Ramalhete de estreleiras (I)
Que fazer com a mercadoria acumulada em armazém, já coberta de pó, que nenhum cliente mostra interesse em comprar? Anunciar descontos, três pelo preço de um, oportunidade única a não perder? Ou até gabar a raridade do produto, coisa antiga como hoje já não se fabrica? (Agora vem tudo da China.) O que temos, na verdade, são flores: flores fotografadas, que não murcham nem perdem a cor, imunes ao pó e à passagem do tempo, sempre na moda porque nunca estiveram na moda. O preço que por elas cobramos é imune à inflação, e exprime-se pelo mesmo número em todas as moedas conhecidas (mesmo as já fora de circulação): zero euros, zero escudos, zero dólares ou zero xelins. Ainda assim, não queremos distribuí-las ao desbarato. Vamo-las dispondo cuidadosamente na montra, não muitas de cada vez, dando-lhes espaço e tempo para serem apreciadas com vagar. Bastará uma semana para que alguém se interesse por elas?
Começamos a época de saldos (chamemos-lhes assim) com um ramalhete de três malmequeres arbustivos do género Argyranthemum, todos endémicos de Tenerife. Das 24 espécies de Argyranthemum actualmente aceites, três vivem na Madeira, uma nas Selvagens e vinte nas Canárias. A espécie mais comum na Madeira, A. pinnatifidum, é conhecida popularmente como estreleira, e esse parece-nos um bom nome para aplicar indistintamente a todas as espécies do género. Estrelas-de-prata também não estaria mal, até porque Argyranthemum, que vem do grego antigo, significa "flores de prata". A ilha mais abonada em estreleiras é Tenerife, com dez espécies (subindo o número para catorze se contarmos subespécies), seguida da Grã-Canária com cinco (nove se incluirmos subespécies), de La Palma com quatro, de La Gomera e El Hierro com três cada, e finalmente de Lanzarote e Fuerteventura com uma espécie por ilha. A maioria das espécies são exclusivas de uma só das ilhas, mas há espécies partilhadas por diversas ilhas, embora por vezes com diferentes subespécies em diferentes ilhas. Um bom exemplo é o A. frutescens, que ocorre em todas as ilhas do arquipélago excepto Fuertventura, e de que se contam sete subespécies, quatro delas endémicas de uma ilha só e três com distribuições mais alargadas. Os habitats ocupados pelas diferentes espécies são dos mais diversos, desde a laurissilva húmida até aos pinhais de Pinus canariensis, desde a costa até aos cumes mais elevados, desde barrancos pouco acessíveis até às bermas das estradas mais movimentadas.
Planta robusta, capaz de chegar aos 1,2 m de altura, com folhas grandes e atraentes, duas a três vezes divididas, o Argyranthemum broussonetii (em cima) vive em Tenerife, em lugares umbrosos da laurissilva de Anaga e, mais escassamente, do vale de La Orotova. Até 2021 considerava-se que a espécie estaria também representada em La Gomera por uma subespécie própria (A. broussonetii subsp. gomerensis), mas estudos genéticos e morfológicos (ver artigo) mostraram que as duas putativas subespécies eram evolutivamente afastadas, devendo em vez disso a planta de La Gomera ser tratada como subespécie da endémica A. callichrysum. Com floração prolongando-se entre Fevereiro e Julho, este novel endemismo tenerifenho, bem adaptado a climas frescos, parece feito de encomenda para jardins de regiões temperadas.
Sem sairmos de Tenerife, damos um salto à montanha do Teide para admirarmos o Argyranthemum tenerifae ou estreleira-dos-cumes (fotos em cima), que vive a pleno sol nas extensões pedregosas aos pés do grande vulcão. Numa típica adaptação ao habitat inóspito, exibe uma forma compacta e arredondada, e também na folhagem se diferencia radicalmente da sua prima da laurissilva. Quem não gostaria de as ter lado a lado no mesmo jardim? Desejo impossível, pois a casa que convém a uma é inabitável para a outra. E ainda há a suspeita de que, como sucede à maioria das plantas de alta montanha com distribuição restrita, o Argyranthemum tenerifae seja avesso à domesticação e impossível de cultivar em jardins.
Eis mais uma estreleira de Tenerife, aqui incluída para aviso e instrução dos nossos leitores. É que, vivendo ela também no Teide, o observador desprevenido pode confundi-la com a estreleira-dos-cumes. Do Argyranthemum adauctum estão descritas sete subespécies nas várias ilhas do arquipélago, e a subsp. dugouri (nas fotos) é uma das duas que são endémicas de Tenerife. Vive sobretudo em pinhais, mas em certos pontos da montanha do Teide os bosques de Pinus canariensis ascendem a altitudes superiores a 2000 metros, e é na orla desses bosques que se podem dar os encontros imediatos entre a estreleira-dos-cumes e a estreleira-dos-pinhais. Contudo, esta última distingue-se sem dificuldade pela indumentação das folhas e das hastes (é muito mais hirsuta do que a sua congénere), pela forma das folhas, e mesmo pelo aspecto geral (tem hastes erectas, pouco densas, contrastande com o aspecto compacto da estreleira-dos-cumes).
Temos mais estreleiras em armazém para despachar — e a seu tempo, depois de lhes puxarmos o lustro para brilharem como novas, aqui as traremos para tentar despertar o desejo de quem nos vier espreitar a montra. Não desdenhe o leitor delas por lhe parecerem antiquadas ou por estar habituado a desconfiar dos produtos de ocasião. Dentro da gama em que nos especializámos, são produtos excelentes, e não encontra melhor nem mais barato nas lojas da concorrência.
1 comentário :
Como diria Chico Buarque "Pra mim, basta um dia, meio dia..." do álbum "Meus Caros Amigos" de 1976, nem de propósito, meus caros conhecidos!
Árvores e flores aqui sempre exultantes.
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