14/03/2023

Ramalhete de estreleiras (II)

O que é uma espécie? Tradicionalmente, define-se como um conjunto de indivíduos capazes de se reproduzirem entre si, gerando novos indivíduos também eles férteis e sexualmente compatíveis com os das gerações anteriores. Esta visão funcional de espécie esbarra em diversos obstáculos: há espécies (apomíticas ou autogâmicas) em que a reprodução não requer fecundação por outro indíviduo, sendo cada um capaz de se reproduzir sem intervenção de qualquer parceiro; e há espécies que, distinguindo-se uma da outra de forma clara tanto morfológica como geneticamente, não têm quaisquer barreiras reprodutivas entre si, produzindo em geral híbridos férteis. No que toca a plantas, este segundo caso costuma ocorrer em géneros onde proliferam espécies morfologicamente próximas e com áreas de distribuição parcialmente sobrepostas. Os sucessivos cruzamentos e recruzamentos entre duas ou mais espécies podem levar ao aparecimento de formas intermédias reprodutivamente estáveis — que tanto podem ser consideradas espécies novas como ser usadas (coisa que a dada altura os botânicos gostavam muito de fazer) para argumentar que as tais duas ou mais espécies constituem afinal uma única espécie altamente variável.

Nas Canárias, a hibridação pode ter jogado um papel não menos importante do que a adaptação a habitats diferenciados na diversificação de um género tão rico em espécies como o Argyranthemum. Sendo certo que, em cada ilha, as diferentes espécies hibridam entre si com grande à-vontade, se adoptássemos a definição funcional de espécie (juntando-lhe, aqui e ali, o argumento das "formas intermédias") chegaríamos ao resultado absurdo de, no máximo, haver uma espécie de Argyranthemum por ilha — quando, na verdade, só em Tenerife existem mais de dez. Assim, para reflectir toda esta óbvia diversidade, houve que dar primazia, na circunscrição de espécies e subespécies, aos critérios morfológicos. Mas, agora que a genética permite reconstruir a árvore genealógica de cada ser vivo, "espécie" passou a ser o conjunto (mais ou menos homogéneo, e formado por indivíduos sexualmente compatíveis) de todos os descendentes de um certo antepassado comum. De facto, todas as categorias taxonómicas (ordem, classe, género, espécie, subespécie, variedade) devem, idealmente, subordinar-se à genealogia: cada uma delas deve reunir todos os descendentes, e só os descendentes, de um mesmo antepassado. Houve assim que reorganizar, à luz da filogenia, toda a antiga árvore taxonómica, e o género Argyranthemum não poderia ficar imune à mudança. A tarefa ainda não está concluída, mas já se pode afirmar com segurança (veja-se Oliver W. White et al., 2020) que não houve exagero no número de espécies e subespécies descritas nas Canárias pelos métodos tradicionais: às diferenças morfológicas observadas correspondem reais diferenças genéticas. Mas certas entidades taxonómicas que pareciam próximas, tendo sido por isso descritas como subespécies de uma mesma espécie, revelaram ser evolutivamente afastadas. O mais provável, portanto, é que esta modernização taxonómica resulte num aumento do número de espécies de Argyranthemum reconhecidas no arquipélago.

Argyranthemum gracile Sch. Bip.


Da árvore filogenética apresentada no artigo de O. W. White et al. deduz-se, por exemplo, que as subespécies de Argyranthemum frutescens, agora em número de sete, não se podem manter como tal, a menos que duas espécies actualmente reconhecidas (A. gracile e A. vincentii, ambas ilustrando o texto de hoje) sejam também despromovidas a subespécies de Argyranthemum frutescens. E uma espécie com nove subespécies morfologicamente tão díspares é quase um contra-senso: a taxonomia tem como missão reconhecer as diferenças entre organismos e classificá-los em conformidade, e é preguiça indesculpável declarar que são iguais coisas obviamente diferentes.

Tanto o Argyranthemum gracile (em cima) como o Argyranthemum vincentii (em baixo) são endémicos de Tenerife e singularizam-se, face a outros congéneres seus, pelas folhas com segmentos lineares estreitos e compridos. No entranto, as folhas do primeiro parecem um garfo com apenas três dentes (2.ª foto acima), enquanto que as do segundo são bipinadas ou tripinadas, sempre divididas em numerosos segmentos (penúltima foto abaixo). O Argyranthemum vincentii é o mais robusto dos dois — por vezes aproxima-se dos 2 m de altura — e apresenta as folhas aglomeradas na parte terminal dos ramos, formando uma silhueta muito característica (1.ª e 2.ª fotos abaixo). Na ecologia, as duas espécies têm preferências algo similares: ambas moram em barrancos no sul de Tenerife, mas o Argyranthemum gracile prefere o sudoeste da ilha — tanto assim que o nosso encontro com ele se deu no Barranco del Infierno, acima da vila de Adeje. O Argyranthemum vincentii, por seu turno, apareceu-nos em local um pouco menos inóspito, no Barranco de Badajoz, em Güímar, indicando talvez uma apetência por habitats menos secos.

Uma curiosidade: apesar de o nome ser usado, desde há vários anos (pelo menos desde 2016), em guias e portais sobre a flora das Canárias, o nome Argyranthemum vincentii não parece ter sido ainda formalmente publicado. Talvez os autores aguardem que alguém ponha ordem no género Argyranthemum (desenredando, em particular, o emaranhado novelo de subespécies do Argyranthemum frutescens) antes de avançarem para a publicação.

Argyranthemum vincentii Santos & Feria

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