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20/11/2022

Bencomia duas vezes

As espécies dióicas (em que as flores masculinas e femininas nascem em indivíduos distintos) parecem-nos mais bem adaptadas às exigências da Terra, talvez pelo carácter igualmente dióico da nossa espécie. Mas, nas plantas, essa separação dos géneros obriga-as a encontrar um meio eficaz de coordenar a floração (algo que é automático em flores hermafroditas) e a fabricar flores masculinas claramente distintas das femininas, não vá dar-se o azar de os polinizadores se enganarem e não iniciarem a sua tarefa na fonte de pólen. Por isso, entende-se que, em espécies dióicas cuja fecundação depende do apoio de insectos, as flores masculinas sejam frequentemente maiores ou mais vistosas, e até possam estar prontas a ser visitadas mais cedo do que as femininas. É o caso dos salgueiros, cujas flores masculinas asseguram, mal surge a Primavera, o fornecimento de pólen e néctar a inúmeros insectos recém-nascidos que, ávidos por proteínas, inicialmente as preferem às femininas. Pelo contrário, na Ginkgo biloba, espécie dióica que produz amentilhos cónicos e se serve do vento para espalhar o pólen, as flores dos dois géneros são inconspícuas e reduzidas ao essencial.

As espécies do género Bencomia, também dióicas, seguem outra estratégia. As flores dos dois tipos são diminutas, quase indistinguíveis, mas as masculinas nascem agrupadas numa longa espiga (pode chegar aos 40cm) amarelada, enquanto que as espigas femininas não ultrapassam os 12cm e têm uma tonalidade rosada. Bencomia é um género endémico das ilhas Canárias, havendo notícia de quatro espécies, todas arbustivas. A folhagem delas é perene e muito graciosa: as folhas são grandes, pinadas com folíolos ovados, de um tom verde escuro brilhante que contrasta com o tomento esbranquiçado na face inferior; além disso, têm margens uniformemente serradas e agrupam-se em (falsas) rosetas terminais, o que dá à planta o perfil de uma pequena árvore, com um tronco curto mas uma copa atraente.

Comecemos pela Bencomia exstipulata, conhecida como bencomia de cumbre, que ocorre em lugares de altitude elevada nas ilhas Tenerife e La Palma. É tardia a florir (entre Abril e Maio), mas é a mais bonita das que conhecemos. Vimos alguns exemplares em dois locais na montanha do Teide: nos Roques de Chaval, onde estavam protegidos por uma cerca dada a sua raridade, e em La Fortaleza. Podem analisar mais pormenores desta espécie nesta ligação.

Bencomia exstipulata Svent.




A Bencomia caudata (chamada bencomia de monte) é menos rara do que a espécie anterior e floresce entre Fevereiro e Junho. Ocorre nas ilhas centrais do arquipélago (Gran Canária, Tenerife, El Hierro e La Palma). As fotos são de exemplares dos barrancos de Badajoz e Añavingo, em Tenerife. Algumas floras dão-na como presente também na ilha da Madeira, no que constitui um excelente exemplo de uma falsa notícia transformada em verdade pela comunicação deficiente entre botânicos. A Flora of Madeira, de J. R. Press e M. J. Short, esclarece o engano: durante o século XIX, alguém avistou um exemplar masculino a norte do Funchal, plantado num jardim. No entusiasmo da descoberta, ninguém se lembrou que uma espécie dióica não pode ser um endemismo numa ilha se dela só aí existir um indivíduo masculino. Esta Bencomia gosta de ladeiras expostas ao sol, na laurissilva ou em pinhais, entre os 500 e os 1200 metros de altitude.

Bencomia caudata (Aiton) Webb & Berthel


A Bencomia brachystachya (dita bencomia de Tirajana) floresce em geral um mês mais tarde do que a espécie anterior, e só há registo dela na Gran Canaria. Ainda não a conhecemos, mas podem compará-la com a B. caudata e a B. exstipulata aqui.

O isolamento entre as ilhas Canárias criou uma outra espécie de bencomia, a Bencomia sphaerocarpa (bencomia herreña), cuja distribuição se restringe a El Hierro. Ainda não visitámos esta ilha, mas há boas fotos da planta neste portal.

29/09/2018

Marcetella, menino ou menina?

Subíamos nós a pé por uma estrada íngreme que liga Los Silos a Tierra del Trigo, em Tenerife, quando avistámos na berma um arbusto elegante e ramoso, de folhas glaucas e pinadas, dispostas em rosetas muito vistosas. Parecia enfeitado com espigas pendentes de flores diminutas e sésseis, cabeludas mas sem pétalas, protegidas por sépalas em tom verde escuro com matizes rubros. Viam-se também cachos de frutos que nos lembraram sâmaras de ulmeiro ou de Sanguisorba. A embelezar o conjunto notava-se uma curiosa penugem avermelhada nos talos superiores.



Marcetella moquiniana (Webb & Berthel.) Svent.
Depois de amplamente registado em foto, reiniciámos a caminhada, mas estacámos de imediato: ali estava outro arbusto semelhante, mas não igual: a folhagem não era tão azulada, as sépalas eram bastante mais reviradas e a cor dominante era o verde-amarelado; além disso, parecia dar frutos diferentes. Mas os frutos não eram frutos (eram flores ainda em botão) e tratava-se afinal da versão masculina do arbusto anterior — que, confirmámos depois, é de facto de uma espécie dióica.



O nome do género é uma homenagem do botânico sueco Eric S. Sventenius ao Padre Adeodat Francesc Marcet i Poal (1875-1964), estudioso da montanha de Montserrat, na Catalunha, que em 1903 iniciou um herbário exaustivo da flora desta região. A colaboração frutuosa entre Marcet e os botânicos Joan Cadevall, Carles Pau, Pius Font i Quer e Sventenius, entre outros, trouxe à lembrança o contributo notável que resultou da cooperação científica entre o Padre Miranda Lopes, de Vimioso, e os botânicos Gonçalo Sampaio, Júlio Henriques e A. X. Pereira Coutinho. O epíteto moquiniana refere-se ao naturalista francês Christian Horace Benedict Alfred Moquin-Tandon (1804–1863), que foi director do Jardim Botânico de Toulouse e, posteriormente, do Jardin des Plantes, e também co-autor de uma História Natural das Ilhas Canárias (1835–1844).

Marcetella, da família Rosaceae, é um género exclusivo da Macaronésia, com duas espécies conhecidas: a M. moquiniana das ilhas Gran Canaria, Tenerife e La Gomera; e uma espécie endémica na Madeira, M. maderensis (Bornm.) Svent., designação ainda provisória pois alguns estudos sugerem ser ela mais próxima do género Sanguisorba. Na nossa visita à Madeira não vimos nenhum exemplar dessa segunda Marcetella, que se afigura ser ainda mais rara do que a sua irmã das Canárias. Habita escarpas rochosas expostas do litoral e interior da Madeira, desde a Câmara de Lobos até ao Pico do Cedro, sem subir além dos 700 metros de altitude. Locais a explorar numa próxima visita ao arquipélago.

17/05/2017

O que não se vê


Aphanes australis Rydb.
É da família das rosas e grácil, mas tão pequenina que se julgaria difícil encontrá-la. Contudo, são raros os interstícios entre paralalepípedos de rua, ou as gretas e bermas de campos de cultivo e pousios, onde ela, frágil e prostrada, não surja no Verão. Com um ciclo de vida anual, depende bastante da sorte para se manter em tais habitats; mas, quando o solo é seco, arenoso e com baixa ocupação, forma tapetes densos e muito macios pela penugem que cobre toda a planta.

Sendo tão inconspícua, admiramo-nos que tenha nomes populares. Uma breve consulta a manuais de farmacopeia, porém, revela a razão: talos e folhas têm propriedades medicinais muito benéficas, embora agora em desuso. Não surpreendentemente, quase todas as designações se referem a detalhes morfológicos das folhas, afinal a parte mais visível da planta: salsinha, falsa-salsa, pé-de-leãozinho. Para além das folhas em leque, muito divididas e sem pecíolo, consegue-se notar como as flores minúsculas, esverdeadas, hermafroditas e apétalas, se aninham bem aconchegadas na base das folhas e protegidas pelas estípulas. Este pormenor justifica o nome dew cup (taça de orvalho) que lhe atribuem em inglês.

O género Aphanes abriga umas vinte espécies, das quais cinco estão registadas em Portugal. São de facto todas muito parecidas, mal se distinguindo pelo formato e tamanho das estípulas, das flores e dos frutos, sobretudo quando são plantas jovens. Alguns estudos apontam também para um acentuado parentesco (genético, do que não se vê) entre estas espécies e as do género Alchemilla. Uma mudança taxonómica aumentaria o nosso contingente neste último género, de que só se conhecem as populações de Alchemilla transiens da serra da Estrela.

01/12/2015

Doces são os campos


Nascente "tradicional" do rio Ebro, Fontibre, Cantábria
Um rio que nasce na Cantábria a 40 Km do Atlântico deveria lançar-se sem hesitações para norte, rompendo impetuosamente por montanhas e desfiladeiros. Cauteloso, porém, e sabendo dos obstáculos formidáveis que se lhe deparariam no trajecto mais curto, arrepia caminho e abala para sul — ou, mais exactamente, para sudeste. O seu destino, a mais de 900 Km de distância, é a costa catalã do Mediterrâneo, à qual se dirige correndo (se é que as barragens lhe permitem correr) numa linha paralela à cadeia montanhosa dos Pirenéus. Em lugar de se ver desprezado como pusilânime ao optar por tamanho desvio, o rio Ebro é de pronto alçado ao prestigioso Top Three dos rios ibéricos, juntando-se ao Douro/Duero e ao Tejo/Tajo: tem a segunda maior bacia hidrográfica (a seguir ao Douro) e é o segundo mais comprido (a seguir ao Tejo). Se nos restringirmos aos rios exclusivamente espanhóis, ocupa incontestado o primeiro lugar do pódio. E a perda desse estatuto é uma razão ponderosa — que, talvez por distracção, não tem sido evocada pelas partes em confronto — para que a Catalunha nunca se torne independente.

Em Fontibre, no lugar onde o rio emerge do subsolo, há uma coluna de pedra a que se acede por um caminho calcetado e por um lanço de sete degraus, tudo com muita sombra de freixos e de padreiros. O rio assume de imediato uma pose de maturidade, recusando ser um fio de água que se vence num salto, e ninguém diria, depois da primeira curva, a uns vinte ou trinta metros de distância, que se trata de um recém-nascido. Esse crescimento instantâneo atraiu desconfianças e averiguações, sabendo-se hoje que o Ebro não nasce precisamente ali, mas numa das vertentes do Pico Tres Mares, e com o nome de rio Híjar. A dada altura do seu breve curso, o rio Híjar perde grande parte do caudal por infiltração no solo. As águas que lhe são bruscamente subtraídas reaparecem à superfície em Fontibre para formar o Ebro; e as que lhe sobram após o parcial esvaziamento têm igual destino quando o Híjar se junta ao Ebro, desta vez à luz do dia, uns 10 Km a leste.



Filipendula ulmaria (L.) Maxim.


O bosque que envolve a nascente tradicional do Ebro surge-nos à primeira vista como um asséptico parque de merendas, com relva cuidadosamente aparada e caminhos que até senhoras com salto alto percorreriam sem tropeçar. Não parece ser local onde um botânico amador possa com proveito dedicar-se ao seu passatempo favorito. Tudo muda, contudo, se nos afastamos da nascente e seguimos pelos caminhos de terra batida entre o arvoredo. Deixa de se fazer limpeza à escovinha e as herbáceas no sub-bosque são autorizadas a despontar: Anacamptis pyramidalis e outras orquídeas já secas, Sanicula europaea, Astrantia major, Primula veris, Helleborus viridis, etc. Junto à água, como é seu costume, reencontramos uma planta que no norte de Espanha é frequente, mas que em Portugal só vimos, e nunca em flor, em Trás-os-Montes e nas margens do rio Minho.

A Filipendula ulmaria, essa erva altaneira (até 2 metros de altura) que é chamada de rainha-dos-prados ou coisa equivalente em diversas línguas, e em inglês é docemente apelidada de meadowsweet, não se pode queixar de falta de reconhecimento. Largamente distribuída pela Europa e pelo extremo ocidental da Ásia, à beleza e à fragrância junta a utilidade, pois foi a partir do ácido salicílico dela extraído que se iniciou no final do século XIX a produção da aspirina. As suas pequenas flores, semelhantes às de outras rosáceas como a cerejeira e a amendoeira, e dispostas em grandes panículas que lembram flocos de algodão, aparecem de Junho a Agosto. A segunda espécie europeia do género, Filipendula vulgaris, também cognominada rainha-dos-prados mas devendo mais propriamente, pelo menor tamanho, ser chamada de princesa, tem uma distribuição mais ampla em Portugal, surgindo desde Trás-os-Montes até à Estremadura. Distingue-se pelas folhas mais estreitas e divididas, e pelas flores maiores mas menos numerosas.

14/11/2015

Estender a manta


Alchemilla xanthochlora Rothm.




Alchemilla alpina L.
Basta um olhar de relance pelos jornais para notarmos como a língua portuguesa tem sido contaminada por anglicismos ou neologismos semânticos um pouco insólitos. Há que reconhecer que o português não parece ter a mesma facilidade que o inglês em construir palavras curtas com um significado exacto (como email, internet, google, slogan, stress). Mas não se perdoa o uso intensivo de estrangeirismos havendo vocabulário equivalente em português que, por ignorância ou falta de brio como utentes da língua portuguesa, muitos desprezam ou tratam mal. Ora vejam-se os casos de "phones" em vez de "auscultadores"; "hoodie" em vez de "capuz"; "printar" em vez de "imprimir"; "saite" em vez de "sítio"; "antecipar" em vez de "prever"; "deletar" em vez de "apagar"; "resiliente" em vez de "resistente"; "eventualmente" em vez de "por fim", "assumir" em vez de "supor", "mapa" em vez de "função". Dirão que tamanha quantidade de palavras ou significados novos é um enriquecimento da língua, tal como para alguns a introdução de flora exótica o é do nosso património natural. Pois sim, mas todos os acrescentos recentes são como os mencionados acima e, portanto, não se trata de vocábulos originais. De facto, não nos lembramos de ver nascer recentemente uma palavra nova na língua portuguesa (excluindo desta categoria os híbridos notáveis de Mia Couto), nem sabemos bem como isso ocorre. Ainda que a hipótese soe improvável, seria prodigioso que a linguagem criasse realidade ainda não estreada.

A brevidade telegráfica a que aludimos não é indispensável nas expressões vernaculares com que designamos plantas e bichos, e não nos parece faltar talento para as inventar. Para o género Alchemilla, há registo de vários nomes curiosos, como erva-estrelada, pata-de-leão e pata-de-urso; em inglês, por falta de leões e ursos, chamam-lhe lady's mantle. Estas herbáceas são parentes das rosas, cerejeiras, morangueiros, macieiras, pereiras, etc., na família Rosaceae, mas não têm como estas espécies flores vistosas. Ervas perenes, sobrevivem com um rizoma aos rigores do Inverno, além de resistirem bem à humidade elevada e ao ar rarefeito das montanhas. Na Primavera, exibem folhas de longos pecíolos, palmadas como leques e divididas, notando-se nas margens uns dentinhos ou alguma penugem. As flores, essencialmente de Verão, são minúsculas, esverdeadas e sem pétalas, e agrupam-se em inflorescências terminais bem destacadas da folhagem. Há decerto polinizadores atraídos por esta configuração floral, mas a maioria das espécies de Alchemilla não se reproduz sexualmente, optando pela apomixia (isto é, o fruto desenvolve-se sem que haja fecundação, apenas a partir do óvulo ou de uma célula vegetativa). Não surpreende, por isso, que convivam no mesmo habitat espécies distintas de que não se conhecem híbridos, como estas duas vizinhas que vimos na Cantábria.

O género Alchemilla não é raro na Península Ibérica (onde há registo de 84 espécies) nem na Europa e Ásia (onde esse número ascende a cerca de 300), e até há algumas espécies tropicais neste género, nativas de montanhas altas do sul de África e da América do Sul. Mas a sua preferência por regiões montanhosas e muito frias exclui quase todo o território português, bafejado por clima ameno e com influência mediterrânica. Sobra o topo da serra da Estrela, claro, onde se conhece uma espécie de Alchemilla que vive em fendas de rochas acima dos 1700 metros, mas que nunca vimos.

18/07/2015

Saúde com árvores


Sorbus latifolia (Lam.) Pers. — Parque da Saúde, Guarda


Entre as muitas criações humanas, há uma que distingue povos e eras pelo modo inventivo como é interpretada e pela evolução que a tem vindo a moldar: trata-se da estrutura arquitectónica, urbanística e paisagística a que chamamos «cidade», guardiã de uma vivência colectiva inestimável. Opõe-se ao «campo», também artificial, essencialmente por ter quase todo o solo impermeabilizado em vez de terrenos de cultivo, bosques ou matos. Todavia, mesmo nas cidades há recantos que a vegetação espontânea consegue colonizar, sejam eles cemitérios, parques, envolventes ajardinadas de escolas ou taludes de estrada, embora a biodiversidade seja pequena. Dirão que tem de ser assim, que é o preço que o uso dos lugares e o conforto que apreciamos comportam, mas a verdade é que algumas cidades (inglesas, mas não só) mostram que a incompatibilidade entre a vida urbana e a vida silvestre pode não ser tão grande como se imagina. Entre nós, parte da culpa da desertificação dos nossos habitats é da limpeza excessiva, com roçadeiras mas também (o que é muito pior) com herbicidas, dos relvados, jardins, parques ou margens de ribeiros que os municípios não entubaram. A pedido, os agentes dessa limpeza podem (raramente) poupar a vegetação de umas poucas manchas, mas têm de as rodear de uma sebe elegante para que não haja queixas pelo aparente desleixo. É que, para muitos, vegetação espontânea é ainda sinónimo de erva daninha, e o que é valioso num jardim ou parque citadino é a planta dita ornamental, de preferência vinda do estrangeiro.

Mas há excepções, e são elas que merecem atenção. Quando entramos no Parque da Saúde da Guarda (classificado como “conjunto de interesse público” no ano passado), somos recebidos por um bosquete denso e tranquilo de sequóias (Sequoiadendron giganteum) cuja penumbra mal permite a sobrevivência de umas poucas herbáceas rasteiras, mantidas com saúde pelos zeladores do Parque. Os edifícios, de 1907, onde funcionou um sanatório para tratamento de doentes com tuberculose, têm janelas altas, varandas com vista ampla para as montanhas e gradeamentos primorosos. Em volta, persistem caminhos por bosques frondosos, assentos para o descanso de quem ali convalesce, e alegres pipilares de muita passarada. Mais acima, há uma zona rochosa onde viceja vegetação da serra. Estranha-se tanto verde: não é este o modelo mais recente de hospital, com fachadas em esquadria, gigantescos parques de estacionamento, entradas de hotel, corredores sem luz directa a cheirar a cloro, e umas magras floreiras onde a natureza domada parece feita de plástico.

É precisamente nessa elevação granítica, num pinhal ralo, que moram alguns exemplares de Sorbus latifolia. Esta é uma árvore caducifólia que aprecia bosques frescos, soutos e principalmente carvalhais, em zonas de montanha perto de linhas de água. Entre os exemplares que vimos no Parque da Guarda, um é uma árvore adulta de copa bonita e os outros têm ainda porte arbustivo. Em Junho, estavam todos profusamente enfeitados com corimbos densos de flores brancas pequeninas, com cálice e pedicelo forrados por lã branca. O fruto é um pomo alaranjado que parece uma pêra anã. As folhas são simples, arredondadas, de margens duplamente serradas, com lóbulos triangulares pouco profundos separados por indentações mais vincadas e face inferior penugenta de cor cinza. Estas características das folhas lembram outras espécies de Sorbus, e crê-se que a S. latifolia resulte de uma hibridação da S. torminalis com a S. aria (que nunca vimos).

Esta Sorbus é nativa da metade norte da Península Ibérica, centro e sul da Europa. Por cá a distribuição é preocupante, pois só parece ocorrer no centro-leste do país, e no portal Flora-On são ainda poucos os registos. Consta também do catálogo das espécies ameaçadas em alguns locais da Europa.

27/06/2015

A rosa da Sertã

Rosa micrantha Borrer ex Sm.


Se a faculdade de nos rirmos não derrete com o calor, então podemos achar graça a quem resolveu chamar Sertã a uma das vilas mais quentes do país. A Sertã já ferve ao lume? Ah Ah Ah, pois é... E soltamos um esboço de riso enquanto enxugamos a testa com o lenço ou abanamos debilmente o jornal à frente do rosto. A piada não nos parece das mais conseguidas e nem moramos na Sertã, aconteceu-nos apenas passar por lá quando a Primavera ensaiava prematuramente para ser Verão. Quem mora na Sertã já lhe sofre as temperaturas, não precisa de juntar ao desconforto físico o embaraço de um trocadilho requentado.

É com o calor que se dá o fenómeno atávico de o homem se transformar num animal anfíbio, como que querendo regressar ao berço ancestral de onde a evolução o expulsou. As terras escaldantes do Pinhal Interior Sul são abençoadas com rios e ribeiras que serpenteiam nos seus leitos de xisto por entre montes cerradamente preenchidos com pinheiros e eucaliptos. Onde as estradas se cruzam com os cursos de água aparecem inevitavelmente as praias fluviais, que não precisam de areia para serem assim chamadas, bastando que seja fácil o acesso à água. A ribeira da Sertã (com 75 Km de extensão) e a ribeira da Isna (45 Km) têm, cada uma delas, pelo menos uma dezena desses oásis de Verão, em que a língua mais falada entre os que mergulham de chapão ou se deixam estar com água pela cintura é (oh lá lá) o francês. Não sendo função deste blogue fornecer dicas de veraneio, dispensamo-nos de listar as melhores praias fluviais da Sertã e arredores. Para quem se interessa por plantas, é nos leitos rochosos destas ribeiras ou entre o arvoredo das suas margens que se concentram as surpresas botânicas, quando já pouco sobra para ver nos montes ocupados por monoculturas florestais ou ressequidos pela estiagem. O único inconveniente é estarmos vestidos da cabeça aos pés e de máquina fotográfica em punho no meio de tanta gente que só quer ir a banhos. O melhor mesmo é fazer as duas coisas: botanizar sem esquecer de mergulhar.

Ao contrário das rosas de jardim, que vão agora dando início à sua temporada de glória, as rosas silvestres já não estão em flor. Nem parece crível que estas flores de cinco pétalas hesitando entre o branco e o rosado tenham algum parentesco com aquelas coisas túrgidas e farfalhudas, de cores variadíssimas, cultivadas em geométricos canteiros de buxo. Esta rosa da Sertã, fotografada junto à ribeira com o mesmo nome mas existente em muitos pontos do país e em grande parte da Europa, não é porém muito diferente das rosas espontâneas que foram domesticadas e combinadas ao longo de séculos para darem origem às milhares de variedades ornamentais que hoje se conhecem. Mas há que levar o assunto com cautela: para quem insiste em dar os nomes certos às plantas espontâneas, dizer que as rosas não são muito diferentes umas das outras é um eufemismo dos mais atrevidos. A proliferação de híbridos e de micro-espécies, as difusas fronteiras entre espécies oficialmente distintas, a subtileza dos caracteres diagnósticos — estas e outras dificuldades tornam o género Rosa praticamente inacessível aos não especialistas. É muito provável que a planta das fotos seja a Rosa micrantha, e isso vê-se não tanto pelas flores (apesar do epíteto micrantha, elas não são de menor tamanho do que as de espécies próximas) mas mais pelos espinhos (4.ª foto), que têm a ponta claramente arqueada e a base decorrente. Também os pêlos glandulosos que revestem cálices, pedúnculos e folhas parecem estar nos sítios certos. Contudo, se em vez da Rosa micrantha for outra coisa qualquer, também não teremos falhado o alvo por muito. Valeu a pena, pois há quase cinco anos que aqui não era vista uma rosa.


ponte das Cabras sobre a ribeira da Sertã

31/01/2015

A árvore que sobra


Sorbus torminalis (L.) Crantz


Desde crianças que não gostamos de ser meros espectadores. Esforçamo-nos desde então por traçar rectas, caminhos mais curtos ou mais rápidos, numa azáfama transformadora que, se destrói, logo tenta consertar para que não se note o estrago. Chegamos agora facilmente a muitos lugares e neles não faltam florestas acabadas de plantar (mas por que será que elas nos lembram desertos?), albufeiras onde estrepitosas motos de água permitem a descontracção ansiada depois de uma semana de canseira citadina (mas onde está o rio bravo que ali se admirava?) e centros de interpretação com promessas de uma via privilegiada de comunicação com a natureza.

Lamentavelmente, a natureza não tem espinhos ou ganchos com que se defender, anda muito melindrada e nem sempre resiste a tanto empreendedorismo. Decerto há plantas que também aproveitam os estradões, abertos serra acima a pensar nas eólicas, para experimentarem outros habitats favoráveis ou apenas colonizarem o novo espaço disponível. E também conhecemos as que apreciam as clareiras dos novos matagais de eucaliptos com que esverdeamos o país. Mas, mais frequentemente, depois de serem maltratadas ou de lhes derrubarem o bosque de sombra, humidade, musgo e sossego em que viviam, as plantas não conseguem adaptar-se ao novo ambiente e definham. Talvez seja essa a razão dominante para a raridade desta árvore, uma das quatro do género Sorbus no nosso país. Dela há por cá poucas populações conhecidas, avisando a Nova Flora de Portugal, de Amaral Franco, que elas se restringem às serras do Gerês, Nogueira e Gardunha, onde os carvalhais também já foram mais abundantes. Os registos da Flora On, porém, indicam outros locais onde a espécie resiste, na Beira Alta e em Trás-os-Montes.

O espécime que fotografámos está em Castro Vicente; ele e um companheiro mais novo parecem ser únicos numa vasta área. Encontrámo-lo graças a uma indicação do Miguel Porto, mas chegámos tarde para ver as cimeiras de flores, e os frutos não estavam ainda formados. As pétalas são brancas e rodeiam inúmeros estames, como no pilriteiro (Crataegus monogyna), e em 1753 Lineu até lhe chamou Crataegus torminalis. As folhas ainda se mantinham frescas e pudemos verificar como são glabras (embora tenham sido meio penugentas no início da Primavera), de textura rija e contorno profundamente lobado; é esse o traço que o distingue das restantes sorveiras portuguesas.

Esta sorveira (S. torminalis) é nativa do centro e sul da Europa, norte de África e parte da região mediterrânica. A informação do portal Anthos diz-nos que ela se encontra bem disseminada na Península Ibérica, mas só do lado espanhol. Ao estudarmos as referências sobre ela, lemos que o epíteto latino torminalis se refere ao risco de problemas intestinais que a ingestão das bagas pode provocar. E aprendemos ainda que esta árvore é inerme.

20/09/2014

Ginja perdida no mato


Prunus lusitanica L. subsp. azorica (Mouill.) Franco



Lembra-se do azereiro? Esse mesmo: uma árvore de folha perene, floração vistosa e perfumada, que, apesar de nativa em Portugal, é rara nos nossos jardins, e que Lineu descreveu em 1753 a partir de exemplares portugueses. As populações de azereiro concentram-se em bosques sombrios e húmidos, margens de cursos de água, carvalhais e loureirais. Vimo-lo nas serras do Gerês, Estrela, Açor e Marão, e Amaral Franco refere-o também em Alvéolos, Buçaco, Pampilhosa e Sintra. Nos Açores, onde lhe chamam ginjeira-do-mato, esta árvore procurou, e encontrou facilmente, o mesmo tipo de habitat em ravinas, crateras de rocha vulcânica e nas margens de ribeiros, fazendo também parte da floresta laurissilva mais bem preservada, a altitudes que rondam os 600 metros. Já terá sido numerosa, mas a desflorestação para aumentar a área de pastoreio ou de uso agrícola, e a invasão de espécies exóticas, colocaram-na quase à beira da extinção: restam nove populações escassas, e apenas em seis das ilhas açorianas. Junte-se a estas ameaças o facto de apenas duas espécies de aves endémicas, o pombo torcaz dos Açores (Columba palumbus azorica) e o melro-preto (Turdus merula azorensis), serem capazes de comer as ginjas inteiras e ajudar à sua dispersão, e entende-se por que está a ginjeira-do-mato no topo de uma lista de cem plantas nativas a exigir há muito medidas de conservação eficientes.

A ilha de São Miguel conta com o maior contingente desta planta, que aliás se crê ser imprescindível para a sobrevivência do priôlo (Pyrrhula murina), um passarinho que é endémico desta ilha. No Faial só conseguimos vê-la no Jardim Botânico, havendo contudo registos de uns poucos indivíduos na parte ocidental da ilha. No Pico encontrámos algumas ginjeiras isoladas, nitidamente ameaçadas pelo incenso. E nas Flores a população da espécie reduz-se a um único indivíduo. Mas, afinal, por que é tão importante esta contagem? Porque o azereiro dos Açores não é o mesmo que ocorre no continente.

De facto, em 1964, Amaral Franco compilou as diferenças morfológicas mais notórias, propondo então que o azereiro açoriano se designasse Prunus lusitanica subsp. azorica, reservando o nome P. lusitanica subsp. lusitanica para a versão continental. No essencial, resumem-se a isto: a ginjeira não é tão alta como o azereiro; as folhas dela são elípticas, as dele são lanceoladas; as hastes florais da ginjeira têm muito menos flores, embora as corolas sejam maiores; as bagas açorianas são também um pouco mais gordas e redondas, nascendo com um pé ligeiramente mais longo. Repare aqui nestes detalhes, comparando essas imagens com as fotos que lhe trazemos da ginja-do-mato. Naturalmente, estas peculiaridades de forma e tamanho não bastam hoje aos botânicos para aceitarem distinções taxonómicas. E, recentemente, foi feito um estudo da diferenciação genética entre as plantas açorianas, e entre elas e as versões continental e madeirense (Population genetic structure and conservation of the Azorean tree Prunus azorica, de O. Moreira et al., Plant Syst. Evol., 2013). As conclusões apoiam claramente a distinção da subespécie que Franco propôs, mas não a autonomia numa nova espécie (Prunus azorica) como sugeriram Rivas-Martinez et al. em 2002 (Vascular plant communities of Spain and Portugal: addenda to the syntaxonomical checklist of 2001. Part II. Itinera Geobotanica).


Pico: estrada para a lagoa do Paul