14/06/2022

Pseudo-estrela do monte Sinai



Uma extensão de terra ressequida, sem ponta de vegetação, é muitas vezes o esconderijo onde as sementes aguardam meses ou anos pela humidade que as fará despertar. Em Fuerteventura, essa inesperada eclosão pode dar-se em qualquer época do ano e em qualquer recanto da ilha, pois as plantas anuais só cuidam da sua sobrevivência e não se guiam pelo calendário. Quem conduza pelas estradas da ilha deve por isso prestar atenção às raras manchas de cor que, nas bermas, assinalam as plantas que lograram tirar proveito da presença efémera da água. Ainda que nem todos os condutores respeitem esses sinais de trânsito, nós não hesitamos em acatar-lhes as ordens, parando de imediato o carro e procedendo ao inventário da vegetação presente no local.

Desta vez o sinal que nos obrigou a parar era violeta e estendia-se ao longo de dezenas de metros por uma vala deixada pela passagem de maquinaria pesada — talvez as mesmas escavadoras com que, uns quilómetros adiante, se faziam obras de alargamento da via. Em vez de configurar um acto de destruição, essa cicatriz na berma da estrada favoreceu a acumulação de água e deu ímpeto à vida vegetal. Mesmo em Dezembro, as plantas não se fizeram rogadas: o tapete arroxeado era obra da Matthiola bolleana — que, fosse ela planta obediente, respeitadora dos manuais botânicos e da erudição de quem os escreve, só deveria florir de Fevereiro em diante. Quando as obras rodoviárias estiverem concluídas, talvez este precário habitat tenha deixado de existir; mas, entretanto, muitas sementes foram deitadas à terra, e elas saberão espreitar a sua oportunidade, aqui ou umas centenas de metros ao lado.

Astragalus sinaicus Boiss.


A essas assembleias de pequenas herbáceas, que aparecem num ápice e desaparecem sem deixar rasto, dão os botânicos o pitoresco nome de "comunidade de terófitos", sendo "terófito" o modo erudito, derivado do grego, de designar uma planta anual. Diversos terófitos menos vistosos faziam companhia à Matthiola, entre eles uma leguminosa rasteira, muito peluda, que, a julgar pelas folhas imparipinadas e com numerosos folíolos, seria certamente um Astragalus; confirmámos depois tratar-se do A. sinaicus. O género Astragalus é predominantemente mediterrânico, contando com uma dúzia de representantes no nosso país, a maioria deles raros (como o A. glaux) ou de distribuição restrita (como o A. tragacantha). Quase todas as espécies de Astragalus nas Canárias são igualmente mediterrânicas, e o A. sinaicus não é excepção. Ainda que o seu epíteto específico aluda ao monte Sinai, no Egipto, a planta ocorre sobretudo na costa europeia do Mediterrâneo oriental, dos Balcãs à Turquia.

O Astragalus sinaicus exibe fortes semelhanças com o A. stella, que tem uma distribuição mais ocidental, estendida à Península Ibérica e a Portugal. Tanto no A. stella como no A. sinaicus (que já se chamou A. pseudostella), as folhas são densamente peludas e os frutos dispõem-se em estrela, o que é motivo para as duas espécies serem reiteradamente confundidas. Para potenciar a confusão, ambas ocorrem, nas Canárias, exactamente nas mesmas duas ilhas (Lanzarote e Fuerteventura), e frequentam os mesmos habitats áridos. Há, contudo, uma diferença evidente entre elas: as inflorescências do A. stella são sustentadas por pedúnculos muito compridos, enquanto que as do A. sinaicus são quase sésseis.

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