31/07/2018

Um funcho cabeludo


Ferulago capillaris (Link ex Spreng.) Cout.



As piscinas do rio Homem, de água límpida escoando-se devagar entre grandes blocos rochosos, são um poiso favorito para quem no Verão demanda o Gerês em busca de frescura. Há que pagar (por duas vezes) um euro de portagem e fazer a pé os 700 metros desde a Portela do Homem, onde deixamos o carro, até à ponte sobre o rio, onde nos debruçamos para a foto obrigatória. O acesso às piscinas faz-se logo ali. Se o fôlego e o calçado o permitirem (andar de chinelos num caminho pedregoso e esburacado não é boa ideia), podemos subir umas centenas de metros pelo estradão dos Carris e alcançar uma piscina longe das multidões.

O vale do rio Homem é muito verde, mas os carvalhos, azevinhos, bétulas, pereiras-silvestres, medronheiros e tramazeiras vão-se fazendo esparsos à medida que subimos, até que predominam os matos de giesta, urze e carqueja. As rochas por onde o rio se espreguiça dão abrigo a uma vegetação herbácea e arbustiva rica em raridades: Amelanchier ovalis, Narthecium ossifragum, Vincetoxicum hirundinaria e, não menos importante, uma umbelífera, Ferulago capillaris, a que os mais distraídos chamarão funcho. Confusão compreensível atendendo às flores amarelas e às folhas muito recortadas, mas rapidamente desmentida pelo olfacto: o Ferulago capillaris não tem cheiro digno de nota. (Antes usar o olfacto do que o paladar: mordiscar uma planta que desconhecemos pode fazer mal à saúde.) Os olhos também podem contribuir para desfazer o equívoco: o funcho propriamente dito (Foeniculum vulgare) é uma planta esguia e desgrenhada, com umbelas muito mais ralas. O Ferulago capillaris, capaz de ultrapassar 1,5 m de altura, tem uma haste robusta e erecta, ramificada apenas na parte superior, que é encimada por várias umbelas, a principal das quais formada por 20 a 40 raios, cada um deles sustentando cerca de dezena e meia de flores.

Tão fácil de ver no vale superior do rio Homem, é uma surpresa aprendermos que este robusto pseudo-funcho talvez não ocorra em nenhum outro ponto do Gerês e que, fora do Parque Nacional, só se sabe dele em meia dúzia de lugares em Trás-os-Montes e na Beira Alta. Endémico da Península Ibérica, o Ferulago capillaris não abunda nem em Portugal nem em Espanha: no país vizinho é mais frequente na serra de Gredos, parte de cadeia montanhosa que tem o seu limite oeste na serra da Estrela. Do género Ferulago conhecem-se mais três espécies na Península Ibérica, todas elas endémicas: F. brachyloba, F. granatensis e F. ternatifolia. A crer nos mapas de distribuição no portal Anthos, são todas de distribuição muito restrita.

24/07/2018

Flores de cera


Ceropegia dichotoma Haw.


Há muito que o homem entortou a Natureza.
Porque o homem pensa a Natureza como se esta
fosse uma mesa a que se pode cortar uma das pernas
para a endireitar.
Mas a paisagem não é uma coisa
que possa ser corrigida por cidadãos
bem equipados, a paisagem é que te corrige.
É a terra que te come, e não
o inverso.
Gonçalo M. Tavares
Uma viagem à Índia (Caminho 2010)

17/07/2018

Estrelas do Homem


Aster sedifolius L. [sinónimo: Galatella sedifolia (L.) Greuter]


Aprendemos os caminhos do Gerês seguindo uma estrela. Ou tentando segui-la, pois nunca a víamos: as nossas excursões eram diurnas e, em qualquer caso, a estrela que procurávamos era da terra e não do céu. Entre 2010 e 2015, quando o Verão decaía para o Outono, percorremos, quase sempre sozinhos mas uma ou outra vez guiados por caminheiros experientes, o limite oriental da serra do Gerês nas cercanias de Pitões das Júnias. Cruzámos o rio Beredo e o vale da ribeira do Forno, ascendemos aos cotos da Fonte Fria, passámos por muitos dos lugares onde cabras e lobos jogam às escondidas. O encanto agreste da paisagem era temperado pelo receio de nos perdermos, pois a vida na cidade não nos prepara para estes descaminhos tantas vezes camuflados pela vegetação, sem pontos de referência reconhecíveis.

Deixámo-nos dessas aventuras, frustrados por a estrela nunca se nos mostrar, até que soubemos que ela se acolhia na vertente ocidental da serra do Gerês, de acesso bem mais simples. Em 2017, na segunda quinzena de Setembro, subimos o pedregoso vale do rio Homem, então reduzido a uma sucessão de piscinas ligadas por um fio de água, e saltámos para a outra margem no ponto assinalado. Num mato dominado pela carqueja, com pequenos carvalhos assomando aqui e ali, lá se escondia uma vintena de pés de Aster sedifolius: era essa a estrela que procurávamos há sete anos. O ano quente e seco quase nos estragava o momento, pois a floração, que deveria estar no início, mostrava-se praticamente terminada.

O Aster sedifolius é uma planta esguia, de 60 a 90 cm de altura, com caules simples ou ramificados apenas na parte superior, folhas lineares algo carnudas (é isso que sugere o epíteto sedifolius), e vistosos capítulos florais lilazes e amarelos. De acordo com os manuais com os quais desta vez estava em desacordo, a sua floração é outonal e prolonga-se até Outubro ou Novembro. Distribuída pelo sul da Europa desde a Península Ibérica até à ex-Jugoslávia, mas ausente da Grécia, aparece de norte a sul da Península mas é mais frequente ao longo da costa mediterrânica. Em Portugal só tem sido avistada, e pouco, na serra do Gerês.

Quando a encontrámos, já sabíamos que a estrela tinha deixado de o ser. O populoso género Aster tem vindo a ser metodicamente desmembrado, e as três espécies consideradas nativas de Portugal foram varridas para outros géneros: o Aster tripolium, que é frequente em sapais e estuários, chama-se agora Tripolium pannonicum; e os raríssimos Aster sedifolius e A. aragonensis (este um endemismo ibérico) integram agora o género Galatella. Apesar de essa separação ter sido ditada sobretudo por razões filogenéticas, ela também se parece justificar por razões morfológicas — é essa a conclusão dos autores de um detalhado estudo publicado em 2015 com o título Taxonomic status of Aster, Galatella and Tripolium (Asteraceae) in view of anatomical and micro-morphological evidence.

11/07/2018

Altas campainhas


Campanula patula L.


Campânula é um nome de origem latina para um sino (campa) pequeno, a que alude a designação das herbáceas do género Campanula, tendo elas flores com pétalas mais ou menos reviradas e unidas pela base em tubo, o que dá à corola a forma de uma... campânula. As flores da C. herminii, endemismo ibérico de que por cá só há registos na serra da Estrela, são talvez a versão campaniforme mais perfeita. O nome vernáculo destas plantas, de flores roxas, cor-de-rosa ou brancas, adopta para algumas espécies o diminutivo campa + inha, ou sininho, ainda que tal denominação também se use, sob risco de confusão, para outros géneros. Na obra De historia stirpium commentarii insignes (1542), o botânico alemão Leonhart Fuchs terá registado oficialmente, talvez pela primeira vez, o termo campanula para designar precisamente uma planta (que Fuchs desenha com muito rigor, algo inusitado para a época) das que Lineu, em 1753, viria a incluir no género a que chamou Campanula.

Mas por que razão a forma destas flores se designa campânula? O dicionário Houaiss não arrisca mais do que uma menção à palavra latina campaña, explicando que era usada nos anos 560-600 para designar uma balança romana; algum tempo depois este vocábulo já soava a campanula, e ainda no século VI passou a designar também um sino (com ou sem badalo). A utilização em botânica, segundo Houaiss, data do século VIII. Voltemos, porém, à Flora Ibérica, que oferece uma explicação mais detalhada: um vaso Campana seria um tipo de recipiente em forma de cone invertido e oco, feito em bronze de grande qualidade na região (italiana, supomos) de Campania.

Curiosamente, o termo sino (do latim signum), referindo-se aos instrumentos em geral feitos em bronze que davam o sinal da hora de oração, de escalas de serviço a bordo de navios, de fecho de tabernas e de recolha a casa, apropriou-se no século passado do papel atribuído à palavra campânula para designar uma certa forma. Referimo-nos à moda das calças boca-de-sino, ponto alto do vestuário dos anos 70 e ícone do estilo «hippie». Deveriam afinal ter-se chamado calças boca-de-campânula.

A campânula hoje na montra é uma versão alta da C. lusitanica, de flores tão patentes e vistosas que Lineu lhe chamou patula.

03/07/2018

Ervas de Santa Maria


Tapete de Rostraria azorica na Praia Formosa, em Santa Maria
Com uma área de 97 km2, Santa Maria é a terceira menor ilha dos Açores, avantajando-se apenas ao Corvo e à Graciosa. É por isso surpreendente que, de todo o arquipélago, seja ela que detém o maior número de plantas endémicas exclusivas. São três as plantas que ocorrem em Santa Maria e em mais lado nenhum: Aichryson santamariensis, Euphorbia stygiana subsp. santamariae e Rostraria azorica. Apesar de ser oito vezes maior, São Miguel sai-se mal desta disputa, ficando-se por um único endemismo exclusivo: Leontodon rigens. De resto, os bons ofícios do vento e das aves e a proximidade entre as ilhas fizeram rarear no arquipélago o fenómeno da exclusividade: há ainda, no Pico, o duvidoso caso da Silene uniflora subsp. cratericola, e é tudo. As coisas seriam diferentes se as Flores e o Corvo, tão distantes do resto do arquipélago, contassem como uma ilha só, pois nada menos que quatro espécies exclusivas são partilhadas por essas duas ilhas.

Das três plantas endémicas de Santa Maria, a Rostraria azorica é decerto a menos conspícua: em Maio e em Junho, o Aichryson santamariensis enfeita profusamente as estradas da ilha com o amarelo radioso das suas flores; a Euphorbia, misteriosa no seu bosque, seduz-nos pela folhagem e pelos seus ramos serpenteantes; mas a R. azorica, uma gramínea anual reduzida a um caule e um penacho, com uns 10 a 15 cm de altura máxima, parece ter a modéstia como única qualidade.


Rostraria azorica S. Hend.


De um modo geral, as plantas não têm qualquer interesse em seduzir-nos, mas alguns dos engodos visuais ou olfactivos por elas usados para atrair insectos e outros polinizadores podem também apelar aos nossos sentidos. Contudo, as gramíneas, apesar de serem plantas evoluídas, confiam no vento para a polinização e dispersão das sementes — e, por dispensarem toda a ajuda de terceiros, não entram em jogos de sedução. O que não quer dizer que um sentido estético mais refinado não seja capaz de encontrar uma beleza de tipo austero em certas gramíneas, merecedoras por isso de um protagonismo em jardinagem que ultrapasse o utilitarismo dos relvados. E, falando das gramíneas endémicas açorianas, é inegável o dramatismo cénico que o bracel-da-rocha (Festuca petraea) empresta às falésias negras das ilhas.

À escala a que o nossos olhos costumam funcionar, a R. azorica tem tudo para passar despercebida, confundindo-se com uma multidão de outras ervitas insignificantes. É nos detalhes das inflorescências que as gramíneas marcam pontos, valendo-se de uma simetria e regularidade inigualadas por plantas mais vistosas (exemplos: 1, 2). Aí a R. azorica é tão fotogénica como as melhores, e mostra suficiente personalidade para que possamos reconhecê-la entre as suas (quase) iguais. O género a que pertence, Rostraria, inclui cerca de uma dezena de espécies anuais típicas de lugares áridos, todas bastante semelhantes, distribuídas pela bacia mediterrânica e pelo Médio Oriente. Nos Açores ocorre uma segunda espécie, também presente em Portugal continental e em grande parte da Europa, que é a R. cristata (foto em baixo). A Rostraria de Santa Maria distingue-se bem desta por ser uma planta mais hirsuta, por ter a panícula mais estreita e alongada, e por as lemas (brácteas que protegem os florículos) terem aristas muito mais compridas.

O que há de mais notável na Rostraria azorica é ela ser endémica de uma ilha só. As sementes das gramíneas deixam-se transportar pelo vento a grandes distâncias, e os 80 km que separam Santa Maria de São Miguel não deveriam ser obstáculo de grande monta. Várias são as gramíneas endémicas presentes em todas as ilhas do arquipélago (Festuca petraea, Holcus rigidus, Gaudinia coarctata) ou em pelo menos oito ou sete delas (Festuca francoi, Deschampsia foliosa). Não seria inesperado se se descobrisse que a R. azorica aparece noutras ilhas — mas antes de alguém se lançar na procura terá que saber reconhecer a planta, e lembrar-se de que ela só está visível por um período curto, entre Abril e Maio. O carácter efémero e discreto desta gramínea, afinal frequente nas zonas costeiras de Santa Maria, ajuda a explicar que só em 2003 tenha sido publicada a descrição formal da nova espécie (S. Henderson & H. Schäfer, Synopsis of the genus Rostraria (Poaceae) in the Azores, Bot. Journal of the Linnean Society, 141-1), embora já em 1969 a sua existência tivesse sido notada pelo botânico C. E. Hubbard.


Rostraria cristata (L.) Tzvelev