Pendulina de flores douradas
Com uma altitude máxima de 1956 metros, a Grã-Canária é a terceira mais alta das ilhas Canárias, suplantada por Tenerife (3718 m) e La Palma (2426 m). Ser a terceira de sete não é grande título de glória, mas desde que haja precipícios de respeito, com miradouros estrategicamente colocados para potenciar a vertigem e o assombro, não é por ter mil metros a menos que uma ilha fica diminuída. Com um contorno aproximadamente circular e o ponto mais elevado quase coincidindo com o centro, a Grã-Canária, ainda que de formato achatado, teria tudo para ser um cone perfeito. Acontece que a natureza, essa caprichosa escultora, não se conformou ao ideal geométrico, e em vez das vertentes lisas descaindo placidamente para a costa temos vales escarpados, picos fora do seu lugar, desníveis repentinos e estradas que são um susto. Uma estrada a não perder pelos aficionados de emoções fortes é a GC-606, que liga o Roque Nublo, a uns 1400 m de altitude, à barragem de Parralillo, situada 1100 m abaixo: são 12 Km de via estreitíssima, com curvas apertadas e sem visiblidade, sempre à beira do abismo.
Uma estrada assim, onde qualquer desatenção pode ser a última, não é a mais indicada para botanizar enquanto se conduz. Também não é fácil encontrar onde encostar o carro sem atrapalhar o trânsito — ainda que este seja apenas hipotético, já que ninguém no seu inteiro juízo passa duas vezes por uma estrada destas. A solução sensata é mesmo largar o carro e percorrer a estrada a pé. Os taludes das estradas de montanha, aqui como em todas as ilhas Canárias, são ricos em endemismos botânicos, e proporcionam uma cómoda introdução à flora do arquipélago.
Já quase chegados à barragem de Parralillo, e devidamente surpreendidos por vermos acumulada tanta água numa ilha onde nunca chove, foi-nos enfim possível estacionar o carro e atentar nas plantas dos taludes, que aqui são altos, quase nus, formados por grandes e variegados blocos rochosos. Uma das poucas plantas frequentes neste habitat era uma asterácea de base lenhosa e hábito pendente, de pequenos capítulos amarelos e grandes folhas com pedúnculo longo e lobos agudos, triangulares. Aparentada com os dentes-de-leão, a Chrysoprenanthes pendula é endémica da Grã-Canária — e, pese embora a sua semelhança com as espécies arbustivas do género Sonchus tão frequentes nas Canárias (eis um exemplo de Lanzarote), é planta que não se confunde com nenhuma outra. Tanto assim é que a sua posição taxonómica tem sido instável e ainda hoje não é consensual. Primeiramente descrita em 1849 como Prenanthes pendula pelo alemão Karl Bipontinus Schultz (1805-1867), em 2003 o britânico David Bramwell transferiu-a para um novo género mono-específico, Chrysoprenanthes. Mas antes disso, em 1999, já os russos Alexander Sennikov e Irene Illarionova a haviam arrumado no género Sonchus, sublinhando a sua proximidade com as espécies desse género incluídas na secção Atalanthus (que vários autores consideram como género independente). Os estudos moleculares do sul-coreano Seung-Chul Kim e da sua equipa (ver artigo) vieram desempatar a contenda, ao revelarem que o género Sonchus, para ser monofilético (i.e., para ser formado por todos os descendentes de um único antepassado comum), deve absorver uns tantos géneros até aqui autónomos (como Aetheorhiza) — e, nesse quadro, Chrysoprenanthes e outros géneros canarinos como Sventenia e Lactucosonchus têm de abdicar da sua autonomia.
Tão interessante como a questão taxonómica é a diversidade de origens dos botânicos que, ao longo destes dois séculos, a têm investigado: há (entre outras nacionalidades) alemães, suecos, britânicos, russos e sul-coreanos — todos eles unidos pela ciência botânica (mesmo exprimindo sobre ela opiniões divergentes) e pela pulsão de fugir ao frio das suas diversas pátrias visitando (em trabalho de campo, claro) estas ilhas abençoadas por uma eterna Primavera.
1 comentário :
Sempre grato sair das paredes de vidro e prédios, para espreitar as vossas paisagens e chãos. Do que vou lendo foi uma viagem de grandes horizontes.
Saudações
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