31/05/2014

O que os burros comem


Onobrychis humilis (L.) G. López


É consensual a apreciação pelas muitas formas, perfumes e cores das flores. Mas nem todas as flores são igualmente vistosas — vejam-se as das gramíneas, dos carvalhos ou dos pinheiros — e há mesmo algumas sem pétalas. Em geral, as flores mais sofisticadas e pigmentadas são de espécies que competem arduamente por polinizadores para assegurarem uma fertilização cruzada, oferecendo-lhes néctar e atraindo-os com aromas tentadores e matizes subtis nas pétalas. À luz dos argumentos evolucionistas, isto significa que estes atractivos deram a estas plantas benefícios e vantagens na disseminação e, por isso, esses traços se tornaram permanentes na espécie. Essa competição entre flores, é, crê-se, um dos motivos para a espantosa variedade morfológica que elas hoje exibem.

Contudo, ainda há plantas sem flores (como os fetos), e outras em que as flores se reduzem a um ovário onde se forma a semente, em geral nu ou com pouca protecção, e/ou a um estame com pólen para o fertilizar (como na Ginkgo biloba). Na verdade, isto é o essencial de uma flor e, antes de os insectos surgirem na Terra, não era preciso mais. Mas, por regra, não convém à planta ser fecundada pelo pólen dos seus próprios estames, pois um tal procedimento não favorece a diversidade, tão útil num mundo em mudança. Com a chegada dos insectos, não era só o vento que transportava pólen de umas flores para outras: as plantas que, por algum detalhe, garantiam mais visitas de polinizadores, não só obtinham sementes mais vigorosas e descendência mais numerosa, como conseguiam que esse detalhe passasse às gerações seguintes, perpetuando o sucesso.

Mas de que cor eram as primeiras pétalas? Se as flores mais primitivas não tinham pétalas (componente da flor com a tarefa de atrair, pela cor, brilho e desenho, o polinizador), como surgiram? Os cientistas acreditam que as estruturas reprodutivas da flor (ovário e estame) nasceram como folhas com função reprodutiva. Verdes ou amareladas, portanto, a julgar pela cor que vemos hoje na maioria das folhas, dos estames e do pólen. E admitem como plausível que as pétalas tenham evoluído a partir de estames modificados, que se destacaram da coluna central da flor e que, enquanto perdiam a função reprodutiva, se alargavam e achatavam para tornarem a flor maior e, por isso, mais facilmente detectável. Assim sendo, parece razoável supor que as primeiras pétalas fossem esverdeadas ou amarelas, o que talvez justifique que uma grande parte das flores mais simples (com simetria radial e pétalas dispostas em prato ou taça, adaptadas a qualquer polinizador) sejam desta cor. Aos poucos, por pressão adaptativa aos polinizadores ou ao ambiente, a flor foi-se vestindo para maior protecção (com brácteas, sépalas ou capuzes a guardar a estrutura reprodutiva dos predadores), foi ganhando formas ajustadas a certos insectos (como os esporões compridos que só as "trombas" alongadas de certas borboletas conseguem sugar) e foi adoptando outras cores (rosa, vermelho, púrpura, roxo, violeta, azul, ou o branco nacarado para as flores polinizadas pelas borboletas nocturnas). Pormenores que actuam como sinais para os polinizadores, avisando-os de que aquelas flores têm mais néctar ou é mais fácil recolhê-lo.

E vieram as margaridas, em que as flores exteriores dos capítulos são estéreis e funcionam como chamarizes para benefício de toda a inflorescência — o que relembra os estames estéreis que se transformaram em pétalas com a única tarefa de tornarem a flor mais atraente. Apareceram depois flores com várias cores ou com um padrão variegado como o que se vê nas fotos, em que as pintas ou riscas (por vezes em relevo) guiam o polinizador até ao néctar. Este, colocado em posição estratégica, obriga o insecto guloso a polvilhar-se de pólen ou a deixar no estigma o pólen que traz de outra flor. E, claro, mais recentemente surgiram as formas sedutoras das orquídeas, cujas versões monocromáticas, tão apreciadas, são, em certo sentido, um retrocesso.

Consta que o Onobrychis deve o seu nome a uma associação com os jericos, mas não pudemos confirmar essa informação. O hábito prostrado é, por certo, o único modo de se defender da ventania atlântica que sopra pelas falésias de Cascais onde a avistámos.

27/05/2014

Pascoinhas de bolso


Coronilla repanda (Poir.) Guss. subsp. dura (Cav.) Cout.


Os verdadeiros sem-terra são os que vivem nas cidades empilhados em apartamentos. A pulsão inata de cultivar uma flor ou fazer germinar uma semente só a podem realizar em jardins fragmentários, reduzidos aos vasos na varanda ou às floreiras na janela. Cabem ainda, espalhadas pelas divisões da casa, aquelas produções postiças dos viveiros holandeses que não sobrevivem ao ar livre e pouco ou nada lembram as plantas silvestres suas antepassadas. Tudo somado, a terra de que os espoliados urbanitas dispõem para cultivar as suas pobres e adulteradas amostras de natureza não ultrapassará, mesmo nos melhores casos, as duas dezenas de litros. A miniaturização praticada pelos adeptos do bonsai é a reacção possível de quem, impedido pelas circunstâncias de ter um jardim cheio de árvores, resolve encolhê-las para que elas caibam no seu apartamento.

Às vezes a própria natureza, lançando várias versões do mesmo produto em diferentes tamanhos, tenta dar uma ajuda àqueles jardineiros sem espaço para exercerem a sua vocação. Talvez assim se explique a existência destas pascoinhas em versão de bolso, embora a receita não tenha sido das mais bem sucedidas. As verdadeiras pascoinhas (Coronilla glauca) são arbustos de mais de um metro de altura, de floração intensa e perfumada, e que em Portugal aparecem sobretudo na faixa litoral entre Coimbra e Setúbal. Os afortunados com espaço para cultivá-las podem mesmo encomendar sementes; os outros, a quem só sobra um pequeno vaso num canto da varanda, poderão tentar a versão herbácea, ilustrada nas fotos. A planta cabe no apartamento mais acanhado: é esguia, não ultrapassa os 40 cm, em geral fica-se por bem menos. Não exige grandes mimos, e não morre se nos esquecermos de a regar. Um ponto fraco é as flores serem minúsculas, escassas e pouco vistosas. Pior ainda é tratar-se de uma planta anual: a sementeira terá que ser renovada todos os anos se ela própria, como aliás é de esperar em condições artificiais, não produzir sementes viáveis. Damos o braço a torcer e desistimos da ideia. Há coisas da natureza que, por muito pequenas que sejam, não nos cabem em casa.

A Coronilla repanda — que, à semelhança das suas congéneres, é uma planta glabra e azulada, com folhas compostas imparipinuladas — aparece em pastagens e em terrenos arenosos, e no nosso país está distribuída pelo interior norte e por toda a metade sul do território continental. A subespécie dura, que é a mais comum em Portugal, e que tem folíolos menores e mais arredondados do que os da subespécie repanda, só existe na Península Ibérica e em Marrocos.


Quinta das Carvalhas
Foi na Quinta das Carvalhas que vimos e fotografámos estas pascoinhas em miniatura. A quinta é uma das maiores da região demarcada do Douro, na margem sul do rio junto ao Pinhão, com grandes manchas de mato mediterrânico entremeando vinhas e olivais,  Com a desvairada guerra química que no Douro as brigadas herbicidas fazem à vegetação natural, a Quinta das Carvalhas é um lugar raro, funcionando como repositório da ameaçada riqueza botânica duriense. Por amável autorização do responsável da Quinta, percorremo-la demoradamente num dia soalheiro de Abril com o propósito de fazer um inventário das espécies vegetais espontâneas que nela ocorrem. Ficaram, contudo, largas parcelas por visitar; e, além de não conhecermos todas as plantas, muitas delas só iriam surgir mais tarde. A lista que compilámos (disponível aqui em pdf) está pois muita incompleta: o número de 134 espécies a que chegámos poderia sem grande dificuldade ser duplicado ou mesmo triplicado.

23/05/2014

Grinaldas minhotas

Spiraea hypericifolia L. subsp. obovata (Waldst. & Kit. ex Willd.) H. Huber
Antes de visitarmos as margens do rio Minho em Melgaço, consultamos o horário das marés. É que, apesar de estar a uns 50 km da foz, estas variações do nível da água também lá se sentem. Nota-se que, depois de o volume de água começar a subir, o nível máximo é rapidamente atingido, mas é longo o intervalo que leva a baixar (impressões sobre a velocidade que ilustram um resultado matemático famoso). Sem este cuidado, resta-nos a arrelia de, uma vez iniciado o caminho, a água de repente nos dar pelos joelhos, ou, se tivermos já chegado à meta, termos de esperar, entre resmungos, que o chão enxugue para podermos regressar.

Programada a jornada para que ela se faça na maré baixa, seguimos pelo leito do rio a descoberto como quem marcha em terra seca. O destino é um rochedo cinzento e silencioso, rodeado de calhau rolado, que é uma ilha na maré cheia mas agora é acessível a pé enxuto. Neste recanto, sem relvados verdejantes nem arvoredo frondoso que dê colorido, pende-nos a atenção para as pequenas coisas. E foi entre inúmeros pés de Allium schmitzii, a rescender a alho como se estivéssemos numa cozinha em pleno vapor, e abundantes rebentos de Vincetoxicum nigrum já com botões de flores de cor castanho-púrpura, que atingimos o bordo da rocha e vimos, pendurado de uma das fendas, o pequeno arbusto das fotos. E, estando nós por certo em maré de sorte, também por ali floriam alguns exemplares de Allium scorzonerifolium.

A planta, com uns 80 cm de altura, lembrou-nos, até pelo perfume, as suas congéneres de jardim (Spiraea cantoniensis ou Spiraea japonica), frequentemente usadas em sebes. A ecologia da Spiraea minhota revela idêntica vocação: ela aprecia estar à margem, seja de rios ou de bosques, desde que haja bastantes rochas a que se agarrar. A outra população desta planta que agora conhecemos está também no norte, junto a um riacho farto que corre num bosque muito bem preservado e com sombra generosa. Este é um habitat escasso ou em declínio por cá, e talvez por isso os registos desta planta em Portugal sejam tão raros.

Nas imagens pode notar alguns detalhes da planta. Por exemplo, que os caules floríferos são arqueados, de modo que as cimeiras de flores parecem flutuar, enquanto os estéreis são erectos. E que as folhas, de textura coriácea, exibem por vezes uns graciosos dentinhos no ápice. As flores são pequeninas — as pétalas medem cerca de 3 mm de diâmetro, tanto quanto os estames; na última foto, a maioria dos estames ainda não se desenrolou e forma uma coroa engraçada no centro das flores.

20/05/2014

Teoria dos três nervos


Moehringia trinervia (L.) Clairv.
As margens do rio Minho em Melgaço são a secção de perdidos e achados da flora portuguesa. Há uma ervita listada nas floras de Portugal que há anos ninguém vê e que se receia ter desaparecido do nosso país? Então vamos a Melgaço, expomos o nosso problema às águas do rio ou à folhagem rumorejante dos carvalhos, damos uma volta para espairecer, et voilá que sem aviso prévio a desejada se materializa à nossa frente. Aconteceu isso com a Nymphoides peltata, com o Thelypteris palustris, com a Inula salicina, com a erva-dos-três-nervos (nome inventado para a planta de hoje), e com várias outras que ainda havemos de contar. E a milagrosa eficiência do serviço público assim prestado à flora portuguesa não se deve por certo à presença sufocante da mal chamada e daninha erva-da-fortuna (Tradescantia fluminensis), que na verdade é uma máquina de guerra preparada para liquidar toda a concorrência.

A Moehringia trinervia, cujo epíteto específico se refere às três nervuras longitudinais bem visíveis em cada folha, e que se distribui pela Europa, Ásia e norte de África, é uma planta anual, por vezes perene, com hastes ramificadas, erectas ou ascendentes, capazes de atingir os 40 cm de altura. As flores, que aparecem entre Abril e Julho, são pequenas, de 5 a 6 mm de diâmetro, e assemelham-se, pelas suas pétalas inteiras, às de outras cariofiláceas, em especial às do género Arenaria (nos géneros Cerastium e Stellaria, representados na nossa flora por numerosas espécies, as pétalas são fendidas na ponta).

Em Portugal a erva-dos-três-nervos parece restringir-se à metade norte do território continental. Além do Minho e Trás-os-Montes, há registos antigos da sua presença na Beira (Litoral, Alta e Baixa). Frequenta bosques sombrios e, de preferência, bem conservados, o que não é por certo o caso daquele em Melgaço onde a encontrámos. Talvez esteja ali apenas de passagem para a Galiza, antes de abandonar de vez o nosso país.

17/05/2014

As coisas como elas são


Omphalodes kuzinskyanae Willk.


Ao olharmos o mar imenso, da falésia na zona costeira de Sintra, temos uma serra generosa pelas costas mas tememos pela pouca terra. Porém, nessa tarde, durante o passeio pela praia do Abano, a nossa atenção estava guardada para os recantos à sombra dos zimbros, atapetados de areia alaranjada entremeada por cascalho, à procura de flores como as do miosótis, mas brancas. É neste habitat delicado e em dunas pristinas à beira-mar, numa estreita faixa que se estende de Cascais até à Praia Grande, que vivem as únicas populações conhecidas deste endemismo português, que se julga ter existido em todo o litoral da Estremadura à Galiza.

Foi descrito a 18 Maio de 1889 por H. M. Willkomm que, pelo que lemos no Österreichische Botanische Zeitschrift desse ano, lhe atribuiu o epíteto kuzinskyanae em homenagem à esposa do botânico P. A. von Kuzinsky (o que nomeou a nossa Saxifraga cintrana). A Willkomm não passaram despercebidas as semelhanças entre esta planta, que é glauca, anual e floresce entre Abril e Maio, com a Omphalodes littoralis, endémica do litoral atlântico francês, e com a Omphalodes littoralis subsp. gallaecica, endemismo galego da província da Coruña; todavia, reparou também que a planta de Sintra tem hábito rasteiro, folhas de pontas mais arredondadas e margens não tão serrilhadas nem tão vincadamente dobradas para dentro, e que os pedúnculos das flores são mais curtos.

As três Omphalodes parecem, contudo, ter em comum um futuro incerto. Estão listadas em directivas de habitat, anexos nacionais e regionais, listas vermelhas ou na Convenção de Berna como muito vulneráveis, exigindo protecção máxima. Mas se, em Corrubedo, um guarda impedia o avanço dos turistas pela duna gigante onde em tempos poderá ter existido Omphalodes littoralis, noutros locais da costa atlântica mantém-se a extracção ilegal de areia, a limpeza descuidada das praias, a construção indevida de infraestruturas, o pisoteio e os desportos motorizados, que têm provocado uma alteração drástica do habitat, induzido flutuações perigosas no número de indivíduos das populações destas espécies, até ao seu desaparecimento em alguns nichos, e um declínio acentuado da área ocupada por estas plantas. Além disso, como a germinação das sementes precisa de temperaturas baixas, quem sabe se este mundo mais aquecido não as levará à extinção. Por cá, não havendo vigilância nem livro vermelho, os responsáveis pela natureza não têm razões para deixarem de estar tranquilos e sossegados.

Um detalhe curioso: na Nova Flora de Portugal, Amaral Franco descreve as flores da nossa Omphalodes como sendo de um azul pálido, raramente brancas. As plantas que vimos, e as que outros têm visto e fotografado, tinham todas corola branca, num tom nacarado que lembra claras em castelo, e o mesmo terá acontecido em 1889 com Willkomm, que as descreve como weisse Blumen.

13/05/2014

Das praias de Cádiz


Reichardia gaditana (Willk.) Samp.


Você vai à praia e deixa-se ficar a dormir ao sol porque não gosta de mergulhos nem de jogos de bola? Mesmo que o hábito e a família o/a obriguem a passar férias à beira-mar, elas não precisam de ser assim tão letárgicas e aborrecidas. Para deleite e instrução dos veraneantes, muitas plantas dunares confundem Agosto com a Primavera. Se aprender a conhecê-las e a tratá-las pelo nome, há-de querer reencontrá-las todos os anos, e como as plantas não vão até si terá você que ir até elas. Levante-se e caminhe. O litoral de norte a sul está equipado com passarelas que permitem observar a vegetação das dunas sem os estragos do pisoteio. Use um sistema de pontuação para classificar tudo quanto observa de acordo com a beleza e o grau de raridade. As plantas mais bonitas (esporas-bravas, narciso-das-areias, morrião-grande, assobios) são também as mais comuns, o que mostra como até a natureza obedece à lei da oferta e da procura. Numa escala de 1 (mínimo) a 5 (máximo), atingem 4,5 em beleza mas ficam-se pelo 1 em raridade. Entre as inúmeras asteráceas das dunas (malmequeres, dentes-de-leão, etc.), sempre bonitas mas algo anónimas, algumas que são escassas confundem-se com outras muito mais abundantes. Há que aprender a diferenciá-las para poder atribuir-lhes a pontuação correcta. Por exemplo, a Reichardia gaditana, hoje no escaparate, vale um indiscutível 3 em raridade; e a beleza, sempre subjectiva, cresce acentuadamente quando se debruça para ver a planta de perto. É também um gosto adquirido: ainda que a planta não o/a impressione ao primeiro olhar, quando a reencontra já o faz de sorriso aberto. Começando por classificá-la com 3, vai vê-la ultrapassar sucessivas etapas e aproximar-se perigosamente do 5. Para verbalizar a sua admiração, vai até aprender terminologia botânica sofisticada. Dirá então que a R. gaditana tem as brácteas involucrais mais bonitas de todas as asteráceas, em que a cor ruiva é elegantemente complementada pelo branco leitoso das margens escariosas.

Eis alguns dados biográficos para que possa completar a ficha da espécie. Endémica das areias litorais ibéricas, espalhada desde a Cantábria até Cádiz, mas escassa ou inexistente no resto da costa mediterrânica espanhola, a R. gaditana foi primeiramente descrita, sob o nome de Picridium gaditanum, por Heinrich Moritz Willkomm na sua obra Prodromus florae hispanicae, publicada em fascículos entre 1861 e 1880. Willkomm (1821-1895) foi um dos notáveis botânicos alemães que viajaram por Espanha e Portugal durante o século XIX e contribuíram decisivamente para o conhecimento da flora peninsular. Pelo epíteto gaditanum escolhido por Willkomm, ficamos a saber que colheu a planta nas areias de Cádiz. Poderá tê-lo feito em Agosto, pois ela aguenta-se em flor até lá. Mas à época não havia nem os hotéis nem o hábito de fazer praia que se massificou na segunda metade do século XX. Willkomm, certamente, não se estendeu na areia seminu para torrar ao sol. E, se ensaiou algum mergulho, o decoro da época tê-lo-á obrigado a fazê-lo pouco menos que vestido dos pés à cabeça. Além da areia e do mar, talvez só as plantas dunares se tenham mantido reconhecíveis e iguais a si próprias nos 170 anos decorridos desde que Willkomm visitou Cádiz.

11/05/2014

Uma salva ibérica


Salvia sclareoides Brot.


Nesta ocasião, em que todos parecem saber o que é fundamental para a salvação do país, que só por destino não consegue ser salvo por tão habilidosas ideias, vem a propósito mostrar uma Salvia, nome derivado talvez do latim salvus, que significa "salvo", "livre de perigo e dano", e que assim regista a sua fama como remédio. Outrora esteve mesmo em uso uma beberagem de Salvia que se administrava a tardos e a insensatos, para alívio comunitário.

Nos nossos passeios, encontramos em geral apenas duas das seis espécies do género Salvia que ocorrem por cá: a Salvia verbenaca, planta perene e vulgar, presente em quase todas as províncias; e a S. sclareoides, um endemismo da Península Ibérica, bienal ou perene e de ecologia mais exigente, preferindo nitidamente solos calcários; dela só há populações conhecidas na Beira Litoral, Estremadura e Algarve.

Há nelas muito em comum e a S. verbenaca tem tendência a gerar variantes locais, o que nos dificulta a tarefa de as identificar. Para nosso benefício, as Floras reúnem uma lista de dados morfológicos que as distinguem:
  1. Ambas têm uma roseta basal de folhas mas as da S. verbenaca são laciniadas enquanto as da S. sclareoides são crenadas ou serradas, muito rugosas, com aspecto bolhoso e a face inferior penugenta.
  2. Os caules da S. scaleroides são viscosos na parte inferior; na S. verbenaca é a parte superior do caule que pode apresentar pêlos glandulíferos.
  3. A S. verbenaca pode atingir os 80 cm de altura; pelo contrário, a S. sclareoides não costuma ultrapassar os 40 cm.
  4. As inflorescências de S. verbenaca têm mais flores e estas são lilacíneas ou azuladas, um pouco menores do que as de S. sclareoides, que têm corola violácea.
Desafortunadamente, nem sempre as plantas cumprem a diferenciação cromática que os manuais prescrevem. E, pior, raramente encontramos as duas espécies juntas para conseguirmos fazer uma comparação judiciosa. Por isso, na prática, atentamos num outro pormenor. A corola das salvas é bilabiada, com o lábio inferior dividido em três lóbulos, sendo o do meio mais largo. Face a uma salva, notamos se este lóbulo central se dobra vincadamente para trás e se os outros dois estão descaídos, como braços em descanso. Nesse caso, trata-se de um exemplar de S. sclareoides, uma vez que na S. verbenaca o labelo é patente e os lóbulos laterais estão erguidos como orelhas de burro.

No entender de quem regista estas coisas, o nosso povo há muito que não tem dúvidas sobre esta distinção: chama salva-dos-caminhos ou erva-crista à S. verbenaca, mas reserva os nomes salva-do-sul e salva-viscosa-dos-montes para a S. sclareoides.

06/05/2014

A ínula e a lampreia


Inula salicina L.
Nos últimos 75 Km do seu curso, onde serve de fronteira entre Portugal e a Galiza, o rio Minho não tem qualquer barragem, seja para produção eléctrica ou para armazenamento de água. É um troço que lhe permite recuperar alguma da espontaneidade cerceada pelas cinco grandes barragens que fraccionam o seu deambular pela Galiza, a última delas (a de Frieira) situada a menos de 500 metros da fronteira portuguesa. E o nosso rio Minho, livre de paredões monstruosos, tem humores e encantos que o galego rio Miño desconhece. Para começar, há as marés. Uns anos atrás, ao visitarmos uma «ilha» perto de Valença, atravessámos sem dificuldade, de galochas calçadas, um braço do rio com água pelas calcanhares. Pareceu-nos normal que o rio levasse pouca água no Verão. No regresso, o cenário tinha mudado por completo: a água dava-nos pelos joelhos, e se esperássemos mais uns minutos chegar-nos-ia à cintura. Uma lição prática inesquecível: mesmo a 60 Km da foz, como comprovámos depois em Melgaço, o rio Minho enche e esvazia diariamente ao ritmo das marés. E é também a ausência de obstáculos artificiais que permite a subsistência do salmão e da lampreia que muita gente pesca nas suas águas.

Porque no espírito tacanhamente utilitário de alguns um rio sem barragens significa um desperdício, de tempos a tempos surgem tentativas de alterar este estado de coisas. Nos anos 90 do século passado a ameaça era a construção da barragem luso-espanhola de Sela, no troço entre Monção e Melgaço. Abandonado o projecto, eis que ele ressurge, com outro propósito e roupagens quiçá mais brandas, sob o título de Estação Elevatória de Troporiz, uma das alternativas que a empresa Águas do Minho e Lima considerou, entre 2002 e 2005, para a construção de uma nova barragem de captação de água. Em maior ou menor grau, cada um destes projectos teria resultado na artificialização do rio e em perdas patrimoniais e ambientais irreparáveis. Ter-se-iam afogado as pesqueiras de Monção e de Melgaço, construções quase milenares que se confundem com a rocha esculpida pela força do rio. Ou, se não se afogassem, deixaria de haver peixe para nelas ser apanhado. E perder-se-iam importantes populações (no caso de Nymphoides peltata, talvez a última população) de algumas das espécies vegetais mais ameaçadas do nosso país (como o feto-dos-brejos).

Talvez a Inula salicina não seja assim tão rara nem esteja sob particular ameaça. É, no entanto, bastante escassa em Portugal, e até hoje só a conhecemos das pesqueiras de Melgaço. No nosso país, a sua predilecção por afloramentos pedregosos em leitos de cheia terá por certo ajudado à sua rarefacção, mas no resto da Europa, onde está amplamente distribuída, assume uma ecologia algo diferente: como nos informa Franco no vol. 2 da Nova Flora de Portugal, prefere «sítios húmidos e clareiras de matas caducifólias». É uma planta perene, rizomatosa, de hastes até 70 ou 80 cm de altura, e folhas ovadas, semi-coreáceas, as caulinares sésseis, quase amplexicaules. Reconhece-se com facilidade pelas brácteas involucrais compridas e salientes (veja na 2.ª foto). Os capítulos florais são grandes, com 3 a 4 cm de diâmetro, e surgem entre Junho e Agosto.

04/05/2014

Donzelas

Sob o calor intenso do início da tarde, éramos muitos pares de olhos atentos, animados pelo prazer de registar lembranças de um lugar novo. Os calcários de Castro Vicente haviam prometido revelar um elo inédito entre um pedaço do nordeste do país e a serra de Sicó, e não se fizeram rogados. Entre as inúmeras espécies de orquídeas e outras preciosidades, lá estava florida esta planta parasita natural da região mediterrânica que há muito procurávamos, parente rara desta outra de flores amarelas e igualmente comestível e doce.



Cytinus ruber (Fourr.) Fritsch


Sem produzir clorofila, toda a planta habita dentro das raízes do hospedeiro, perto do caule, e só é visível durante o curto período de floração, que decorre nos primeiros meses da Primavera. Na inflorescência, as flores masculinas estão no centro, as femininas no bordo protegidas por um corpete de brácteas carmim. São polinizadas por formigas e os frutos são bagas brancas com várias sementes. Estas têm um início de vida atribulado. Com escassas reservas de nutrientes, precisam de localizar rapidamente um espécime de Cistus albidus que as alimente. As observações dos botânicos parecem indicar que a roselha emite sinais químicos que a semente reconhece e cuja origem localiza, desde que o processo decorra em poucos dias (antes que as reservas da semente se esgotem) e a poucos milímetros do futuro hospedeiro: a frágil semente lança então uns pequenos filamentos que se orientam em direcção ao Cistus, conectando-se ao tecido vascular da planta hospedeira.


Cistus albidus L.
Há quem deduza destes detalhes que não se trata afinal de puro parasitismo; que as duas plantas, roselha e pútega, se ajudam mutuamente. Para a parasita, as vantagens são óbvias; mas é um enigma que benefício tira o Cistus albidus desta parceria. Talvez a planta parasita facilite a captação de azoto, aumente a presença de fungos que enriquecem o solo, ajude o hospedeiro a absorver algumas substâncias orgânicas e o proteja de infecções. Mistério maior parece ser o processo evolutivo que levou plantas, seres em geral dotados de uma auto-suficência invejável, a renunciarem ao talento de fotossintetizar.


Castro Vicente