Ramalhete de estreleiras (II)
O que é uma espécie? Tradicionalmente, define-se como um conjunto de indivíduos capazes de se reproduzirem entre si, gerando novos indivíduos também eles férteis e sexualmente compatíveis com os das gerações anteriores. Esta visão funcional de espécie esbarra em diversos obstáculos: há espécies (apomíticas ou autogâmicas) em que a reprodução não requer fecundação por outro indíviduo, sendo cada um capaz de se reproduzir sem intervenção de qualquer parceiro; e há espécies que, distinguindo-se uma da outra de forma clara tanto morfológica como geneticamente, não têm quaisquer barreiras reprodutivas entre si, produzindo em geral híbridos férteis. No que toca a plantas, este segundo caso costuma ocorrer em géneros onde proliferam espécies morfologicamente próximas e com áreas de distribuição parcialmente sobrepostas. Os sucessivos cruzamentos e recruzamentos entre duas ou mais espécies podem levar ao aparecimento de formas intermédias reprodutivamente estáveis — que tanto podem ser consideradas espécies novas como ser usadas (coisa que a dada altura os botânicos gostavam muito de fazer) para argumentar que as tais duas ou mais espécies constituem afinal uma única espécie altamente variável.
Nas Canárias, a hibridação pode ter jogado um papel não menos importante do que a adaptação a habitats diferenciados na diversificação de um género tão rico em espécies como o Argyranthemum. Sendo certo que, em cada ilha, as diferentes espécies hibridam entre si com grande à-vontade, se adoptássemos a definição funcional de espécie (juntando-lhe, aqui e ali, o argumento das "formas intermédias") chegaríamos ao resultado absurdo de, no máximo, haver uma espécie de Argyranthemum por ilha — quando, na verdade, só em Tenerife existem mais de dez. Assim, para reflectir toda esta óbvia diversidade, houve que dar primazia, na circunscrição de espécies e subespécies, aos critérios morfológicos. Mas, agora que a genética permite reconstruir a árvore genealógica de cada ser vivo, "espécie" passou a ser o conjunto (mais ou menos homogéneo, e formado por indivíduos sexualmente compatíveis) de todos os descendentes de um certo antepassado comum. De facto, todas as categorias taxonómicas (ordem, classe, género, espécie, subespécie, variedade) devem, idealmente, subordinar-se à genealogia: cada uma delas deve reunir todos os descendentes, e só os descendentes, de um mesmo antepassado. Houve assim que reorganizar, à luz da filogenia, toda a antiga árvore taxonómica, e o género Argyranthemum não poderia ficar imune à mudança. A tarefa ainda não está concluída, mas já se pode afirmar com segurança (veja-se Oliver W. White et al., 2020) que não houve exagero no número de espécies e subespécies descritas nas Canárias pelos métodos tradicionais: às diferenças morfológicas observadas correspondem reais diferenças genéticas. Mas certas entidades taxonómicas que pareciam próximas, tendo sido por isso descritas como subespécies de uma mesma espécie, revelaram ser evolutivamente afastadas. O mais provável, portanto, é que esta modernização taxonómica resulte num aumento do número de espécies de Argyranthemum reconhecidas no arquipélago.
Da árvore filogenética apresentada no artigo de O. W. White et al. deduz-se, por exemplo, que as subespécies de Argyranthemum frutescens, agora em número de sete, não se podem manter como tal, a menos que duas espécies actualmente reconhecidas (A. gracile e A. vincentii, ambas ilustrando o texto de hoje) sejam também despromovidas a subespécies de Argyranthemum frutescens. E uma espécie com nove subespécies morfologicamente tão díspares é quase um contra-senso: a taxonomia tem como missão reconhecer as diferenças entre organismos e classificá-los em conformidade, e é preguiça indesculpável declarar que são iguais coisas obviamente diferentes.
Tanto o Argyranthemum gracile (em cima) como o Argyranthemum vincentii (em baixo) são endémicos de Tenerife e singularizam-se, face a outros congéneres seus, pelas folhas com segmentos lineares estreitos e compridos. No entranto, as folhas do primeiro parecem um garfo com apenas três dentes (2.ª foto acima), enquanto que as do segundo são bipinadas ou tripinadas, sempre divididas em numerosos segmentos (penúltima foto abaixo). O Argyranthemum vincentii é o mais robusto dos dois — por vezes aproxima-se dos 2 m de altura — e apresenta as folhas aglomeradas na parte terminal dos ramos, formando uma silhueta muito característica (1.ª e 2.ª fotos abaixo). Na ecologia, as duas espécies têm preferências algo similares: ambas moram em barrancos no sul de Tenerife, mas o Argyranthemum gracile prefere o sudoeste da ilha — tanto assim que o nosso encontro com ele se deu no Barranco del Infierno, acima da vila de Adeje. O Argyranthemum vincentii, por seu turno, apareceu-nos em local um pouco menos inóspito, no Barranco de Badajoz, em Güímar, indicando talvez uma apetência por habitats menos secos.
Uma curiosidade: apesar de o nome ser usado, desde há vários anos (pelo menos desde 2016), em guias e portais sobre a flora das Canárias, o nome Argyranthemum vincentii não parece ter sido ainda formalmente publicado. Talvez os autores aguardem que alguém ponha ordem no género Argyranthemum (desenredando, em particular, o emaranhado novelo de subespécies do Argyranthemum frutescens) antes de avançarem para a publicação.
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