21/02/2022

Cenoura à beira-rio


Myrrhoides nodosa (L.) Cannon


Eis uma umbelífera de ampla distribuição europeia e mediterrânica que, à partida, pouco tem para se fazer notada. Em Portugal, estando no limite da sua área de distribuição, é uma planta pouco vista, praticamente restrita ao quadrante nordeste do país. De seu nome Myrrhoides nodosa, vive em lugares sombrios, algo nitrificados, na proximidade de cursos de água, e não chama a atenção nem pelo porte (entre 30 e 100 cm de altura), nem pela floração (as umbelas são modestas, com dois a quatro raios, cada um deles sustentando meia dúzia de pequenas flores brancas), nem pela folhagem (semelhante à de muitas outras umbelíferas, em especial à do cerefolho). Contudo, quem olhar os detalhes não terá dificuldade em identificá-la se atentar nos pêlos brancos, longos e rígidos que revestem hastes, bractéolos, pedúnculos e frutos. Outro pormenor inequívoco é o inchaço do caule abaixo de cada nó, como se vê nesta foto.

Por preguiça ou conveniência, associámos a planta, no título deste escrito, à umbelífera de flor branca mais comum no nosso país: a cenoura-brava (Daucus carota). Não consta, contudo, que a Myrrhoides nodosa tenha usos culinários ou seja sequer comestível. Talvez decifrando-lhe o nome a consigamos inscrever numa linhagem prestigiada: Myrrhoides significa presumivelmente "semelhante à mirra". Referir-se-á à mirra que trouxeram os reis magos do Oriente? Não, é antes à Myrrhis odorata, uma umbelífera também de flores brancas, por certo olorosa, que não é espontânea em Portugal e que, na Península Ibérica, está restrita aos Pirenéus e à Cordilheira Cantábrica. A verdadeira mirra é extraída de uma pequena árvore, Commiphora myrrha, nativa de África e da Península Arábica — e com a qual, obviamente, a nossa Myrrhoides não tem qualquer afinidade. E mesmo esta associação espúria está em risco, pois há quem defenda a revogação do género Myrrhoides, ficando a nossa umbelífera a chamar-se Chaerophyllum nodosum.

15/02/2022

Madama de risco



Juraríamos que o deserto, seco, muito quente e sem uma brisa, é um ambiente hostil para qualquer planta ou bicho. Até aprendermos que há inúmeras espécies muito bem adaptadas a esse tipo de habitat, e que até nem querem outro. O nosso olhar, habituado a outro clima e a outras plantas, imagina as do deserto angustiadas de calor e sede, à beira da morte por desidratação. Coitadinhas, dizemos, de folhas com um tom verde baço a denunciar a fraqueza, inchadas e cheias de espinhos. E mal se aguentam, as infelizes, empoleiradas perigosamente nos penhascos.

Mas estamos enganados. O carácter suculento das folhas, aliado a raízes longas e bem espalhadas, mas pouco profundas, é um estratagema muito eficiente de captação e reserva de água, das breves chuvas ou da humidade nocturna, absorvida rapidamente antes que o solo seque sob o calor intenso. Naturalmente, o armazenamento de água nas folhas requer protecção dessas reservas, e um renque de espinhos bem colocado inibe qualquer animal sequioso; e, claro, viver numa escarpa de difícil acesso garante que se é menos incomodado. Finalmente, o verde acinzentado das folhas não é palidez de morte, mas uma boa opção para manter as plantas frescas, porque essa cor clara reflecte melhor o calor da luz.

Em épocas de menor humidade, as plantas destes habitats áridos largam a maioria das folhas, no que poupam água, ou adoptam um regime anual, apostando na produção rápida de sementes em vez de mais anos de vida. Outras há, porém, que se mantêm perenes e tolerantes à secura, mas estas têm folhas finas, organizadas em rosetas para gerirem bem a sombra, e cobertas por uma substância resinosa (mas translúcida, para não impedir a fotosíntese) que as protege de infecções e minimiza a perda de água por evaporação. Algumas accionam ainda um sistema engenhoso de abertura e fecho dos poros que, não impedindo a entrada de dióxido de carbono durante a noite, reduz a perda de água por transpiração durante o dia.

Allagopappus canariensis (Willd.) Greuter


Esta asterácea, endemismo das Canárias, ilustra bem a descrição anterior. Ocorre em La Gomera, Gran Canaria e Tenerife. Como se tivessem sido um dia excelentes alunas no deserto, as plantas desta espécie mantêm-se rentes ao chão até que os dias se tornem mais frios e a humidade persista. Depois, com vagar, vão dispondo talo acima as rosetas de folhas resinosas e, no topo, durante a Primavera, corimbos planos e densos de capítulos amarelos sem lígulas. O género, também endémico das Canárias, abriga outra espécie (Allagopappus viscosissimus), de que só se conhecem registos na Gran Canaria, com folhas ainda mais finas e margens inteiras mas perfil idêntico.

06/02/2022

Erva raposeira

Reseda barrelieri Bertol. ex Müll. Arg.


Para quem vem do centro da Península em direcção ao norte, as montanhas calcárias de Palência anunciam, em modo suave, que estamos a chegar à Cordilheira Cantábrica, deixando para trás as estradas rectilíneas que cruzam planaltos infindáveis. A montanha palentina pode ser vista como um aperitivo modesto para quem vai em busca de paisagens de cortar o fôlego, e anseia por afastar-se de lugares muito marcados pela presença humana. Aqui, os rios correm pachorrentos por declives imperceptíveis, as povoações esparsas são entremeadas por extensos campos de cultivo geometricamente parcelados, e há zonas industriais e pedreiras activas nos arredores de pequenas cidades como Aguilar de Campoo. Mesmo assim, quem percorre as margens do rio Pisuerga em Villaescusa de las Torres, ou ascende aos afloramentos calcários sobranceiros à aldeia, se não encontra "natureza em estado puro" (esse mito romântico tão ao gosto de quem escreve para viajantes de sofá), pelo menos mergulha numa paisagem ordenada onde o que é espontâneo e genuíno na natureza ocupa lugar central.

À lista de preciosidades botânicas de Villaescusa de que já demos notícia (Saxifraga cuneata, Arenaria grandiflora, Telephium imperati, Lactuca perennis e Berberis vulgaris), juntamos agora uma reseda com preferência por substratos calcícolas ou margosos que tem a distinção de ser um endemismo ibérico e que, em espanhol, é conhecida como hopo de zorra (rabo-de-raposa). Com hastes erectas que podem chegar a um metro de altura e floração que se estende de Março a Julho, a Reseda barrelieri (o epíteto homageia Jacques Barrelier, botânico e padre dominicano francês do séc. XVII) apresenta fortes semelhanças com congéneres suas como a R. alba e a R. suffruticosa; da primeira distingue-se pelas flores sésseis (a R. alba tem pedicelos bem desenvolvidos), e da segunda por ter folhas basais menos recortados (as da R. suffruticosa são bipinatífidas). Tanto a R. barrelieri como a R. alba estão assinaladas como espontâneas em Portugal; e ambas, infelizmente, correm o risco de desaparecer do nosso país: a R. alba, que na Lista Vermelha da Flora de Portugal [LVF] foi considerada em "perigo crítico", só era conhecida das dunas de Tróia, e já não é vista desde 2015; a R. barrelieri, tanto quanto se sabe, ainda se vai aguentando na envolvente das antigas minas de Santo Adrião, em Vimioso, mas com um efectivo populacional de poucas dezenas (a LVF considerou-a "em perigo").

Santo Adrião é o maior afloramento calcário de Trás-os-Montes e dá abrigo a algumas plantas únicas. Com o fim das actividades extractivas em 2001, é hoje um espaço natural protegido incluído na Rede Natura 2000. Será isso suficiente para a Reseda barrelieri ter futuro? Em Portugal, e como a campanha do lítio tem eloquentemente mostrado, só interessa proteger a natureza enquanto valores (económicos) mais altos não se levantam.

01/02/2022

Alfavaca de Sicó

No âmbito da elaboração da Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal, ficámos a saber que o Astragalus glaux ocorre em tomilhais do maciço de Sicó, em substrato calcário margoso. As plantas desta espécie perene são herbáceas pequenas, penugentas, ramificadas na base e de hábito rasteiro, por vezes com talos delgados quase lenhosos. É relativamente frequente em Espanha e na região mediterrânica, especialmente em zonas montanhosas, mas por cá os registos da sua presença são raros, restritos a alguns núcleos na Beira Litoral, Alentejo e Estremadura.

- Espera. Disseste solo margoso?...

Sim. Esta alfavaca floresce entre Março e Maio, e as inflorescências são racimos arredondados e erectos. As flores são rosadas, com estandartes estreitos mas longos, a apontar para cima, muito bem arrumadas em torno de um centro onde a floração é mais tardia.

- Solo margoso é o que não falta nas faldas da serra de Janeanes, onde vimos o Andropogon distachyos. Poderíamos ir lá em Maio, num dia em que não chova para não nos enterrarmos na argila.



E fomos. A população de Astragalus glaux que encontrámos, não exactamente em Janeanes mas mais a sul, já no concelho de Ansião, de apenas vinte plantas, tinha inúmeras flores e alguns frutos: aglomerados globosos que parecem obtidos das inflorescências por substituição de cada flor por um fruto ovóide, peludo e com um bico.

Astragalus glaux L.


Há na natureza, e entre as plantas em particular, muitas instâncias de sincronização, de que os milhares de pirilampos a piscar em sintonia são talvez o exemplo mais famoso. Os renques de jacarandás completamente floridos de roxo parecem sugerir que há um relógio que todas as plantas da mesma espécie consultam, e a que todas as flores de uma mesma planta obedecem escrupulosamente. Mas entre as herbáceas de pequeno porte a opção de gastar todas as flores em poucos dias talvez seja demasiado arriscada. O Astragalus glaux mantém flores e frutos (nada vistosos, aliás) em simultâneo, garantindo desse modo que a atenção dos insectos não enfraquece enquanto há pólen ou sementes para disseminar.