"Tive de derrubar, doutor"
«É um velhinho de ar humilde, que tem sua casa em um subúrbio do Rio; ninguém dá nada por ele. Vale, entretanto, muitas centenas de milhares de cruzados - pois não é certo que o homem vale pelo que tem? Gosta de viajar pelo interior do estado do Rio, às vezes vai até Minas ou Espírito Santo - sempre de ônibus ou de trem. Conversa devagarinho com as pessoas que vai encontrando, gosta de falar sobre lavoura - "diz que a safra de milho este ano está muito grande, não é ? O preço já caiu para um terço..." Sua conversa agrada; ele quer saber quantos alqueires tem aquela fazenda - "muita mata? e o gado?" - e vai-se informando, sabendo das coisas. Não se interessa pelas fazendas prósperas; adora histórias de filhos de fazendeiros que estão estragando a propriedade, viúvas roubadas pelo administrador, metidas em negócios na cidade - e de repente se interessa por uma fazenda.
Dá gosto assistir a sua conversa com o dono da fazenda. Leva semanas, até meses. Visita a fazenda, olha a lavoura, a criação, conversa com os colonos, examina a terra, não resolve nada. É no Rio que se encontrará depois com o dono; confessa que tem outra fazenda em vista, bota defeitos naquela, aliás reconhece que é uma boa propriedade, mas muito mal situada, tão longe, ainda mais agora que suprimiram aquele ramal da estrada de ferro... Quando o fazendeiro diz que recebeu uma proposta, pede licença para perguntar - "inda que mal pergunte, quanto lhe botaram pela fazenda, doutor? "- e acha que sim, é um bom negócio, ele não pode oferecer tanto..." É à vista, doutor?"
Porque sua força é esta: compra à vista. Quando, afinal, o outro lhe entrega a escritura, ele vai para a fazenda. Vende os móveis que houver, o chumbo do encanamento, o gado... É um mestre em desmanchar fazendas, em cortar a mata, em liquidar aos poucos tudo o que a fazenda tem de fazenda; honestos alqueires de milho se transformam em equívocos metros quadrados de loteamento.
"E aquela árvore tão bonita que tinha aqui na frente?" - lhe perguntei. "Tive de derrubar, doutor; estava ameaçando cair..." É mentira; seu filho me contou que ele vendeu a madeira por duzentos contos; era uma árvore de cem anos, plantada por um antigo fazendeiro, orgulho da sede, árvore mandada vir do estrangeiro, carvalho ou sequóia - os antigos fazendeiros tinham desses caprichos.
E algum tempo depois o velhinho volta para o seu subúrbio no Rio com mais algum dinheiro. "Aquela fazenda? Ah, doutor, eu tive de dispor."»
Rubem Braga, As boas coisas da vida (1988)