaicus Boiss.


A essas assembleias de pequenas herbáceas, que aparecem num ápice e desaparecem sem deixar rasto, dão os botânicos o pitoresco nome de "comunidade de terófitos", sendo "terófito" o modo erudito, derivado do grego, de designar uma planta anual. Diversos terófitos menos vistosos faziam companhia à Matthiola, entre eles uma leguminosa rasteira, muito peluda, que, a julgar pelas folhas imparipinadas e com numerosos folíolos, seria certamente um Astragalus; confirmámos depois tratar-se do A. sinaicus. O género Astragalus é predominantemente mediterrânico, contando com uma dúzia de representantes no nosso país, a maioria deles raros (como o A. glaux) ou de distribuição restrita (como o A. tragacantha). Quase todas as espécies de Astragalus nas Canárias são igualmente mediterrânicas, e o A. sinaicus não é excepção. Ainda que o seu epíteto específico aluda ao monte Sinai, no Egipto, a planta ocorre sobretudo na costa europeia do Mediterrâneo oriental, dos Balcãs à Turquia.

O Astragalus sinaicus exibe fortes semelhanças com o A. stella, que tem uma distribuição mais ocidental, estendida à Península Ibérica e a Portugal. Tanto no A. stella como no A. sinaicus (que já se chamou A. pseudostella), as folhas são densamente peludas e os frutos dispõem-se em estrela, o que é motivo para as duas espécies serem reiteradamente confundidas. Para potenciar a confusão, ambas ocorrem, nas Canárias, exactamente nas mesmas duas ilhas (Lanzarote e Fuerteventura), e frequentam os mesmos habitats áridos. Há, contudo, uma diferença evidente entre elas: as inflorescências do A. stella são sustentadas por pedúnculos muito compridos, enquanto que as do A. sinaicus são quase sésseis.

01/06/2022

Erva-negra

Bupleurum semicompositum L.


Viajar para encontrar o mesmo é a sina de todos nós na era da globalização: as mesmas vozes nos altifalantes dos aeroportos, as mesmas cadeias de restaurantes e cafetarias, os mesmos supermercados com iguais produtos nas prateleiras, o mesmo mar desenrolando as ondas em areais onde preguiçam banhistas indiferenciados, as mesmas palmeiras namorando um pôr-do-sol de postal ilustrado em idênticas esplanadas à beira-mar. E até as plantas, se não nos esforçarmos por romper a barreira da mesmice, se repetem com imperturbável desprezo pelas variações de latitude e longitude. Há plantas que são invasoras globais (como a Lantana camara), outras que se fizeram cosmopolitas pela predilecção que têm por lugares humanizados (como o rícino [Ricinus communis], a beldroega [Portulaca oleracea] e a erva-azeda [Oxalis corniculata]), e outras ainda que, tidas como bonitas e fáceis de propagar, são usadas por jardineiros indolentes em todos os cantos do mundo (como as hortênsias, os agapantos e as estrelícias). A uma quarta categoria, mais simpática, pertencem aquelas plantas que lograram alcançar ampla distribuição sem a nossa ajuda. Uma das campeãs indiscutíveis é a avenca [Adiantum capillus-veneris], nativa de climas temperados, subtropicais ou tropicais em todos os continentes habitados.

O género Bupleurum — que é atípico dentro da família das umbelíferas pelas suas folhas simples, lanceoladas — não tem grande vocação para cosmopolitismos: integra centena e meia de espécies, quase todas no hemisfério norte (com uma excepção), a maioria na Ásia ou nos países mediterrânicos (Europa e norte de África), e muitas delas endémicas de áreas restritas. Até em Portugal tivemos direito a um Bupleurum endémico: vive na serra do Cercal, e aguarda há vinte anos a validação de «estudos recentes» que o dão como exclusivo dessa faixa do sudoeste alentejano. O porte destas plantas é extremamente variado: há espécies arbustivas — como o B. fruticosum em Portugal continental, e o B. salicifolium na Madeira e nas Canárias —, há herbáceas perenes de aspecto robusto, e há ervas anuais pequenas ou minúsculas. O Bupleurum semicompositum, que fotografámos em Fuerteventura, é uma planta anual rasteira e pouco conspícua; mas, como costuma frequentar zonas de vegetação rala, não é difícil de detectar. O que a notabiliza é fazer o pleno da bacia mediterrânica, incluindo o sul de Portugal, e, além disso, ainda surgir em seis das ilhas Canárias — onde, até hoje, só não foi observada em La Palma.

Talvez a facilidade de deslocação de que o Bupleurum semicompositum deu provas se deva às dimensões microscópicas das suas sementes: cada fruto não tem mais que 1,5 mm de diâmetro, e as flores, que se reúnem em grupos de seis a nove e têm pétalas amarelas ou esverdeadas, ficam-se por igual tamanho. Ainda assim, com o seu hábito prostrado e muito ramificado, a planta pode exceder os 30 cm de comprimento, resgatando-se desse modo da invisibilidade que aflige, por exemplo, o B. tenuissimum. Folhas e caules são glabros, de cor glauca, de modo nenhum enegrecidos. Por que misteriosa razão se chamará ela hierba negrilla nas Canárias?

27/05/2022

Limónios da ilha dos Lobos

A nordeste de Fuerteventura, a cerca de 2km de distância, pode avistar-se uma ilhota arredondada que actualmente não tem habitantes permanentes. Já os teve, a maioria deles pescadores e respectivas famílias, que competiam pela apanha do peixe e moluscos com uma população muito numerosa de lobos-marinhos (de nome científico Monachus monachus). Além de comerem bastante (os adultos medem cerca de 3 metros e pesam uns 300 quilos), estas focas dóceis gostam de dormir em sossego e de relaxar ao sol em praias remotas, sem intrusos nem ruído. E precisam de grutas não perturbadas para cuidar das crias, em locais muitas vezes assolados por ventanias e ondas de mar agitado. Juntemos a este começo de vida rodeado de perigos o apreço durante séculos pela pele, carne e gordura destas focas, e não nos surpreendemos com o resultado desta disputa de terreno, bens e alimentos entre humanos e focas: na ilha dos Lobos não resta hoje nenhum lobo-marinho. A população desta espécie no Atlântico, que se distribuía pelas costas do Norte de África e arquipélagos da Madeira, Canárias e Açores, conta agora com apenas duas colónias, uma delas na Madeira, com não mais do que 120 focas no total. E a população mundial da foca-monge não augura nada de bom: só tem núcleos pequenos e muito distantes entre si, todos em declínio.



Não fomos, portanto, à ilha dos Lobos para ver os lobos-marinhos. A razão foi outra: nas lagoas do interior da ilha vive a única população conhecida deste endemismo canariense.

Limonium bollei (Wangerin) Erben


O impacto de visitantes à ilha dos Lobos é hoje controlado. O acesso faz-se de barco (alguns de fundo transparente) a partir do porto de Corralejo, em Fuerteventura, e há um limite diário de visitantes. Cada um recebe dois bilhetes numerados (de cores distintas, para se reduzirem os enganos), um dos quais deve ser entregue à chegada à ilha e outro à saída; deste modo, os vigilantes sabem quantos turistas estão em cada momento na ilha e garantem que nenhum fica a pernoitar nela sem licença. Os trilhos são extensos, mas somos recordados a cada passo da proibição de sairmos deles ou de fazermos demasiado ruído. E, claro, há locais de acesso vedado, especialmente em períodos de nidificação de aves.

As Canárias são abrigo de cerca de 20 espécies endémicas de Limonium, quase todas raras e ameaçadas pela destruição do habitat e pela colheita das flores — que, além de serem vistosas (de cálice azul-violeta e corola brancas ou rosa), se mantêm bonitas por muito tempo depois de secas. O L. bollei, que aprecia arribas, areias e sapais junto ao mar, floresce entre Março e Setembro, e a haste floral tem cerca de 40cm de altura. O formato das flores não difere muito do de outras espécies de Limonium, e é pelas folhas que melhor elas se distinguem. Atente nesse pormenor ao comparar o L. bollei com o Limonium arbustivo das fotos seguintes, muito ramificado, quase sem folhas e com inflorescências longas.

Limonium tuberculatum (Boiss.) Kuntze


Do L. tuberculatum, de cuja presença há também registo no norte de África e em Cabo Verde, só se conhece hoje nas Canárias a população da ilha dos Lobos.