31/01/2021

Hortelã dos pinhais

Agrupar espécies num mesmo género antes de dispormos de estudos genéticos deve ter sido tarefa complexa e nem sempre rigorosa. Limitando-se a interpretar detalhes da morfologia das folhas, caules ou flores, o erro era quase inevitável. Foi, todavia, assim que funcionou durante séculos a etiquetagem das plantas, nascendo géneros novos sempre que a comparação era inconclusiva ou os botânicos não se entendiam sobre a autoria dos táxons. A arrumação recente, mais bem fundamentada, confirma, porém, que fiar-se nas parecenças é um bom ponto de partida.

Bystropogon canariensis (L.) L'Hér.


O género Bystropogon é exclusivo das ilhas Canárias e da Madeira, com algumas características que fazem lembrar os géneros Origanum (do orégão) e Thymus (do tomilho). São arbustos pequenos, de talos com secção quadrada e folhas simples, perenes, pubescentes e aromáticas (cheiram a hortelã), geralmente ovadas e com margens crenadas. As flores são tubos minúsculos com quatro estames, lobados como é usual na família Lamiaceae, agrupadas em vistosas panículas ramificadas que lembram nuvens pequeninas de flores brancas, rosadas ou violáceas. Os exemplares das fotos, de B. canariensis, habitam em Tenerife, no extenso pinhal de Pinus canariensis que, entre os 1000 e os 2000 metros de altitude, envolve a estrada ligando San Cristóbal de La Laguna à montanha do Teide.

Pinus canariensis C. Sm. ex DC. — Boca del Valle, Tenerife
No total, há registo de cinco espécies endémicas de Bystropogon no arquipélago das Canárias (B. canariensis, B. origanifolius, B. odoratissimus, B. plumosus e B. wildpretii) e duas na ilha da Madeira (B. maderensis e B. punctatus). Distinguem-se pela penugem, pelos dentes nos cálices, pela coloração das corolas, pela textura mais ou menos coriácea das folhas e, sobretudo, pelas preferências de habitat: as espécies da Madeira, bastante raras, vivem em taludes rochosos com humidade, mais frequentes no interior sombrio da laurissilva; as das Canárias, pelo contrário, apreciam solos secos e boa exposição ao sol. A floração é mais ou menos simultânea, com as espécies das Canárias ligeiramente adiantadas, decerto para evitar o calor excessivo do Verão.

O termo L'Hér. é a abreviatura padrão usada para indicar o botânico francês Charles Louis L'Héritier (1746 – 1800), a quem se deve a primeira distinção clara entre os géneros Geranium, Pelargonium e Erodium.

25/01/2021

Pendulina de flores douradas



Com uma altitude máxima de 1956 metros, a Grã-Canária é a terceira mais alta das ilhas Canárias, suplantada por Tenerife (3718 m) e La Palma (2426 m). Ser a terceira de sete não é grande título de glória, mas desde que haja precipícios de respeito, com miradouros estrategicamente colocados para potenciar a vertigem e o assombro, não é por ter mil metros a menos que uma ilha fica diminuída. Com um contorno aproximadamente circular e o ponto mais elevado quase coincidindo com o centro, a Grã-Canária, ainda que de formato achatado, teria tudo para ser um cone perfeito. Acontece que a natureza, essa caprichosa escultora, não se conformou ao ideal geométrico, e em vez das vertentes lisas descaindo placidamente para a costa temos vales escarpados, picos fora do seu lugar, desníveis repentinos e estradas que são um susto. Uma estrada a não perder pelos aficionados de emoções fortes é a GC-606, que liga o Roque Nublo, a uns 1400 m de altitude, à barragem de Parralillo, situada 1100 m abaixo: são 12 Km de via estreitíssima, com curvas apertadas e sem visiblidade, sempre à beira do abismo.

Uma estrada assim, onde qualquer desatenção pode ser a última, não é a mais indicada para botanizar enquanto se conduz. Também não é fácil encontrar onde encostar o carro sem atrapalhar o trânsito — ainda que este seja apenas hipotético, já que ninguém no seu inteiro juízo passa duas vezes por uma estrada destas. A solução sensata é mesmo largar o carro e percorrer a estrada a pé. Os taludes das estradas de montanha, aqui como em todas as ilhas Canárias, são ricos em endemismos botânicos, e proporcionam uma cómoda introdução à flora do arquipélago.

Chrysoprenanthes pendula (Sch. Bip.) Bramwell [= Sonchus pendulus (Sch. Bip.) Sennikov]


Já quase chegados à barragem de Parralillo, e devidamente surpreendidos por vermos acumulada tanta água numa ilha onde nunca chove, foi-nos enfim possível estacionar o carro e atentar nas plantas dos taludes, que aqui são altos, quase nus, formados por grandes e variegados blocos rochosos. Uma das poucas plantas frequentes neste habitat era uma asterácea de base lenhosa e hábito pendente, de pequenos capítulos amarelos e grandes folhas com pedúnculo longo e lobos agudos, triangulares. Aparentada com os dentes-de-leão, a Chrysoprenanthes pendula é endémica da Grã-Canária — e, pese embora a sua semelhança com as espécies arbustivas do género Sonchus tão frequentes nas Canárias (eis um exemplo de Lanzarote), é planta que não se confunde com nenhuma outra. Tanto assim é que a sua posição taxonómica tem sido instável e ainda hoje não é consensual. Primeiramente descrita em 1849 como Prenanthes pendula pelo alemão Karl Bipontinus Schultz (1805-1867), em 2003 o britânico David Bramwell transferiu-a para um novo género mono-específico, Chrysoprenanthes. Mas antes disso, em 1999, já os russos Alexander Sennikov e Irene Illarionova a haviam arrumado no género Sonchus, sublinhando a sua proximidade com as espécies desse género incluídas na secção Atalanthus (que vários autores consideram como género independente). Os estudos moleculares do sul-coreano Seung-Chul Kim e da sua equipa (ver artigo) vieram desempatar a contenda, ao revelarem que o género Sonchus, para ser monofilético (i.e., para ser formado por todos os descendentes de um único antepassado comum), deve absorver uns tantos géneros até aqui autónomos (como Aetheorhiza) — e, nesse quadro, Chrysoprenanthes e outros géneros canarinos como Sventenia e Lactucosonchus têm de abdicar da sua autonomia.

Tão interessante como a questão taxonómica é a diversidade de origens dos botânicos que, ao longo destes dois séculos, a têm investigado: há (entre outras nacionalidades) alemães, suecos, britânicos, russos e sul-coreanos — todos eles unidos pela ciência botânica (mesmo exprimindo sobre ela opiniões divergentes) e pela pulsão de fugir ao frio das suas diversas pátrias visitando (em trabalho de campo, claro) estas ilhas abençoadas por uma eterna Primavera.

20/01/2021

Comunicando por aromas

Há uns anos, a revista Scientific American deu conta da morte quase em simultâneo de centenas de antílopes no sul de África. A época do ano ia extremamamente seca e quente no local, e a fome foi a primeira causa a ser ponderada — logo excluída, porém, ao saber-se que os animais tinham morrido envenenados. Como? Comeram folhas de acácia, a fonte usual de alimento para os antílopes. Mas então o que se passou?

Em geral, as plantas apreciam que os seus frutos sejam consumidos pelos animais que, juntando o útil ao agradável, ajudam na dispersão das sementes. Já no que toca às flores, folhas, talos ou raízes, as plantas fazem o que podem para os salvaguardar: protegem-nos com espinhos, brácteas robustas, glândulas urticantes, odores desagradáveis, e até veneno. Fabricar estas armas custa muita energia, e por isso muitas plantas possuem mecanismos que lhes permitem activar ou acelerar estes procedimentos para não estarem sempre com eles ligados. E a família das leguminosas é especialmente ágil a mobilizar esta estratégia defensiva, capaz de conspirar contra os predadores. Durante estios secos e prolongados, quase despidas de folhagem e com parcas condições de sobrevivência, estas plantas receiam pela vida. E a primeira a que os bichos famintos se encostam com o dente aguçado emite de imediato um sinal de alarme (um odor) a avisar as plantas vizinhas da proximidade de herbívoros. Estas, numa reacção cuja rapidez nos surpreende em seres tão imóveis e tranquilos, tratam de produzir mais toxinas e, em menos de meia hora, as suas folhas, antes inofensivas, transformam-se em pratos de veneno mortal. Decerto, ao fim de muitas gerações, os antílopes aprenderão a evitar estas folhas tóxicas em tempos de seca extrema. Mas com as alterações do clima a ocorrerem tão depressa, é real o risco de muitas espécies não terem tempo para aprender.

Anagyris foetida L.


Este arbusto de pequeno porte, folhas compostas e lindas flores amarelas (com pintas no estandarte) que vimos perto da fonte Benémola, no Algarve, também é tóxico. O povo espanhol, avisado, chama-se leño hediondo, altramuz del diablo e collar de bruja. É frequente na região mediterrânica, surgindo em matos, baldios e bermas de caminhos, e outrora ter-se-á usado para tornar mais mortíferas as pontas das lanças. Nas Canárias ocorre uma espécie de morfologia muito semelhante, a Anagyris latifolia, um endemismo destas ilhas com folhas grandes que pode atingir os 5 metros de altura.

10/01/2021

Cardos do sol



Nos Pirenéus, acima da cintura florestal mas abaixo dos picos onde a neve persiste quase todo o ano, estendem-se pantagens nuas em colinas suavemente modeladas. É o paraíso das cabras, vacas e ovelhas, as primeiras muitas vezes sem dono e sem controlo, as outras obrigadas a fornecer-nos alimento e agasalho em troca da boa vida que levam. Todas são infatigáveis a dar ao dente para manter os campos cortados à escovinha. Haverá plantas floridas que sobrevivam a perseguição tão tenaz e sejam capazes de romper a lisura uniforme das pastagens? A pergunta, canhestramente retórica, tem um óbvio sim como resposta. Há plantas em que mesmo os ruminantes mais determinados aprenderam a não tocar, por serem venenosas, ou de sabor desagradável, ou por os espinhos tornarem a mastigação penosa. Entre as peçonhentas ou amargosas mais conhecidas contam-se os acónitos, as abróteas e os lírios. O lírio-de-folhas-largas (Iris latifolia), infelizmente já sem flores quando em Agosto visitámos Plana Canal nos Pirenéus aragoneses, brotava aos milhares pelas pastagens, convivendo pacificamente com a indiferença do gado. E a variedade espinhenta da comida-a-evitar estava bem representada pelos cardos, alguns de envergadura considerável, outros rasteiros e dourados como sóis infantis colados no chão.

Carlina acanthifolia All.


O cardo-do-sol, cuja designação oficial é Carlina acanthifolia, é de tal modo evocador do astro-rei que é costume, nas várias cadeias montanhosas europeias onde ocorre, pregá-lo em portas e janelas para repelir maus-olhados. E mesmo depois de seco ele é útil nas previsões meteorológicas: se o tempo ameaça chuva, as brácteas petalóides que envolvem a inflorescência recolhem-se; se o dia promete sol, elas mostram-se distendidas. Por isso, além de ser chamado erva-das-bruxas (yerba de broxas) em Aragão, este cardo é em França conhecido, entre outras coisas, como chardon baromètre, e em inglês houve quem propusesse chamar-lhe weather thistle.

Planta bienal ou perene, desprovida de caule, a Carlina acanthifolia produz em cada ano, durante o Verão, um único capítulo com uns 15 cm de diâmetro, composto por florículos tubulares amarelos e guarnecido por brácteas douradas, que surge aninhado no centro de uma perfeita roseta de folhas espinhentas. É espontânea em grande parte da Europa, sempre em zonas montanhosas, desde a Polónia até à Península Ibérica. É frequente nos Pirenéus, mas no resto de Espanha aparece apenas, e escassamente, em algumas serras do sudeste.

Nos mesmos habitats, e com uma distribuição em larga medida sobreposta, ocorre uma versão lunar do cardo-do-sol. Trata-se da Carlina acaulis, com capítulos menores, às vezes mais do que um por planta, formados por florículos brancos tingidos de púrpura e rodeados por brácteas prateadas. O epíteto acaulis diz-nos que este cardo não desenvolve caule, o que nem sempre é verdade. Menos vistosa e de folhagem mais agressiva do que a sua congénere amarela, a C. acaulis tem os mesmos usos meterológicos e goza de alguma reputação medicinal, ainda que dúbia. Diz a (muito incerta) lenda que a raiz da planta terá sido usada por Carlos Magno para combater a peste bubónica que dizimava as suas tropas, e que o próprio nome Carlina seria uma homenagem ao imperador inspirada por esse episódio.

Carlina acaulis L.

05/01/2021

Tamujo continental

O Pico da Melriça, no concelho de Vila de Rei, em Castelo Branco, é um monte com cerca de 600 metros de altura, no topo do qual se ergue um marco geodésico. Assinala o centro geográfico de Portugal continental, uma aproximação do centro geométrico do país, obtida supondo-se que Portugal continental é uma região homogénea e plana, ainda que não exactamente um rectângulo. Igualmente interessante é o centro demográfico do país, que em geral varia com o tempo pois a distribuição da população pelo nosso território não é fixa. O centro demográfico de Portugal encontrava-se, em 1864, a cerca de 17 km a leste de Coimbra. Com a emigração das décadas de 60 e 70 do século XX, o êxodo das regiões rurais do interior e a maior concentração de população no litoral, o ponto que representa este centro moveu-se, de acordo com os recenseamentos mais recentes, para sul e para oeste, estando agora mais perto de Lisboa.



Esta movimentação da população portuguesa tem tido, naturalmente, impacto na natureza. Parece certo que no interior do país muitas espécies ganharam novo fôlego com a ausência de gente, embora a construção de barragens, o desvio de caudais por causa de novas estradas e a ruderalização de leitos de cheia com edifícios ou eucaliptos continuem a ser ameaças reais à biodiversidade nesses locais agora despovoados. Entre as vítimas desta errância populacional está a vegetação ripícola. Onde a incidência demográfica se intensifica, a vegetação ribeirinha vai perdendo o seu espaço, e não será surpresa que a área de distribuição de alguns dos arbustos que bordejam cursos de água retroceda para leste tão decididamente quanto o centro demográfico avança para oeste.

Flueggea tinctoria (L.) G. L. Webster


A destruição dos habitats ribeirinhos mais perto do litoral pode estar a confinar o tamujo, que prefere solos arenosos e bem drenados, ao interior centro da Península Ibérica. Este arbusto espinhoso, e muito ramificado, é um endemismo ibérico de que em Portugal só há registo nas bacias do Alto Douro, Alto Tejo e Guadiana. Fica-se portanto por uma faixa estreita a leste do país, com núcleos bastante dispersos, como se pode notar neste mapa.

O tamujo pode atingir os 2 metros de altura, é dióico e tem folhagem caduca. Os ramos finos cheios de espinhos são avermelhados, por isso fáceis de detectar no Inverno. As flores, que nascem na Primavera, são minúsculas e têm um tom geral esverdeado; não usam pétalas, mas agasalham-se com brácteas nas axilas das folhas. O género Flueggea tem representantes na Ásia, em África e na América do Sul, além da espécie ibérica. O nome homenageia o botânico alemão J. Fluegge e o seu vasto trabalho sobre gramíneas (plantas a que poucos dão a devida atenção).