O reino de Gulliver
Quase todos ouvimos relatos das viagens de Gulliver na infância. As adaptações para crianças da obra de Jonathan Swift não têm o tom satírico do original, mas mantiveram-se suficientemente fantasiosas para nos espevitarem a imaginação. O facto de as andanças de Gulliver não serem nada verosímeis só nos ocorreu muito tempo depois. O que nos inquietou quando crianças foi a teimosia do personagem. Gulliver é um aventureiro desajeitado a quem não falta bravura, que num dia azarado promete nunca mais voltar ao mar, e no seguinte se faz capitão de um navio. Cada viagem é mais desastrosa do que a anterior, embora Gulliver ganhe um novo amigo em cada uma; e a ciência não ajuda a reduzir os riscos dessas travessias marítimas, preocupada que está em pesquisar modos de extrair raios de sol de pepinos, algodão do mármore e cores dos cheiros.
Os reinos que Gulliver encontra quando naufraga são sociedades bem estruturadas, autoritárias, disputando o poder para decidir sobre pormenores irrelevantes (como o melhor modo de quebrar a casca de um ovo cozido). Do confronto entre o poder solitário do gigante Gulliver e a imaturidade social do povo minúsculo de Lilliput, suspeita-se que Swift quis refutar a ideia ingénua e optimista, veiculada em Robinson Crusoe (livro publicado alguns anos antes), de que o indivíduo é naturalmente hábil e bom, independentemente da estrutura gregária que o abriga. A novela de ficção de Swift seria, porém, mais realista se incluísse descendentes de Gulliver na ilha de Lilliput.
Vem este arrazoado a propósito do género Aeonium, que contém o maior número de híbridos de toda a flora do arquipélago das Canárias. A formação de híbridos é um processo frequente na natureza, dos mais eficazes para a diversificação da fauna e da flora. Na ilha de La Palma, a maior espécie do género Aeonium (A. nobile, que floresce entre Maio e Julho) e a espécie mais pequena (A. sedifolium, com floração de Março a Maio) são progenitores de um híbrido, Aeonium x gulliveri, descoberto há 7 anos por Octavio Arango em El Time. Um tal cruzamento parece impossível face às datas de floração dos pais. O descritor deste híbrido conjectura que as mudanças climáticas tenham alterado as épocas de floração das duas espécies, ou prolongado a sua duração, ou beneficiado florações extemporâneas. O híbrido, que quando cultivado floresce entre Maio e Julho, é muito raro, e nós não o vimos quando passeámos em Maio pelas escarpas de El Time, a cerca de 450 m de altitude.