28/12/2019

Cacto leiteiro



Euphorbia canariensis L.



aqui falámos de um cacto que afinal não era cacto. Sem sair das Canárias, o mesmo fenómeno de um cacto que o não é pode ser testemunhado, a uma escala muito mais impressionante, um pouco por todo o arquipélago, sobretudo em zonas áridas perto do mar. A Euphorbia canariensis, assim se chama esta planta cactóide, é capaz de atingir três a quatro metros de altura, e as suas hastes arqueadas, desprovidas de folhas mas não de espinhos, formam grandes aglomerados que fazem lembrar candelabros gigantes. Cada haste tem geralmente cinco faces (às vezes quatro ou seis), com o picotado dos espinhos sublinhando as arestas de alto a baixo. O disfarce de cacto só deixa de ser convincente quando a planta está em flor, o que acontece entre Abril e Julho. Como é regra das eufórbias, as inflorescências são compostas por ciátios, estruturas em que as flores masculinas (reduzidas a estames) rodeiam uma única flor feminina (reduzida ao pistilo). Os ciátios da Euphorbia canariensis, de uma cor entre o vermelho e o castanho, são sésseis (sem pedúnculo) e surgem no topo das hastes, em grupos de três, acompanhando os espinhos. De todo desaconselhável é o manuseio destas plantas sem protecção dos olhos e das mãos, já que o látex leitoso que elas produzem é cáustico e venenoso. Claramente elas não têm a vocação de aplacar a sede a quem se perca no deserto, mas ao que parece a água dos genuínos cactos dos desertos americanos, embora muito menos tóxica, também não é bebida recomendável.

Potenciando a confusão, nas Canárias a Euphorbia canariensis é conhecida como cardón, nome que na América Latina se dá também a várias espécies de grandes cactos como o Pachycereus pringlei e o Stenocereus stellatus. Os matos xerófilos em que a Euphorbia canariensis é preponderante chamam-se cardonales, e funcionam como o contraponto espinhento dos tabaibales, onde quem manda é a Euphorbia balsamifera, uma espécie arbustiva inerme. Quando as duas eufórbias convivem, o que até é frequente, estamos em presença de um cardonal-tabaibal.

O cardón, ou Euphorbia canariensis, tinha tudo para ser o símbolo vegetal das Canárias: exibe uma forma atraente e inconfundível, é endémico do arquipélago, e é suficientemente abundante para ser visto e admirado por todos quantos visitam essas ilhas. Por um capricho qualquer, está ausente de Lanzarote enquanto planta espontânea (embora apareça cultivado em jardins), e o facto de não fazer o pleno das ilhas terá inviabilizado a sua candidatura a esse posto honorífico. Quem ocupou o posto, por decreto-lei do Governo das Canárias datado de 1991, foi a palmeira Phoenix canariensis. Para o cardón sobrou um prémio de consolação: o decreto que oficializou os símbolos do arquipélago fez o mesmo para cada uma das ilhas, e a Euphorbia canariensis ficou a ser o símbolo vegetal da Grã-Canária. (As nossas fotos, contudo, foram tiradas no Puertito del Sauzal, na costa norte de Tenerife.)

21/12/2019

Genciana de meio palmo



Durante as duas ondas de calor que no fim da Primavera atingiram o centro de Espanha, a serra de Gredos penou de aridez. Com algumas excepções, os prados tipicamente verdes e floridos nas montanhas lembravam pastos de palha seca. A juntar a este cenário desolador, as margens dos riachos mais promissores estavam completamente pisoteadas pelo gado que, sequioso, derrubou cercas e foi beber onde ainda havia alguma água. A vegetação, com uma sabedoria não surpreendente, tratou de despachar a floração, e no incício de Agosto eram poucas as turfeiras com algo que merecesse uma visita. Foi preciso subir mais, até às gigantescas pistas de esqui a mais de 2000 metros de altura, desactivadas no Verão, para encontrar o que procurávamos.


Gentiana boryi Boiss.


Tal como as gencianas que ocorrem em Portugal (G. pneumonanthes, com mais populações no norte do país, e G. lutea, na serra da Estrela), esta espécie aprecia cervunais frescos de alta montanha, permanentemente húmidos e com solo ácido e rico. Por depender de um habitat ameaçado e ter uma distribuição restrita, está incluída, com o estatuto de vulnerável, na lista vermelha da flora de Espanha. De caules prostrados, não ultrapassa em geral os 10 cm de altura, mas forma, entre Julho e Setembro, vastos tapetes de flores minúsculas (a corola plissada tem pouco mais do que 1 cm de diâmetro) que nascem frequentemente aos pares, com um lindo tom de azul a contrastar com um atraente centro amarelo pintalgado.

Esta genciana é um endemismo espanhol cuja presença está registada na serra Nevada, na serra de Gredos e na Cantábria. O seu nome é mais uma homenagem ao naturalista francês Jean Baptiste Bory de Saint-Vincent (1778-1846).

12/12/2019

Um rio de verdade



O Verão é uma época difícil para quem gosta de rios, sobretudo quando a estiagem os reduz a uma sucessão de piscinas estagnadas. Perspectiva diferente terão aqueles que os procuram como local de diversão e de banhos mais ou menos refrescantes: dão o dia por bem passado se não lhes faltar sombra de árvores e ainda tiverem água para chapinhar. Apesar de não termos o hábito de mergulhar, preferimos rios vivos e com fartura de água; quando o caudal emagrece vamos à nossa vida e aguardamos tempos melhores.

Travámos conhecimento com o rio Mente num mês de Julho de há quatro anos, caminhando ao longo do troço que separa os concelhos de Chaves e de Vinhais. Cruzámo-lo a pé sem que a água nos subisse acima dos tornozelos, aproveitando, numa atitude de desrespeito, a fraqueza hídrica de que o rio então padecia. Do lado de Chaves a vegetação tinha sido desbastada para produzir uma praia fluvial ao gosto popular. Um avô com quem metemos conversa lamentou que do lado de Vinhais, com mato e ervas crescendo ao Deus dará, não se notasse igual brio.

Voltámos meia dúzia de vezes para conhecer o rio em épocas de maior pujança, preferindo sempre o abandono de Vinhais ao zelo flaviense. Há carreiros nas margens que são túneis entre as árvores, com acesso aqui e ali a pontos onde os ocasionais pescadores armam as suas canas de pesca. Não conhecemos em todo o país vegetação ribeirinha mais bem conservada. Ao cortejo das árvores habituais (amieiros, freixos, salgueiros, sanguinhos, cerejeiras, pilriteiros) juntam-se trepadeiras (Humulus lupulus, Clematis vitalba), fetos pequenos e grandes, e uma profusão de herbáceas raras (Agrimonia procera, Circaea lutetiana, Filipendula ulmaria, Glechoma hederacea, Potentilla sterilis, Thalictrum speciosissimum, etc.) em que a raridade maior é uma umbelífera de porte avantajado, amante da frescura e da sombra.



Pimpinella major (L.) Huds.


Distribuída por quase toda a Europa, só em 2006 a Pimpinella major fez a sua entrada oficial na flora portuguesa, com a publicação, na revista Silva Lusitana, de uma nota por Carlos Aguiar e João Domingues de Almeida dando conta da descoberta da planta no Parque Natural de Montesinho, nas margens do rio Tuela. Sem surpresa, ela acabou por ser encontrada noutros lugares, e em todo o caso já era conhecida a sua (escassa) presença no sudeste da Galiza, não longe da fronteira portuguesa. É de assinalar, porém, que o rio Mente é afluente do Rabaçal, e que este só às portas de Mirandela se junta ao Tuela para formar o Tua. É pois de supor que as populações de Pimpinella major do Mente e do Tuela tenham origens independentes, ainda que ambas se situem no Parque de Montesinho.

Se atendermos à ecologia, a planta é fácil de identificar pelas folhas pinatissectas de grande tamanho, às vezes ultrapassando os 40 cm de comprimento, cada uma delas com 5 a 9 segmentos mais ou menos rômbicos, e pelos caules fistulosos e claramente estriados. As demais umbelíferas de flores brancas e tamanho respeitável que vivem em bosques húmidos ou em margens de rios (exemplos: Angelica sylvestis, Heracleum sphondylium, Oenanthe crocata e Laserpitium eliasii) têm folhas bem diferentes, em geral (a excepção é o Heracleum sphondylium) com um número muito maior de divisões.

04/12/2019

Passarinhos em voo rasante


Kickxia sagittata (Poir.) Rothm.



O costume de dar nomes de bichos a plantas levou a que nas Canárias se chamasse bico-de-passarinho (picopajarito) à Kickxia sagittata, herbácea de porte rastejante que é endémica das quatro ilhas mais orientais do arquipélago (Lanzarote, Fuerteventura, Grã-Canária e Tenerife). Em vez disso, e sem sair do âmbito da fauna alada, preferimos imaginar que estas flores de um amarelo intenso, dispostas em fiadas, são bandos de canários empoleirados em cabos aéreos antes de se lançarem em voo. A analogia passeriforme é também usada nas plantas do género Linaria, aparentado com Kickxia. Serve de exemplo a Linaria triornithophora, em que o epíteto do nome científico nos informa que a planta dá três pássaros, por serem três as flores que compõem cada inflorescência.

As plantas do género Kickxia, todas com o mesmo figurino básico, apresentam hastes alongadas onde as flores de pedúnculo fino e muito comprido vão surgindo entremeadas com as folhas. Face às espécies peninsulares, a Kickxia sagittata distingue-se por ser uma planta de caules e folhas glabras, por atingir dimensões consideráveis (vários metros de extensão, comportando-se às vezes como trepadeira), e por ter flores bem maiores (3 a 4 cm de comprimento, contra 1 a 2 cm das da K. elatine). As mesmas características, e a mesma cor amarela das flores, são partilhadas pelas restantes duas ou três espécies de Kickxia endémicas das Canárias, devendo-se a incerteza no número à divergência de opiniões sobre a delimitação das espécies. Da Kickxia sagittata, por ser muito polimorfa, foram descritas pelo menos duas variedades que alguns autores tratam como espécies autónomas. As plantas nas fotos pertencem à variedade nominal, com folhas caulinares estreitas e amiúde sagitadas, havendo contudo plantas da mesma variedade com folhas muito mais largas. Em Lanzarote, e talvez endémica dessa ilha, existe a variedade subsucculenta, de porte compacto e folhas carnudas não sagitadas (veja-se a 2.ª foto nesta página).

Florindo entre Dezembro e Abril, a Kickxia sagittata é fácil de encontrar nas zonas costeiras de Lanzarote, tanto em areias como na rocha ou em outros substratos secos, às vezes misturando-se com a vegetação arbustiva dominada pela tabaiba-doce (Euphorbia balsamifera).

29/11/2019

Festival de mini-suculentas

Crê-se, com algum fundamento, que as espécies que ocorrem nas ilhas Canárias descendem de plantas de regiões mais antigas, no continente europeu ou africano. Uma vez nas ilhas, a adaptação induziu mudanças que geraram versões autónomas, hoje endemismos com uma ténue lembrança dos seus progenitores. Ainda que pareça ser evento raro, estas espécies podem re-colonizar o continente, fazendo a viagem inversa da dos seus antepassados. Alguns estudos sugerem precisamente esse retorno relativamente ao género Monanthes, com centro de dispersão em Tenerife.


Monanthes polyphylla Haw.



As plantas deste género, suculentas que não suportam o frio, terão tido origem em regiões tropicais. Mas a maioria das cerca de dez espécies conhecidas de Monanthes está nas ilhas Canárias, ocorrendo uma nas Selvagens (M. lowei). Ou seja, de momento estão essencialmente desaparecidas no continente, sobrevivendo nas ilhas enquanto não arriscam a travessia de volta. Bem, não é exactamente assim. Tal como os cactos, não requerem cuidados de manutenção, exigindo apenas solo magro e pouca água, num ambiente quente mas sem calor excessivo. Por isso são muito apreciadas em jardinagem — um uso que pode revelar-se um método eficaz (ainda que artificial) de dispersão.


Monanthes brachycaulos (Webb) Lowe


O que se nota de imediato ao ver estas plantas é a roseta mais ou menos densa de folhas carnudas, glaucas, rosadas ou verdes, de caule curto, garantindo assim mais estabilidade quando se agarram aos taludes a pique. Na época certa (entre Maio e Junho) tem-se também a sorte de apreciar as flores estreladas, com cerca de 9 milímetros de diâmetro e pé alto penugento sobressaindo da almofadinha de folhas. Repare nas fotos como as flores têm 6 a 9 pétalas fininhas, com os estames a embelezar o arranjo que lembra pequeninos guarda-chuvas de joalharia.



Monanthes laxiflora (DC.) Bolle


A M. laxiflora pode ver-se em todo o arquipélago das Canárias, com excepção para já de El Hierro; a M. brachycaulos ocorre na Gran Canaria e em Tenerife; da M. pollyphylla, que aos nossos olhos é a mais bonita das três, há registo em Tenerife, Gran Canaria, La Palma e La Gomera.

20/11/2019

Segredos do poço da Alagoinha



O ponto mais elevado da ilha das Flores, apropriadamente chamado Morro Alto, fica-se por uns escassos 911 metros de altitude. Quem a ele ascende, porém, vê-se rodeado, mesmo no Verão, por um nevoeiro frio e cortante, quase sempre reforçado por vento e chuva. Apesar do fácil acesso por um estradão de terra, a vista que poderia atrair excursões de mirones ávidos de fotografar raramente se deixa ver. Esse nevoeiro persistente, que nos encharca a roupa mesmo quando parece que não chove, alimenta a grande esponja que é a zona central da ilha. O material que absorve e armazena a água é o Sphagnum, popularmente chamado musgão, capaz de formar almofadas gigantes que nesta ilha cobrem por completo grandes extensões de terreno. Na prática, o musgão funciona como substituto do solo, já que as demais plantas, desde o cedro-do-mato às pequenas herbáceas, são obrigadas a crescer sobre ele.

Por grande que seja a capacidade de armazenamento que a natureza fez instalar na ilha, o excesso de água tem que ser continuamente libertado, e daí as muitas ribeiras que fazem um curto mas tumultuoso trajecto desde os cumes até ao mar. Seria esse o destino dos caudais que, atirando-se de um precipício de 250 metros, formam o poço da Alagoinha, também conhecido como lagoa dos Patos. Mas a geografia trocou-lhes os planos, e antes de se acolherem ao mar, estas águas, obrigadas a um compasso de espera, juntam-se numa lagoa que é uma das imagens mais fortes da ilha.

Partindo da estrada da Fajã Grande, chega-se ao poço da Alagoinha por um caminho íngreme e escorregadio, de uns 600 metros de extensão, por entre arvoredo cerrado. Não é subida que exija grande esforço, mas por cautela deve usar-se calçado imperméavel e com boa aderência. Muitos dos visitantes que percorrem esta vereda imaginam-se envolvidos pela mais pura natureza, pouco ou nada modificada pela acção humana. Que vantagem haveria em desenganá-los? Em explicar-lhes que as criptomérias foram plantadas, que incensos e conteiras são invasores temíveis, e que da vegetação original da ilha restam neste lugar apenas fetos e algumas herbáceas? Em revelar-lhes que o anfiteatro verde rasgado por cascatas é afinal um paraíso falsificado?



Potamogeton pusillus L.


A água da lagoa dos Patos, permanentemente renovada e sem focos de poluição que a afectem, é por certo de óptima qualidade, mas as margens paludosas desaconselham os banhos. (O mesmo sucede em quase todas as lagoas da ilha das Flores; a única excepção é o poço do Bacalhau, na Fajã Grande, onde é seguro mergulhar na piscina que a cascata escavou na rocha.) Além do cenário portentoso, outros motivos há, até botânicos, para visitar este lugar. Aqui se refugia o Potamogeton pusillus, planta aquática que, numa ilha com tanta água, só existe em três ou quatro pontos, estando ausente das lagoas de maior altitude. Por não gostar de águas profundas, a planta (um emaranhado submerso de caules longos e finos, com folhas compridas e lineares, de veios centrais bem marcados) tende a concentrar-se nas margens, o que é um alívio para o observador-fotógrafo. Como é tipico do género Potamogeton, as flores estão agrupados em cachos na extremidade de hastes emersas. Fazendo jus ao epíteto pusillus, os cachos florais desta espécie são minúsculos, com 3 a 7 mm de comprimento e 3 a 5 mm de espessura, e exigem ser observados de perto. A floração, pelo menos nos Açores, parece ser estival, com o auge ocorrendo no mês de Julho. À semelhança de outras espécies aquáticas, a planta goza de uma distribuição muito ampla, ocorrendo em quase todo o hemisfério norte: Europa, Ásia, norte de África, América do Norte e América Central.

Por regra uma planta perene, o Potamogeton pusillus pode adoptar um ciclo de vida anual, o que lhe permite sobreviver em valas e charcos temporários. Assim se explica que, por contraponto à sua presença na mais pluviosa das ilhas açorianas, se tenha também instalado na Graciosa, que é a mais seca de todas. Mais normal é ter sido assinalada em São Jorge, São Miguel e Santa Maria: ao contrário do que se possa pensar, Santa Maria tem bastante água, e até conta com um número apreciável de ribeiras permanentes (coisa que não existe no Pico e no Faial, por exemplo). É indubitável que se trata de uma espécie muito rara nos Açores, embora, dada as dificuldades de prospecção, não seja de excluir que ocorra noutras ilhas além das cinco mencionadas.

15/11/2019

No bosque dos venenos em flor

É preciso o medo acumulado de muitas gerações para que uma espécie converta o medo em ira e crie, na sua evolução, um mecanismo que não apenas dissuada os predadores e eventuais inimigos, mas de facto os mate à primeira investida. Algumas espécies muito venenosas têm o cuidado de se pintar de cores garridas para avisar inocentes distraídos, ou potenciais polinizadores, mas nem todas usam dessa cautela na decoração. A Atropa belladonna, a que alguns chamam erva-moura-furiosa, é uma dessas herbáceas que não parecem fazer mal a uma mosca. Mas o seu efeito letal funciona algumas vezes precisamente por causa desse logro: as flores têm uma corola larga a lembrar uma campânula, com uma linda pigmentação axadrezada nas pétalas, e cinco estames longos mas recurvados para dentro; as bagas maduras, com cerca de 1.5 cm de diâmetro, são pretas, lustrosas, apetitosas e, dizem, doces; mas a ingestão de um bocadinho minúsculo da folhagem ou das bagas já matou reis, imperadores e gente incómoda para quem tem (ou quer passar a ter) o poder. E a reputação da belladonna nunca mais foi a mesma.


Atropa belladona L.


O nome Atropa, sugestão de Lineu, refere-se a Atropos, uma das três parcas da mitologia grega responsáveis pelo destino de cada um de nós. O fado era personificado por um fio bem fiado e medido; a Atropos cabia cortá-lo, interrompendo a vida do modo que lhe aprouvesse. O epíteto belladonna (proposto por Tournefort) conta uma história menos sombria: parte da planta era usada na Idade Média como tónico de cosmética, para ruborizar as faces e acentuar traços das belas damas de outrora.

Da família Solanaceae (a mesma das plantas que nos dão tomates, batatas, pimentos, beringelas, fisális ou tabaco), a A. belladonna é perene e nativa de regiões com clima ameno na Europa, Ásia e norte de África. É uma espécie que aprecia bosques, preferindo locais húmidos e sombrios. E foi num bosque notável do vale de Pineta, nos Pirenéus aragoneses, que a vimos. Esse é um tipo de habitat que escasseia em Portugal, e não é certa a ocorrência espontânea da A. belladona por cá.

06/11/2019

Serralha marroquina



Sonchus pinnatifidus Cav.


O limite ocidental da cordilheira do Anti-Atlas (ou Pequeno Atlas), no sudoeste de Marrocos, apresenta uma paisagem e uma vegetação que, a julgar por fotos, lembram irresistivelmente as das vizinhas ilhas Canárias. São os mesmos picos áridos e acidentados, de cores quentes, com a mesma vegetação rala dominada por arbustos rasteiros. Essa região costeira, com vales muito cavados, propícios a servirem de refúgio a um grande número de espécies vegetais, terá sido, noutras eras geológicas, o mais importante berçário da flora canária, fornecendo a maioria das plantas que iriam depois diversificar-se num número assombroso de endemismos. As afinidades observadas levaram alguns botânicos a propor a inclusão dessa região marroquina no conceito bio-geográfico de Macaronésia (cuja realidade é aliás algo dúbia, por abarcar quatro arquipélagos — Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde — com coberturas vegetais muito díspares). As convulsões climáticas do período Quaternário afectaram contudo de modo muito mais sério as massas continentais do que as ilhas atlânticas, e as duas floras, pese embora a semelhança das paisagens, reflectem uma acentuada divergência. De acordo com um artigo de 1999 dos botânicos franceses Frédéric Médail e Pierre Quézel (The Phytogeographical Significance of S.W. Morocco Compared to the Canary Islands), das cerca de 1400 espécies ou subespécies registadas no sudoeste de Marrocos menos de 3% são comuns às Canárias. Além disso, a flora das Canárias, ao contrário da de Marrocos, tem um grau muito elevado de endemicidade: de acordo com o mesmo artigo, cerca de 39% das espécies canarinas são exclusivas do arquipélago, enquanto que em Marrocos a percentagem de endémicas ronda os 9%.

A Astydamia latifolia, a Polycarpea nivea e o Sonchus pinnatifidus são alguns dos vinte e poucos endemismos partilhados por Marrocos e Canárias. Ao Sonchus pinnatifidus, hoje no escaparate, que nas Canárias apenas existe nas ilhas de Lanzarote e Fuerteventura, não será despropositado chamar serralha-marroquina. Não é fácil saber em qual das duas regiões tiveram origem estes endemismos partilhados. As colonizações podem funcionar nos dois sentidos, e uma espécie que tenha evoluído nas ilhas atlânticas, descendente de um remoto antepassado continental, pode muito bem fazer a viagem oposta e estabelecer-se no continente. É provável que tenha sido isso mesmo que sucedeu com a serralha-marroquina, representante de uma estirpe do género Sonchus, caracterizada por caules lenhosos (subgénero Dendrosonchus), que, tirando esta tímida incursão no continente africano, é exclusiva das Canárias e da Madeira.

Face a outras serralhas lenhosas como o Sonchus fruticosus da laurissilva madeirense, o S. pinnatifidus impressiona pouco, raras vezes ultrapassando um metro de altura. O porte mais atarracado reflecte a adaptação a um habitat soalheiro, árido e ventoso, onde as plantas, muito mais do que competirem entre si (como seria regra no ambiente luxuriante mas sombrio da laurissilva), tiveram de inventar mecanismos de sobrevivência. Único da sua estirpe nas duas ilhas mais orientais do arquipélago, e frequente (às vezes abundante) na metade norte de Lanzarote, o Sonchus pinnatifidus é um verdadeiro caso de sucesso adaptativo.