09/07/2021

O cardo branco e os seus primos



A Madeira tem em curso, há bastantes anos, um ambicioso programa de criação de sítios de interesse botânico que, a seu tempo, merecerão ser promovidos a reservas naturais locais. O que é peculiar neste programa é que as colossais verbas nele envolvidas não são usadas nos locais em questão, mas sim várias centenas de metros ao lado. Como funciona o programa? Escolhe-se uma estrada antiga, de preferência ladeada por escarpas altas e instáveis, e constrói-se uma estrada inteiramente nova em sua substituição. A estrada velha fica ao abandono, tornando-se intransitável ao fim de poucos meses pela queda de rochas que nunca são removidas. Por fim, até os peões são avisados de que, se quiserem caminhar em local tão perigoso, o fazem por sua conta e risco. A criança desobediente que resiste em cada adulto toma esse aviso como um convite irrecusável, e eis que avançamos pelo caminho proibido de cabeça desprotegida e olhos bem atentos — atentos não às rochas na iminência de cair mas às plantas que se agarram a elas, e que aqui são livres de proliferar. Se a estrada for na costa norte da ilha, a vegetação que reveste os taludes ou ocupa a via é, em geral, da mais alta qualidade, constituída quase exclusivamente por plantas endémicas ou nativas. O troço da antiga ER 101 a oeste de São Vicente, cujo estado de absoluta ruína denota abandono de longa data, é especialmente compensador para quem se dedique à prospecção botânica. (E talvez seja também especialmente perigoso — não digam que não avisámos.)

Carduus squarrosus (DC.) Lowe — ilha da Madeira


Os cardos são, em geral, plantas oportunistas capazes de medrar nos lugares mais improváveis, e não é surpresa que os haja entre as plantas que irrompem do asfalto gretado. A novidade é que a ex-faixa de rodagem está agora por conta deles, sem risco de atropelamento por veículos motorizados, e estes cardos de capítulos imaculadamente brancos não se parecem com nada do que conhecemos no continente, comprovando que nem só as plantas requintadas podem ser endemismos de distribuição restrita. O cardo-branco, exclusivo da ilha da Madeira, foi descrito como Carduus squarrosus, em 1838, pela pena de Richard Thomas Lowe. Nessa publicação, o reverendo Lowe informa-nos que esse cardo "alto e conspícuo", incluído por De Candolle no género Clavena, ocorre em vales no interior da Madeira, onde é "raríssimo", e apresenta semelhanças com o Carduus clavulatus, endémico das Canárias (ver fotos em baixo). De facto, são vários os cardos endémicos desse arquipélago; e, à vista desarmada, o da Madeira parece um compromisso entre o C. clavulatus, de que herdou o porte geral e a folhagem, e o C. volutarioides, de Tenerife, cujos capítulos brancos compactamente dispostos lhe podem ter servido de inspiração.

Tendo-o encontrado em dois lugares a 16 quilómetros um do outro, ambos na costa norte da Madeira, mas sabendo também da sua presença na costa sul da ilha, presumimos que o cardo-branco não seja tão raro como Lowe o supunha. É de crer, porém, que os novos habitats criados pelo abandono de estradas tenham favorecido a sua expansão. Com a apetência que os cardos têm por lugares ruderalizados, é mais provável deparar com ele numa berma de estrada do que nos luxuriantes vales da laurissilva. Apesar do seu gosto pela low life, há que reconhecer que o cardo-branco é bonito: ultrapassando por vezes um metro de altura, tem folhas grandes (14 cm de comprimento ou mais), caules alados moderamente espinhentos, e capítulos sésseis, quase esféricos, com brácteas cor de bronze que contrastam vivamente com o branco das flores. Se aceitasse ser domesticado, o cardo-branco faria boa figura em qualquer jardim.

Carduus clavulatus Link — Tenerife

1 comentário :

bettips disse...

A Natureza sobre sobre o desleixo dos homens: aqui é um oportunismo que resulta tão belo!