18/12/2023

O reino de Gulliver



Quase todos ouvimos relatos das viagens de Gulliver na infância. As adaptações para crianças da obra de Jonathan Swift não têm o tom satírico do original, mas mantiveram-se suficientemente fantasiosas para nos espevitarem a imaginação. O facto de as andanças de Gulliver não serem nada verosímeis só nos ocorreu muito tempo depois. O que nos inquietou quando crianças foi a teimosia do personagem. Gulliver é um aventureiro desajeitado a quem não falta bravura, que num dia azarado promete nunca mais voltar ao mar, e no seguinte se faz capitão de um navio. Cada viagem é mais desastrosa do que a anterior, embora Gulliver ganhe um novo amigo em cada uma; e a ciência não ajuda a reduzir os riscos dessas travessias marítimas, preocupada que está em pesquisar modos de extrair raios de sol de pepinos, algodão do mármore e cores dos cheiros.

Os reinos que Gulliver encontra quando naufraga são sociedades bem estruturadas, autoritárias, disputando o poder para decidir sobre pormenores irrelevantes (como o melhor modo de quebrar a casca de um ovo cozido). Do confronto entre o poder solitário do gigante Gulliver e a imaturidade social do povo minúsculo de Lilliput, suspeita-se que Swift quis refutar a ideia ingénua e optimista, veiculada em Robinson Crusoe (livro publicado alguns anos antes), de que o indivíduo é naturalmente hábil e bom, independentemente da estrutura gregária que o abriga. A novela de ficção de Swift seria, porém, mais realista se incluísse descendentes de Gulliver na ilha de Lilliput.

Aeonium sedifolium (Bolle) Pit. & Proust,


Vem este arrazoado a propósito do género Aeonium, que contém o maior número de híbridos de toda a flora do arquipélago das Canárias. A formação de híbridos é um processo frequente na natureza, dos mais eficazes para a diversificação da fauna e da flora. Na ilha de La Palma, a maior espécie do género Aeonium (A. nobile, que floresce entre Maio e Julho) e a espécie mais pequena (A. sedifolium, com floração de Março a Maio) são progenitores de um híbrido, Aeonium x gulliveri, descoberto há 7 anos por Octavio Arango em El Time. Um tal cruzamento parece impossível face às datas de floração dos pais. O descritor deste híbrido conjectura que as mudanças climáticas tenham alterado as épocas de floração das duas espécies, ou prolongado a sua duração, ou beneficiado florações extemporâneas. O híbrido, que quando cultivado floresce entre Maio e Julho, é muito raro, e nós não o vimos quando passeámos em Maio pelas escarpas de El Time, a cerca de 450 m de altitude.

Aeonium nobile (Praeger) Praeger
É um exercício divertido comparar as morfologias dos progenitores com a do Aeonium x gulliveri. A média é uma mistura caprichosa de detalhes, que pode conhecer neste portal. Não surpreendentemente, o híbrido tem um porte intermédio entre os 60cm do A. nobile e os 15cm do A. sedifolium. Herdou deste último o hábito prostrado, mas as folhas e o perfil são os do A. nobile, ainda que em versão reduzida. A inflorescência em panícula veio-lhe do A. nobile, mas no híbrido é muito mais lassa. As flores são do tamanho e do tom amarelo-alaranjado das do A. sedifolium, embora na base das pétalas e nos filamentos dos estames sobressaia um sublinhado de cor púrpura, característica comum a todos os híbridos conhecidos formados com a intervenção do A. nobile.

11/12/2023

Estreleiras de La Palma



Uma colecção desgarrada de factos só se transforma em conhecimento quando conseguimos estruturá-los e dar-lhes coerência — ou seja, quando conseguimos enquadrá-los numa teoria. Uma teoria não é necessariamente uma verdade objectiva e absoluta, e pode até ser uma construção parcial e altamente subjectiva, mas sem um esforço mais ou menos consciente de teorização tudo perde sentido e somos apenas joguetes de forças que nos ultrapassam. Até uma actividade lúdica como a observação da natureza exige compreensão e sistematização. As coisas não são belas apenas porque nos suscitam certas reacções espontâneas dos sentidos, mas também (ou sobretudo) porque se nos afiguram como exemplos consumados de certas classes reconhecíveis.

Coleccionar plantas, mesmo em observações fugazes que se transmudam em fotos duradouras, exige que, ao sempre necessário (e quase infantil) deslumbre por cores, formas, texturas e cheiros, juntemos a dada altura a sistematização. Sem alguma forma de organizar as plantas que vamos conhecendo, a memória pouco ou nada retém. Conseguir distinguir as famílias botânicas mais comuns é uma das primeiras etapas para nos familiarizarmos com o mundo vegetal. Também ajuda saber reconhecer, ainda que sem grande rigor, os diferentes habitats: as plantas dunares não costumam aparecer em carvalhais, as plantas de beira-rio não toleram ambientes desérticos, e assim por diante.

Deste modo, sem grandes compromissos, vamos construindo um conhecimento que nos permite tirar maior gozo estético e intelectual do mundo à nossa volta. Mas esse mundo é tão diverso que o amadorismo é constantemente confrontado com os seus limites — e, porque qualquer especialização abarca necessariamente um campo restrito, todos nós somos amadores em quase tudo. O género Argyranthemum nas Canárias fornece um bom exemplo de como o conhecimento empenhado, mas destituído da minúcia e do aparato técnico-científico só ao alcance de especialistas, pode levar a conclusões erróneas.

Argyranthemum haouarytheum Humphries & Bramwell


Como já tivemos oportunidade de explicar, são mais de vinte as espécies de Argyranthemum (ou estreleiras) endémicas das Canárias; se contarmos subespécies, o número ultrapassa trinta. É tentador organizar tamanha diversidade agrupando espécies e subespécies em grupos com alguma homogeneidade, tendo em conta por exemplo o formato das folhas e a sua maior ou menor suculência. Usando esse critério, uma das estreleiras endémicas de La Palma, A. webbii (ilustrada em baixo), com folhas de textura herbácea divididas em lóbulos amplos, emparelharia muito bem com o A. broussonetii, endémico de Tenerife. E as duas espécies ainda partilham a preferência pelos habitats sombrios da laurissilva. Parecem muito menos vincadas as semelhanças entre as duas estreleiras endémicas de La Palma: a segunda delas, A. haouarytheum (fotos em cima), apresenta folhas algo suculentas e com lóbulos estreitos; quanto ao habitat, prefere lugares soalheiros e pedregosos às mais variadas altitude (desde a costa até aos cumes mais elevados da ilha).

Entram em cena os estudos genéticos para nos confundir a teoria. Em artigo que já antes referimos (Oliver W. White et al., 2020), os autores constroem uma árvore filogenética quase completa do género Argyranthemum; por ela aprendemos que as duas estreleiras de La Palma estão evolutivamente muito próximas uma da outra, e muito distantes do A. broussonetii de Tenerife. Curiosamente, os autores constataram igualmente que uma estreleira de La Gomera que havia sido subordinada ao A. broussonetii era dele geneticamente longínqua (por isso o seu nome foi corrigido e ela é agora chamada Argyranthemum callichrysum subsp. gomerensis). Com os dados morfológicos contradizendo a informação genética, estamos perante exemplos de convergência evolutiva: plantas de diferentes linhagens acabam por assumir aspectos semelhantes em resposta a condições idênticas de habitat. As folhas largas são uma resposta ao ambiente sombrio da laurissilva (para maximizar a captação de luz), assim como as folhas suculentas (mais capazes de armazenar água) o são a um ambiente semidesértico.

Com este fascículo são já oito as espécies canarinas de estreleiras que aqui mostramos. Se compararmos fotos com paciência e tivermos em conta a ilha em que nos encontramos, talvez consigamos dar nome a mais alguma que nos tenha encantado a vista. Mas, como amadores que somos, o grau de incerteza é sempre elevado. Mesmo as antigas certezas de diligentes especialistas podem ser derrubadas por novos estudos.

Argyranthemum webbii Sch. Bip.

01/12/2023

O rosalito que faltava



É boa pedagogia fazermos pausas ocasionais para rever a matéria dada, consolidando conhecimentos antes de nos embrenharmos em novos assuntos. Sem uma atenção constante aos fundamentos não há como atingir a sabedoria, seja qual for o campo de especialização. Neste caso o âmbito do estudo é modesto, e a revisão da matéria faz-se em poucos minutos. Convidamos o leitor a relembrar o que lhe ensinámos aqui mesmo há um ano sobre o género Pterocephalus. Ficou então a saber que só saindo de território português poderia admirar ao vivo e no habitat próprio estas primas arbustivas das bem conhecidas escabiosas. De facto, e apesar de existir um Pterocephalus no sudoeste de Espanha (veja aqui), a aposta mais segura é dirigir-se às Canárias, onde são quatro as espécies do género, todas endémicas do arquipélago. Como três delas existem em Tenerife, é essa a escolha óbvia para um principiante na matéria, e foram precisamente as espécies tenerifenhas que ilustraram a nossa primeira lição sobre o assunto. Essa primeira lição bem poderia ter sido a última, pois nada temos a acrescentar aos fundamentos teóricos então expostos. Ficou por ilustrar o Pterocephalus porphyranthus, endémico de La Palma. Tendo entretanto visitado essa ilha, completámos a nossa colecção de rosalitos canarinos e podemos agora mostrar o cromo que faltava.

Pterocephalus porphyranthus Svent.


Porphyranthus significa "flores púrpuras", e salta à vista que este rosalito palmense tem flores mais escuras que os seus primos de Tenerife. À parte disso, distingue-se pelo porte (é bem mais pequeno do que o P. dumetorus), pela forma, tamanho e disposição das folhas, e pelas brácteas dos capítulos florais. São esses detalhes morfológicos que permitem afirmar com toda a certeza que as plantas de flores brancas das duas últimas fotos — e que se encontravam misturadas com plantas normais — pertencem à mesma espécie, apesar da cor anómala das flores. Estas mutações de cor surgem ocasionalmente em muitas linhagens de plantas e, pelos lucros que podem trazer, são muito apreciadas por horticultores. As exigências ecológicas do Pterocephalus porphyranthus e dos demais rosalitos das Canárias não parecem, infelizmente, torná-los propícios à domesticação, e é improvável que o cultivo destas plantas em jardim seja bem sucedido. Vivendo a mais de 2000 de altitude numa ilha sub-tropical, sobre rochas vulcânicas, e sujeito a grandes amplitudes térmicas, o rosalito de La Palma está adaptado a condições de vida que dificilmente podem ser recriadas noutro local do planeta — ou mesmo numa estufa. Quem quiser vê-lo em flor tem mesmo que ir a La Palma e subir ao cume da ilha, de preferência entre meados de Maio e princípios de Julho.