24/07/2021

Sabugueiro das levadas

O sabugueiro (Sambucus nigra), estimado pelos seus frutos comestíveis e por ser abrigo e alimento de muitos insectos e aves, é das poucas árvores indígenas que colonizam terrenos baldios e jardins abandonados nas nossas cidades. Recorda-nos o poder regenerador da natureza, fazendo-nos sonhar com sítios melhores. Quando o vemos na orla de descampados poeirentos onde estacionam carros ao Deus dará, desejamos que já fosse fim-de-semana e que o mesmo sabugueiro sombreasse as margens frescas de um rio límpido. Ou que estivéssemos numa das levadas da Madeira (por exemplo na do Caldeirão Verde) e que tudo fosse verde e frondoso, longe do trânsito motorizado, dos compromissos e dos prazos.

Sambucus lanceolata R. Br.


Embora muito semelhante, o sabugueiro da Madeira (Sambucus lanceolata) não é igual ao sabugueiro do continente. As obras de referência apontam-lhes três diferenças: o Sambucus lanceolata é completamente glabro, enquanto que o S. nigra pode ter alguma pilosidade (muito rala, talvez só visível à lupa) nas nervuras do verso das folhas; os frutos do primeiro ficam amarelos quando amadurecem, os do segundo ficam negros; e as flores do sabugueiro madeirense, ao contrário das do continental, são quase inodoras. Em quase tudo o resto — na folhagem imparipinada, na cor e textura do tronco, no aspecto frágil da ramificação, nas inflorescências corimbosas, no porte geral e na silhueta — os dois sabugueiros são praticamente indistinguíveis, e talvez fosse taxonomicamente mais defensável considerar um como subespécie do outro. Tem sido aliás essa a tendência em casos análogos: as variantes norte-americanas do sabugueiro, antes consideradas espécies autónomas, são agora tidas como subespécies do Sambucus nigra (S. nigra subsp. canadensis e S. nigra subsp. caerulea); e o S. palmensis, endémico das Canárias, é tratado como S. nigra subsp. palmensis por diversos autores. O último exemplo é significativo porque o sabugueiro canário é densamente tomentoso nas inflorescências e nos raminhos jovens, e é por isso bem mais fácil de distinguir do sabugueiro continental do que o seu primo da Madeira.

No que o sabugueiro da Madeira claramente se diferencia é na exigência de um habitat de qualidade: terrenos ruderalizados ou bosques dominados por exóticas não lhe servem; ele mantém-se fiel à laurissilva mais bem preservada, àquela que se acolhe em ravinas inacessíveis e acompanha ribeiros tumultuosos. Se não fossem as levadas, e os longos túneis por onde temos de furar de lanterna na mão e pescoço dobrado, não haveria maneira de chegar perto deles. É um preço irrisório a pagar pelo privilégio de visitarmos lugares tão assombrosos.

19/07/2021

O chão da laurissilva

Fazer uma flor exige às plantas que hoje dominam o planeta uma memória genética prodigiosa. O fabrico delas parece-nos automático, como uma máquina que fica desligada durante meses e, de repente, em data idêntica à do ano anterior, sem se saber por ordem de quem, é reactivada em todas as plantas da mesma espécie. Isto é uma surpresa para nós, consagrados ao manuseio livre do tempo e das coisas, mas é o resultado de um longo processo evolutivo cuja eficácia e flexibilidade foram sendo apuradas por mudanças ambientais, pela competição entre espécies, pela necessidade de adaptação a novos habitats, pela vantagem em estabelecer parcerias com os animais.

Sibthorpia peregrina L.


Nas flores mais evoluídas, parte da morfologia destina-se a proteger a estrutura reprodutiva. É que os animais, que se diria serem amigos inseparáveis das plantas, sempre se alimentaram delas — mas torcem o nariz a flores com cálices espinhosos. Depois foi preciso garantir que não se desperdiçava o pólen: não é para lamber, senhores, é para levar de flor em flor — e os sacos polínicos tornaram-se mais resistentes, fáceis de agarrar a patas ou a asas, seguros até em viagens longas. Além disso, uma fatia considerável de inovação teve de ser gasta nas recompensas aos polinizadores e nas corolas (ou nas inflorescências). Estas atraem os polinizadores, cativando a sua atenção num mundo repleto de sons, aromas, cores e movimento, mas também evitam que eles acedam a outras partes mais sensíveis da planta. Finalmente, entre a floração, a produção de frutos e a disseminação das sementes não podem passar demasiados dias: um negócio com tantos riscos tem de ser feito bem e depressa.

Todos estes cuidados com o futuro gastam muita energia, por isso cada peça tem de funcionar perfeitamente e a rotina deve executar-se pela ordem certa. Só assim as flores nascem iguais ao modelo aperfeiçoado, e a floração se sincroniza com a fome dos polinizadores. Sabemos, contudo, que para atingir este mecanismo notável de sobrevivência há meios muito diversos. Entre a espantosa diversidade de formas nas flores, há as que nos parecem, talvez enganosamente, mais simples. As do género Sibthorpia, amarelas ou roxas, são minúsculas mas com um pedicelo longo que as destaca do tapete de folhas e evita que se estraguem com a humidade excessiva do solo. A flor é um tubo quase cónico e estreito, cujo bordo tem 5 ou 6 vincos; a fingirem-se de pétalas, estes lóbulos tubulares formam uma pista de aterragem perfeitamente plana, onde os insectos poisam em segurança.



As plantas do género Sibthorpia apreciam taludes sombrios e húmidos e são herbáceas perenes e rastejantes, com caules que se enraizam pelos nós. Fala-se em cinco espécies: Sibthorpia africana, das ilhas Baleares; Sibthorpia conspicua, da Bolívia e Argentina; Sibthorpia europaea (de flores roxas), dos Açores, sul da Europa e algumas montanhas africanas; Sibthorpia repens, do México, Venezuela e Argentina; e Sibthorpia peregrina, um endemismo do arquipélago da Madeira que ocore nas ilhas da Madeira e Porto Santo. É bastante comum nas zonas de laurissilva, e fácil de avistar nas levadas entre os 500 e os 1400 m de altitude. Demorámos a ver-lhe as flores, que desabotoam entre Abril e Novembro, porque as nossas férias não coincidiam com as semanas de floração desta espécie. Naturalmente, fomos nós que tivémos de trocar a data das visitas à Madeira.

09/07/2021

O cardo branco e os seus primos



A Madeira tem em curso, há bastantes anos, um ambicioso programa de criação de sítios de interesse botânico que, a seu tempo, merecerão ser promovidos a reservas naturais locais. O que é peculiar neste programa é que as colossais verbas nele envolvidas não são usadas nos locais em questão, mas sim várias centenas de metros ao lado. Como funciona o programa? Escolhe-se uma estrada antiga, de preferência ladeada por escarpas altas e instáveis, e constrói-se uma estrada inteiramente nova em sua substituição. A estrada velha fica ao abandono, tornando-se intransitável ao fim de poucos meses pela queda de rochas que nunca são removidas. Por fim, até os peões são avisados de que, se quiserem caminhar em local tão perigoso, o fazem por sua conta e risco. A criança desobediente que resiste em cada adulto toma esse aviso como um convite irrecusável, e eis que avançamos pelo caminho proibido de cabeça desprotegida e olhos bem atentos — atentos não às rochas na iminência de cair mas às plantas que se agarram a elas, e que aqui são livres de proliferar. Se a estrada for na costa norte da ilha, a vegetação que reveste os taludes ou ocupa a via é, em geral, da mais alta qualidade, constituída quase exclusivamente por plantas endémicas ou nativas. O troço da antiga ER 101 a oeste de São Vicente, cujo estado de absoluta ruína denota abandono de longa data, é especialmente compensador para quem se dedique à prospecção botânica. (E talvez seja também especialmente perigoso — não digam que não avisámos.)

Carduus squarrosus (DC.) Lowe — ilha da Madeira


Os cardos são, em geral, plantas oportunistas capazes de medrar nos lugares mais improváveis, e não é surpresa que os haja entre as plantas que irrompem do asfalto gretado. A novidade é que a ex-faixa de rodagem está agora por conta deles, sem risco de atropelamento por veículos motorizados, e estes cardos de capítulos imaculadamente brancos não se parecem com nada do que conhecemos no continente, comprovando que nem só as plantas requintadas podem ser endemismos de distribuição restrita. O cardo-branco, exclusivo da ilha da Madeira, foi descrito como Carduus squarrosus, em 1838, pela pena de Richard Thomas Lowe. Nessa publicação, o reverendo Lowe informa-nos que esse cardo "alto e conspícuo", incluído por De Candolle no género Clavena, ocorre em vales no interior da Madeira, onde é "raríssimo", e apresenta semelhanças com o Carduus clavulatus, endémico das Canárias (ver fotos em baixo). De facto, são vários os cardos endémicos desse arquipélago; e, à vista desarmada, o da Madeira parece um compromisso entre o C. clavulatus, de que herdou o porte geral e a folhagem, e o C. volutarioides, de Tenerife, cujos capítulos brancos compactamente dispostos lhe podem ter servido de inspiração.

Tendo-o encontrado em dois lugares a 16 quilómetros um do outro, ambos na costa norte da Madeira, mas sabendo também da sua presença na costa sul da ilha, presumimos que o cardo-branco não seja tão raro como Lowe o supunha. É de crer, porém, que os novos habitats criados pelo abandono de estradas tenham favorecido a sua expansão. Com a apetência que os cardos têm por lugares ruderalizados, é mais provável deparar com ele numa berma de estrada do que nos luxuriantes vales da laurissilva. Apesar do seu gosto pela low life, há que reconhecer que o cardo-branco é bonito: ultrapassando por vezes um metro de altura, tem folhas grandes (14 cm de comprimento ou mais), caules alados moderamente espinhentos, e capítulos sésseis, quase esféricos, com brácteas cor de bronze que contrastam vivamente com o branco das flores. Se aceitasse ser domesticado, o cardo-branco faria boa figura em qualquer jardim.

Carduus clavulatus Link — Tenerife

02/07/2021

Flores e freiras

De longe, o Curral das Freiras parece uma aldeia remota, assente no fundo de um caldeirão, feita de casas brancas, muito juntas e pequeninas, rodeadas de montanhas gigantes. Vive ali gente que pastoreia gado (o lugar já se chamou Curral da Serra), cuida de castanheiros ou zela por colmeias. O acesso à aldeia foi outrora difícil, mantendo-se ali um antigo convento de freiras devidamente inacessível ao mundo profano. Furaram-se entretanto túneis, e rasgaram-se a custo estradas tortuosas e íngremes, depois substituídas por vias rápidas que permitem escoar os afamados doces e pães de castanha para o Funchal. Chegados à povoação, asseada e florida, sem a ruralidade insalubre de muitas aldeias no continente, somos recebidos por lojistas que listam com bonomia os seus produtos típicos e questionam ávidos se ficamos para almoçar.



Apesar das iguarias tentadoras (benditas castanhas; louvadas sejam aquelas abelhas), almoçamos depressa para termos tempo de explorar os túneis, as levadas e as escarpas rochosas, até porque a névoa da manhã já se dissipou e a chuva promete apenas um curto intervalo. Os taludes das velhas estradas e antigas ladeiras, hoje sem uso e pejadas de pedras, tornaram-se refúgios de vegetação endémica, alguma rara. De boa vontade ficaríamos perdidos por ali vários dias, a conhecer todas as plantas e a aprender sobre os inúmeros musgos e lagartixas.

Saxifraga maderensis D. Don


Esta saxífraga é a primeira de várias espécies que tivemos a sorte de ver floridas no Curral das Freiras durante a primeira semana de Maio. É perene e habita locais rochosos, sombrios e húmidos na zona montanhosa central da Madeira, acima dos 600 metros de altitude. Os coxins de folhas lembram os da Saxifraga portosanctana, mas na espécie S. maderensis as folhas são reniformes, com as páginas superiores glandulosas. As flores branquinhas, com anteras avermelhadas, nascem em cimeiras axilares, como é aliás frequente no género Saxifraga. Para que o leitor tenha uma ideia dos tamanhos relativos, pode anotar que cada pétala mede cerca de 1cm de comprimento.