19/07/2021

O chão da laurissilva

Fazer uma flor exige às plantas que hoje dominam o planeta uma memória genética prodigiosa. O fabrico delas parece-nos automático, como uma máquina que fica desligada durante meses e, de repente, em data idêntica à do ano anterior, sem se saber por ordem de quem, é reactivada em todas as plantas da mesma espécie. Isto é uma surpresa para nós, consagrados ao manuseio livre do tempo e das coisas, mas é o resultado de um longo processo evolutivo cuja eficácia e flexibilidade foram sendo apuradas por mudanças ambientais, pela competição entre espécies, pela necessidade de adaptação a novos habitats, pela vantagem em estabelecer parcerias com os animais.

Sibthorpia peregrina L.


Nas flores mais evoluídas, parte da morfologia destina-se a proteger a estrutura reprodutiva. É que os animais, que se diria serem amigos inseparáveis das plantas, sempre se alimentaram delas — mas torcem o nariz a flores com cálices espinhosos. Depois foi preciso garantir que não se desperdiçava o pólen: não é para lamber, senhores, é para levar de flor em flor — e os sacos polínicos tornaram-se mais resistentes, fáceis de agarrar a patas ou a asas, seguros até em viagens longas. Além disso, uma fatia considerável de inovação teve de ser gasta nas recompensas aos polinizadores e nas corolas (ou nas inflorescências). Estas atraem os polinizadores, cativando a sua atenção num mundo repleto de sons, aromas, cores e movimento, mas também evitam que eles acedam a outras partes mais sensíveis da planta. Finalmente, entre a floração, a produção de frutos e a disseminação das sementes não podem passar demasiados dias: um negócio com tantos riscos tem de ser feito bem e depressa.

Todos estes cuidados com o futuro gastam muita energia, por isso cada peça tem de funcionar perfeitamente e a rotina deve executar-se pela ordem certa. Só assim as flores nascem iguais ao modelo aperfeiçoado, e a floração se sincroniza com a fome dos polinizadores. Sabemos, contudo, que para atingir este mecanismo notável de sobrevivência há meios muito diversos. Entre a espantosa diversidade de formas nas flores, há as que nos parecem, talvez enganosamente, mais simples. As do género Sibthorpia, amarelas ou roxas, são minúsculas mas com um pedicelo longo que as destaca do tapete de folhas e evita que se estraguem com a humidade excessiva do solo. A flor é um tubo quase cónico e estreito, cujo bordo tem 5 ou 6 vincos; a fingirem-se de pétalas, estes lóbulos tubulares formam uma pista de aterragem perfeitamente plana, onde os insectos poisam em segurança.



As plantas do género Sibthorpia apreciam taludes sombrios e húmidos e são herbáceas perenes e rastejantes, com caules que se enraizam pelos nós. Fala-se em cinco espécies: Sibthorpia africana, das ilhas Baleares; Sibthorpia conspicua, da Bolívia e Argentina; Sibthorpia europaea (de flores roxas), dos Açores, sul da Europa e algumas montanhas africanas; Sibthorpia repens, do México, Venezuela e Argentina; e Sibthorpia peregrina, um endemismo do arquipélago da Madeira que ocore nas ilhas da Madeira e Porto Santo. É bastante comum nas zonas de laurissilva, e fácil de avistar nas levadas entre os 500 e os 1400 m de altitude. Demorámos a ver-lhe as flores, que desabotoam entre Abril e Novembro, porque as nossas férias não coincidiam com as semanas de floração desta espécie. Naturalmente, fomos nós que tivémos de trocar a data das visitas à Madeira.

1 comentário :

bettips disse...

A sabedoria da adaptabilidade da Natureza e a vossa, de a perceberem, seguirem e explicarem. Neste ciclo em que estamos nós os humanos, metidos à força, é bom saber de coisas simples. Com o que poderíamos aprender.
Obg