O trovisco-macho mais raro da Europa
Euphorbia stygiana subsp. santamariae H. Schaef.
A ilha açoriana de Santa Maria tem duas caras para mostrar aos visitantes. Na metade oeste, onde ficam o aeroporto, o porto de mar e, junto a ele, a principal povoação da ilha (apropriadamente chamada Vila do Porto), domina o amarelo das pastagens secas. Na metade leste, empinam-se os montes que captam o nevoeiro e a chuva, e a cor dominante passa a ser o mesmo verde a que nos habituámos nas outras ilhas do arquipélago. Somos levados a pensar que meia ilha de verdura não chega para compensar a aridez da outra metade, e que os cursos de água, se os houver, deverão ser raros e efémeros. Só que nada disso é verdade. Por um capricho da geologia, Santa Maria tem, na sua metade leste, muitas ribeiras permanentes; e algumas das que desaguam na metade oeste, nascidas na cadeia montanhosa do centro da ilha, também levam água todo o ano. Ilhas muito mais húmidas e verdes como o Pico e o Faial são também muito mais porosas, dispondo apenas de ribeiras temporárias, de regime torrencial.
Em Santa Maria, no vale encaixado de uma dessas ribeiras milagrosas, esconde-se, quase sufocada pela proliferação do incenso e da conteira, uma eufórbia arbórea (ou, na designação popular, um trovisco-macho) que é única no mundo. A população de poucas dezenas, todas no mesmo local, tem vindo a diminuir de forma alarmante, com os deslizamentos de terras provocando a perda de exemplares adultos e o cerco das invasoras impedindo que vinguem os exemplares jovens. O momento, porém, é de esperança, pois, em colaboração com os serviços do Parque Natural de Santa Maria, o Jardim do Botânico do Faial, que já salvou o não-me-esqueças e o teixo açoriano do limiar da extinção, comprometeu-se a intervir rapidamente.
Descoberta por Hanno Schaefer em 2001, e por ele descrita em 2002 na sua tese de doutoramento (intitulada Chorology and Diversity of the Azorean Flora), esta eufórbia foi então baptizada como Euphorbia stygiana subsp. santamariae. Segundo Schaefer, a diferença mais marcante é que os exemplares de Santa Maria são árvores capazes de atingir os dez metros de altura, enquanto que a E. stygiana das outras ilhas (ver fotos aqui) é um arbusto não excedendo os cinco metros. Esta dicotomia não é muito convincente, pois a subsp. stygiana às vezes também é uma árvore e no Pico há exemplares gigantescos. Mas todo o cepticismo foi varrido pelo espanto quando nos vimos perante o trovisco-macho de Santa Maria. O tipo de crescimento é muito diferente, as folhas são mais baças e com o veio central menos marcado, e as inflorescências cobertas de penugem, com os nectários alaranjados, não poderiam contrastar mais com as do trovisco-macho das outras ilhas (ver fotos aqui). E estas discrepâncias morfológicas tão óbvias são, segundo soubemos, corroboradas por diferenças genéticas. Assim, é provável que o trovisco-macho de Santa Maria represente uma espécie autónoma, não se justificando a sua subordinação, como subespécie, à E. stygiana do resto do arquipélago. De resto, a julgar pela aparência, a Euphorbia santamariae (como algum dia se há-de chamar) está mais próxima da madeirense E. mellifera do que da E. stygiana propriamente dita — e pode, de facto, ser o elo de ligação entre as duas espécies, funcionando Santa Maria (a ilha açoriana mais antiga, e a mais próxima da Madeira) como primeira etapa na rota migratória da Madeira para os Açores.
Se a singularidade deste trovisco-macho tivesse tido o devido reconhecimento taxonómico, talvez a operação de salvamento que agora se prepara in extremis pudesse ter sido levada a cabo, com maior probabilidade de sucesso, há uma dúzia de anos. Haveria por certo o risco de o frenesim mediático (com títulos como "A eufórbia mais rara da Europa é dos Açores") poder atrair coleccionadores sem escrúpulos, depauperando ainda mais uma população escassíssima. Mas é muito mais sério o risco de uma morte silenciosa.
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