26/12/2021

Por vir


«Por vezes o futuro parece estar mesmo ao alcance da mão, mas eis que um vento inesperado o sopra para diante. Reúnem-se então as forças que descobrimos ainda ter, com o fito de reiniciar a perseguição.»
João Paulo Borges Coelho, Museu da revolução (Editorial Caminho, 2021)

20/12/2021

A finura dos fetos



A floresta endémica açoriana é uma esponja mergulhada num caldo de nuvens. E as nuvens, em vez de serem aquelas brancas manchas etéreas num céu azul, são cinzentas, espessas, quase sólidas, carregadas de água; não precisam de se esfarelar em chuva para nos encharcarem os ossos. E, naqueles raros intervalos de bonança em que as nuvens se ausentam e o céu se torna visível, percebemos que o solo continua empapado de água e que as galochas são a única escolha sensata de calçado para quem se aventure entre o arvoredo.

Como conseguem as árvores, arbustos e herbáceas aguentar rega tão persistente? São quase anfíbias, de tal modo desenvolveram uma predilecção por meio tão aquoso. Com excepção da criptoméria — que, plantada em extensos povoamentos mono-específicos, substituiu, na maioria das ilhas, a floresta original —, são poucas as árvores exóticas que toleram tal regime hiper-húmido. No Pico, os muitos pinheiros que se plantaram na encosta noroeste da montanha estão a morrer aos poucos, dando lugar a uma floresta nativa em franca regeneração. Com o vagar paciente de quem dispõe de todo o tempo do mundo, a natureza vai corrigindo as asneiras dos homens.

Hymenophyllum wilsonii Hook.


Os cedros-do-mato (Juniperus brevifolia), azevinhos (Ilex perado subsp. azorica), urzes (Erica azorica), sanguinhos (Frangula azorica), loureiros (Laurus azorica) e troviscos-machos (Euphorbia stygiana) que compõem a floresta nativa mergulham as raízes não propriamente em solo firme mas em grandes almofadões de musgão (Sphagnum). Há muitos fetos que se acolhem no bosque, com predomínio, entre os de maior porte, da Culcita macrocarpa (feto-do-cabelinho) e de diversas espécies de Dryopteris. Mas os fetos de menor dimensão (Polypodium azoricum, Elaphoglossum semicylindricum, Trichomanes speciosum) optam, na maioria das vezes, por se empoleirarem em árvores. Muitas delas têm um revestimento de tal modo espesso de fetos e de musgos que não fica um palmo de tronco à mostra.

Nessas florestas, os fetos epífitos mais abundantes, mas menos conspícuos por causa da sua pequenez, são os do género Hymenophyllum, de que ocorrem duas espécies nos Açores: H. tunbrigense e H. wilsonii. São fetos translúcidos, com frondes de 3 a 4 cm de comprimento, muito finas, da cor da azeitona. Formam um rendilhado muito típico que, nas árvores, fica pendente dos ramos ou da base dos troncos. O H. tunbrigense é de longe o mais frequente dos dois, enquanto que o H. wilsonii tem tendência a restringir-se, em cada ilha, às altitudes mais elevadas. É raro encontrar o segundo sem que o primeiro lhe faça companhia, e por isso se torna importante saber diferenciá-los. A distinção entre eles pode fazer-se à vista desarmada, porque o H. tunbrigense tem frondes planas, com divisões relativamente largas, e o H. wilsonii tem-nas dobradas longitudinalmente (fazendo lembrar as águas de um telhado), com divisões estreitas. Para uma identificação mais segura, porém, a lupa ou a macro-fotografia são indispensáveis: a diferença crucial está nos indúsios (membrana ou cápsula que protege os esporângios), que são redondos e fimbriados no H. tunbrigense (fotos abaixos), e alongados e de margens lisas no H. wilsonii (fotos acima).

Hymenophyllum tunbrigense (L.) Sm.

13/12/2021

Belas adormecidas

As plantas que sincronizam o seu ciclo de vida com o do pastoreio ou o da agricultura tendem a depender tanto dessa ajuda como de um clima sem grandes imprevistos. Essas tarefas, quando não intensivas nem regadas a herbicida, arejam o solo, erradicam saudavelmente plantas competidoras e impõem pousios que aliviam o desgaste natural da terra. Mas com a lavoura mecanizada, que revolve os torrões com a agilidade de uma colher na sopa, e com as mudanças no clima, as plantas precisam de maior cautela. A umbelífera que vos mostramos hoje, anual e pequena (não vai além dos 40 cm de altura), tem um truque adicional para lidar com as más notícias do seu habitat. As sementes formam-se antes das colheitas mas, se o tempo não está de feição, se há indícios de que o campo está sob ameaça ou se a competição entre as novas plantas e as já adultas se torna melindrosa para a espécie, então as sementes adormecem. Isso mesmo: enquanto a humanidade se afadiga em atrasar a morte e em promover a natalidade, estas plantas dominam um relógio formidável que adia o começo da germinação, tendo até em conta o benefício que isso possa trazer às plantas-mães.

Turgenia latifolia (L.) Hoffm.


Durante o sono, as sementes mantêm-se viáveis, até que (passados por vezes muitos anos) haja sinais, anunciados sabe-se lá por que meios, de que a probabilidade de um embrião sobreviver aumentou. Enquanto dormem, podem dispersar-se, colonizando depois novos locais, o que talvez justifique a maior incidência de novas espécies entre géneros que dominam este estratagema. Curiosamente, há quem afirme que esta é uma solução para as longas viagens interplanetárias, de mudança dos habitantes da Terra para outros mundos.

As espécies que afinam o seu ciclo com a evolução do ambiente não servem para jardins, por não se vergarem à impaciência dos que anseiam pela floração exuberante em vasos e canteiros. Mas é esta habilidade que favorece, por exemplo, a produção de cereais em grande escala. O banco de sementes que assim se cria assegura que os frutos não germinam todos num mesmo outono de temporais catastróficos, evento que condenaria futuras gerações de plantas.



Há outros indícios de que a Turgenia latifolia, que aprecia olivais em solo calcário, é medrosa mas sabe proteger-se. As flores de pétalas rosadas não têm sépalas mas as umbelas nascem num ninho de ganchos macios, que mais tarde endurecem e ajudam a disseminar os frutos. Percebe-se mal que, sendo assim talentosa e de distribuição vasta pelo centro e sul da Europa, Ásia e norte de África, seja afinal tão rara em Portugal, onde só há registo de uma população, e com escasso número de exemplares.

06/12/2021

Almeirante das alturas

Crepis andryaloides Lowe


Na Madeira, algumas plantas do género Crepis, que são asteráceas de hastes ramificadas com capítulos florais semelhantes aos dos dentes-de-leão (género Taraxacum), recebem o curioso nome de almeirante. Custa convencer os dicionários e os motores de busca de que aquele "e" a seguir ao "m" não é gralha; e que, em vez de querermos saber da vida e dos feitos do popularíssimo militar que comandou a epopeia das picadelas, estamos interessados em plantas que não são especialmente vistosas nem prestigiadas (e que seria de fraco gosto relacionar com tão heróica figura).

São vários os almeirantes madeirenses, todos bastante normais dentro do género a que pertencem, e alguns até considerados por vários autores como simples subespécies da Crepis vesicaria, planta vulgar em Portugal continental, onde apenas está ausente do Minho e Douro Litoral. É o caso do almeirante acima ilustrado, habitante dos picos mais elevados da cordilheira central da Madeira: descrito em 1831 como espécie autónoma por Richard T. Lowe sob o nome de Crepis andryaloides, em 1939 seria despromovido a Crepis vesicaria subsp. andryaloides pelo americano Ernest Brown Babcock. Houvesse o reverendo Lowe considerado este endemismo madeirense como subespécie, não seria surpresa se Babcock optasse por elevá-la a espécie. Antes de os estudos moleculares virem pôr alguma disciplina nestas questões, era sempre possível invocar argumentos razoáveis em favor de uma ou de outra opção — e, se a a opção A houvesse já sido defendida por um antecessor, restaria a quem quisesse publicar nova adenda sobre o assunto defender a opção B.

Tanto nas preferências ecológicas como na morfologia, as diferenças entre C. vesicaria e C. andryaloides são tão vincadas que parece uma arbitrariedade subordinar uma à outra. Em contraste com a planta continental, a planta madeirense tem as hastes muito curtas, apresenta folhas com recorte diferente e, sobretudo, tem a parte superior — em especial os invólucros florais — densamente revestida por pêlos longos e sedosos. É aliás esse aspecto hirsuto, semelhante ao que costumam exibir as espécies do género Andryala, que explica o epíteto andryaloides.

De acordo com Press & Short (em Flora of Madeira, 1994), o almeirante-das-alturas (também há, na Madeira e no Porto Santo, vários almeirantes-de-beira-mar) é uma planta que já foi frequente na ilha mas tem vindo a rarear. Tendo nós encontrado apenas dois ou três exemplares, é bem provável que tal diagnóstico seja certeiro.

28/11/2021

Hibisco dos arrozais

O rio Pranto mostra, perto da foz, a placidez de um resignado. É um dos últimos afluentes do Mondego e, em Alqueidão, junto à Figueira da Foz, entrega a água com vagar, recriando um pântano gigantesco que por vezes engorda até verter. É um pasto de mosquitos multi-variantes, mas também um refúgio de garças, corvos e flamingos. Desse pachorrento caudal aproveitam os extensos arrozais do Baixo Mondego, num amanhar intensivo da terra que lamentavelmente não dispensa o uso de químicos nem o de máquinas ruidosas para guiar a água. Mas é precisamente na proximidade destes arrozais, em bermas de caminhos margosos ou nas margens de canaviais que juraríamos impróprios para quem aprecia estar vivo, que está a única população portuguesa conhecida deste fantástico arbusto.

Hibiscus-palustris L.


Quando vimos estas plantas no início de Junho, não estavam ainda em flor e a folhagem tinha um aspecto desolador. As folhas, esbranquiçadas na face inferior e com um hábito pendente, pareciam prontas a desabar. Mas um mês depois, como se salvas, exibiam lindas flores solitárias, de enormes pétalas rosadas com uma mancha branca (ou púrpura) na base e um duplo cálice a protegê-las.

Criticamente em perigo, diz o Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal. Não nos surpreende: apesar de ser uma espécie perene, o núcleo conhecido tem cerca de 150 indivíduos e está em declínio, ameaçado pela expansão do regadio, pela limpeza descuidada da vegetação e pela degradação do habitat.

Na Península Ibérica, o Hibiscus palustris tem uma distribuição restrita à Cantábria e à população portuguesa na Beira Litoral. Talvez esta se extinga se avançar o projeto de regadio no vale do Pranto. Que os decisores, frequentemente sem memória útil, não digam mais tarde que não foram avisados deste risco.

22/11/2021

O outro gerânio da Madeira

Geranium palmatum Cav.


O gerânio-da-Madeira (Geranium maderense), talvez o mais famoso embaixador da flora madeirense, conquistou lugar de honra em jardins de clima temperado por todo o mundo com a sua impressionante floração rosada em forma de cogumelo gigante. Contudo, mesmo na Madeira é muito mais fácil encontrá-lo em jardins do que em habitat natural. Se ainda existirem na Madeira populações espontâneas deste gerânio, elas estão bem escondidas, e os exemplares que ocasionalmente se vêem em levadas ou junto a casas florestais são em geral cultivados. Assim, e porque o nosso código de conduta nos impõe cingirmo-nos àquilo que a natureza de sua livre vontade nos dá a contemplar, viramo-nos para outro gerânio de porte respeitável, também ele endémico da Madeira.

Não podemos dizer, sem arriscar a credibilidade, que o Geranium palmatum é tão vistoso e atraente como o G. maderense, mas a verdade é que no mundo inteiro não há outro gerânio que não saísse desfavorecido da comparação. E o G. palmatum, além de ser digno representante do seu género, ainda nos oferece pistas sobre a linhagem de gerânios que colonizou a Madeira e as Canárias. Os gerânios endémicos dessas ilhas (três espécies na Madeira e uma nas Canárias) têm entre si óbvios laços de parentesco, parecendo descender, todos eles, do Geranium robertianum (erva-de-São-Roberto) ou do G. purpureum, duas herbáces anuais comuns na Europa (e em Portugal) que se julga serem também nativas das ilhas atlânticas. Assim, tendo aportado às ilhas por sementes vindas do continente, as plantas colonizadoras terão aí evoluído para novas espécies, mas sem deixarem de manter redutos populacionais com características morfológicas e genéticas idênticas às das plantas pioneiras. Uma hipótese que mais facilmente explica este comportamento dúplice é que tenha havido hibridação entre o G. robertianum (ou o G. purpureum) e outras espécies entretanto já desaparecidas das ilhas.

Ainda que exiba folhagem com recorte semelhante à do G. robertianum, o G. palmatum é uma planta de muito maior envergadura que chega a formar um curto caule lenhoso, e tanto as suas folhas como as suas flores são consideravelmente maiores do que as do seu congénere. A coloração das flores é também distinta: as do G. palmatum são uniformemente rosadas (ou púrpuras), enquanto que no G. robertianum a base das pétalas é esbranquiçada (foto aqui). A mesma diferença pode ser apontada entre o G. palmatum e o G. reuteri, endémico das canárias, distinguindo-se ainda este último pelos estames muito mais compridos e salientes. De resto, os dois gerânios insulares assemelham-se a tal ponto, tanto no aspecto geral como nas preferências ecológicas (ambos buscam lugares umbrosos e frescos), que fazem figura de um par de gémeos. O que, atendendo à provável progenitura de ambos, não anda longe da verdade.

16/11/2021

Uma planta modelo

As plantas anuais germinam, crescem e florescem num período curto, que pode ser mais breve do que um ano (em alguns casos não excede um mês). Quase toda a energia da planta é dirigida para a floração e a frutificação; uma vez atingido o objectivo de produzir sementes, a planta morre. Esta estratégia de sobrevivência depende demasiado da sorte mas, dada a enorme quantidade de sementes produzidas anualmente, há realmente chance de algumas gerarem novas plantas.

As plantas perenes levam uma vida mais calma, e apostam numa estratégia distinta. Nos primeiros anos, muitas delas apenas produzem folhagem e raízes, investindo todo o esforço numa estrutura robusta, lenhosa ou muito ramificada. Se conseguirem sobreviver aos primeiros invernos e estiagens, então aprenderam o essencial para arriscarem florir e frutificar. E, depois de uma juventude completamente improdutiva, podem durar nesta rotina centenas de anos.

Em 2008, descobriu-se que a activação de apenas dois genes na espécie Arabidospis thaliana pode convertê-la a um regime perene, e vice-versa. Mas que vantagens há numa vida breve? Por que razão nem sempre é melhor ser-se árvore?

Arabis alpina subsp. caucasica (Willd.) Briq.


A resposta parece estar na maior ou menor capacidade de uma espécie se adaptar a um habitat. A vida num clima mais quente e seco, num solo mais pobre, ou num ambiente tropical tempestuoso, pode beneficiar as espécies que florescem mais cedo, antes das demais espécies, reduzindo a competição por nutrientes ou luz -- ainda que, com esse estilo apressado, a sua esperança de vida se reduza drasticamente. E há sempre trunfos na manga: algumas plantas anuais mantêm activa a auto-fertilização, como um último recurso, outras escondem no solo um banco de sementes com várias idades, com que mitigam o impacto de flutuações no clima ou de mudanças aleatórias no habitat.



Vem isto a propósito da espécie perene Arabis alpina, que há uns milhões de anos colonizou as montanhas mais elevadas da Madeira. É comum vê-la nas paredes das levadas, em ravinas e nos picos mais altos. Dela descendem inúmeras outras espécies europeias de Arabis, com uma distribuição muito ampla, várias delas anuais. São espécies vencedoras, com tempos de germinação curtos, ciclos de vida muito flexíveis, respostas bem sucedidas à selecção natural e uma diversidade genética invulgar. Mas cuja existência dependeu do potencial de sobrevivência da espécie ancestral perene. Por este andar, é bastante provável que a evolução das plantas as leve a um controlo perfeito da longevidade.

08/11/2021

Cárice na sombra

Carex lowei Bech.


Descrita originalmente em 1939 sob o nome de Carex lowei, e dedicada ao reverendo Richard Thomas Lowe, que viveu de 1802 a 1874 e foi autor de A Manual Flora of Madeira, esta cárice endémica é moradora dos vales húmidos e sombrios do norte da ilha da Madeira. É uma planta rizomatosa de porte considerável, com hastes que podem atingir metro e meio de altura, e que exibe folhas longas, finas e planas, com margens ásperas. No aspecto geral, e mesmo na ecologia, faz lembrar a endémica açoriana Carex hochstetterana: são os mesmos tufos de folhagem fina e lustrosa, as mesmas hastes arqueadas enfeitadas por espigas mais ou menos pendentes. Além disso, em ambas as espécies, os frutos (ou, mais propriamente, as utrículas) são protegidos por brácteas (ou glumas) rematadas por longas aristas (veja a 4.º foto acima e também esta), o que permite distingui-las da C. pendula ou de espécies aparentadas como a recém-descrita C. leviosa.

O que singulariza a C. lowei face a quase todas as suas congéneres, e torna a sua identificação inequívoca no período em que está em flor (de Maio a Junho), é que as espigas femininas parecem muitas vezes agrupar-se aos molhos, dando à planta um aspecto desgrenhado. Avisam os sempre picuinhas botânicos que não se trata de espigas agrupadas, mas sim de uma só espiga várias vezes ramificada. Mas, indepentemente de dominarmos ou não os detalhes, ou de usarmos ou não a terminologia correcta, é sempre bom travarmos conhecimento com uma planta de um género taxonomicamente problemático que se deixa reconhecer à primeira vista.

Quem se inicia na observação de plantas tem tendência a ignorar gramíneas, ciperáceas, juncos, fetos — todas aquelas herbáceas que, não se destacando pela floração vistosa (ou, no caso dos fetos, nem sequer tendo flores), se perdem num verde anonimato. Mas são essas plantas que ainda não aprendemos a nomear que dão vida e encanto a muitos bosques.

02/11/2021

Mocano à janela

O envelhecimento das árvores também se nota, através de rugas e sinais deselegantes na casca do tronco, que se torna mais áspero com o acumular de anos. Mas, ao contrário das pessoas, as plantas mantêm a funcionar até à morte, aparentemente sem defeito, os mecanismos que geram folhas e ramos novos, flores e frutos. Decerto precisam dessa tarefa toda a vida pois, sem mudarem nunca de endereço ou de paisagem, como iriam gastar o tempo e combater o tédio? Em algumas espécies as diferenças de idade são mais notórias, e é fácil saber se estamos perante um exemplar jovem ou um idoso, ainda que ambos tenham 8 metros de altura. É o caso da árvore madeirense que vos mostramos hoje.

Visnea mocanera L. f.


A Visnea mocanera é um endemismo da ilha da Madeira e do arquipélago das Canárias (com excepção de Lanzarote) e a única espécie conhecida do género Visnea. O epíteto específico alude ao nome vernáculo, mocan, dado a estas plantas de folhagem perene pelos aborígenes das Canárias. As árvores desta espécie podem chegar aos 10 metros de altura, mas os ramos são curtos e as folhas pequeninas, por isso a copa é densa. Nela se escondem, entre Dezembro e Março, grupos de flores muito perfumadas, de cinco pétalas brancas a formar uma delicada campanula com inúmeros estames ao centro.



Na nossa visita à levada da Ribeira da Janela, na ilha da Madeira, em Maio de 2020, os mocanos que vimos estavam para lá da floração, mas ainda sem o ciclo anual terminado. Resultado: conseguimos ver frutos, carnudos e verdes, do tamanho de avelãs, mas poucos da cor púrpura que os torna apetecíveis quando amadurecem. Outrora foram usados para fazer compotas e licores, mas a espécie tem vindo a rarear. Faltam-lhe talvez locais soalheiros e quentes, de solos férteis, entre os 300 e os 600 metros de altitude. Ou então já sobra pouco espaço para ela na laurissilva do barbusano, o habitat que ela prefere. Ou isso, ou a culpa é do uso desenfreado da madeira desta árvore, firme e avermelhada.

Diz-se que, nas Canárias, é a ilha de El Hierro (que ainda não conhecemos) a que contém exemplares de V. mocanera mais desenvolvidos e em populações mais estáveis. Para estimarmos a antiguidade dos exemplares, bastará notar que o ritidoma é verde e liso quando jovem, tornando-se progressivamente cinzento, castanho e bastante rugoso. Em Tenerife, deveríamos ter estado atentos a estas plantas nas caminhadas no centro da ilha, em Güimar, ou no norte, em Anaga. Teremos de lá voltar, olha que bom, para corrigirmos esta desatenção.

24/10/2021

Arméria dos picos

Armeria maderensis Lowe


Ainda que seja considerada rara, a arméria-da-Madeira é uma das espécies endémicas mais fáceis de encontrar na ilha, bastando para tanto visitar o Pico do Areeiro entre os meses de Maio e Junho. De folhas relativamente curtas e largas, e escapos com 20 a 40 cm de altura encimados por capítulos florais de um rosa intenso, é uma arméria que se põe bem a jeito para a foto promocional, escolhendo para seu poleiro os pontos mais elevados da crista montanhosa central da Madeira. Apesar de no continente estarmos de barriga cheia com as mais de 20 espécies de arméria distribuídas de norte a sul tanto no litoral como no interior, seria um erro desdenharmos da espécie madeirense como apenas mais uma para juntar à colecção. Além de detentora de uma elegância imbatível, o cenário vertiginoso onde vive nunca poderá ser igualado pelo relevo manso das montanhas continentais.

E a essas impressões subjectivas junta-se um dado crucial: a Armeria maderensis não é apenas única na sua ilha, é-o também em toda a Macaronésia. O género Armeria está inteiramente ausente dos arquipélagos das Canárias e de Cabo Verde, e é de admitir que também não exista nos Açores. A situação no arquipélago açoriano é dúbia, pois no 2.º volume (de 1984) da Nova Flora de Portugal, e baseando-se em exemplares do herbário do Instituto Superior de Agronomia que teriam sido colhidos em 1954, Franco descreve uma Armeria maritima subsp. azorica que existiria apenas em São Miguel, São Jorge e Flores. Antes de Franco, ninguém havia reportado qualquer Armeria nos Açores; e, desde então, ninguém logrou reencontrá-la no arquipélago. Obras de referência da flora açoriana como o Catálogo das Plantas Vasculares dos Açores (Palhinha, 1966) e a Lista das Plantas Vasculares (Luís Silva et al., 2010) não mencionam qualquer espécie de Armeria. É pois legítimo duvidar que exista (ou alguma vez tenha existido) alguma Armeria espontânea nos Açores.

Que haja apenas uma espécie de Armeria na Madeira também foge à regra. Muitos dos géneros botânicos originários dos continentes (África, Europa ou América) que conseguiram instalar-se nos arquipélagos atlânticos iniciaram depois um processo de irradiação e especiação, evoluindo para distintas espécies separadas geograficamente ou adaptadas a diferentes nichos ecológicos. Exemplos bem conhecidos são os géneros Limonium (da família Plumbaginaceae tal como a Armeria, e que inclui mais de 20 espécies nas Canárias), Argyranthemum, Echium, Sonchus e Aeonium. Mesmo certos géneros endémicos da Madeira (como Musschia e Sinapidendron) contam cada um com três ou mais espécies no arquipélago. Existem armérias nas rochas costeiras de Matosinhos e de Viana, nas bermas das estradas transmontanas, no topo da serra da Estrela, na serra de Monchique, nas praias e falésias do Algarve. O que terá impedido um género ecologicamente tão versátil de se diversificar na Madeira?