29/07/2014

O regresso da orquídea fragrante

Há uns anos, os dados oficiais indicavam que a orquídea Gymnadenia conopsea estava extinta em Portugal. Foi essa a categoria que lhe atribuiu o Plano de Ordenamento do Parque Nacional da Peneda-Gerês de 1995. E, em 2003, Amaral Franco, na Nova Flora de Portugal, regista-a apenas no Borrageiro e em tão pequeno número que a considera quase extinta. Para esta avaliação decerto contribuiu o facto de o Verão ser impiedoso na serra do Gerês, de esta orquídea florescer no fim de Junho e de o seu habitat natural se situar nas zonas mais altas e remotas da montanha, de acesso difícil mesmo para os técnicos do Instituto da Conservação da Natureza e para os vigilantes do Parque.


Gerês: Borrageiro e Fichinhas
A boa notícia é que a extinção desta orquídea foi apenas burocrática, e aliás o lapso já foi corrigido no actual plano de ordenamento do PNPG. Em 2009, Ana Júlia Pereira e Miguel Porto encontraram-na num prado a cerca de 1200 metros de altitude; e, desde então, alguns membros da AOSP descobriram mais cinco núcleos, vários com dezenas de plantas em flor. Mantém, porém, o seu estatuto de orquídea rara, refugiada em urzais montanhosos a mais de vinte quilómetros da vila do Gerês, a justificar plenamente um programa de conservação em que os pastores aceitem colaborar. Tais medidas de protecção beneficiariam também outras preciosidades que a serra guarda, e o atraso em implementá-las deveria ser punido como negligência grave. Sendo uma planta de prados, a Gymnadenia requer uma gestão eficiente do desbaste natural das herbáceas rasteiras de altitude que o gado efectua: se for desmazelado, os matos invadem os pastos e sufocam as orquídeas; se exagerado, ou feito na época da floração das orquídeas, elas desaparecem. A juntar a esta ameaça, há ainda as queimadas mal vigiadas, o abandono do uso tradicional dos lameiros, o pisoteio que o pastoreio intensivo provoca em habitats frágeis, o impacto na composição dos solos que a presença maciça de gado comporta, e (talvez em menor grau) a colheita ilegal de plantas.


Gymnadenia conopsea (L.) R. Br.


Guiados por quem conhece bem a serra e as orquídeas, avistámos no início de Julho três populações desta planta. É fácil de reconhecer: exibe inflorescências cilíndricas elegantes, flores magenta muito aromáticas com esporões de cor púrpura, longos, finos e tão transparentes que (pelo menos na flor albina da foto) conseguimos ver o néctar que contêm. Reparámos que havia um número maior de plantas nos solos mais húmidos ou perto de córregos, frequentemente rodeadas de Narthecium ossifragum e Dactylorhiza maculata. Curiosamente, os dois géneros de orquídea Gymnadenia e Dactylorhiza podem hibridar, e a última foto mostra um dos vários híbridos que vimos neste passeio.


Dactylorhiza maculata, Gymnadenia conopsea e um híbrido das duas
Como sabemos que é um híbrido? Porque parece uma Dactylorhiza, pela pigmentação no labelo, o esporão curto e o arranjo denso das flores, mas estas têm as sépalas laterais largas, estendidas e quase horizontais, tal como as da Gymandenia, e rescendem a baunilha, sendo a Dactylorhiza praticamente inodora.

26/07/2014

Breve tratado das fajãs



São Jorge: Fajã da Penedia (em baixo, ermida de Santa Filomena; as flores brancas em 1.º plano são de Silene uniflora)
Em vez de descerem suavemente para o mar, as ilhas dos Açores são cortadas a pique, como se fossem fatias de um bolo que já foi muito maior mas entretanto o Atlântico mordiscou. As falésias quase verticais desprendem-se de tempos a tempos, e os detritos que assim se acumulam na costa vão juntar-se às lavas e escórias vulcânicas que as ilhas foram cuspindo ao longo dos milénios. Assim se formam as fajãs, pequenas bolsas de terra plana e fértil encravadas entre o mar e as encostas vertiginosas, e de que São Jorge, muito mais do que as restantes ilhas do arquipélago, está copiosamente fornecida. Ainda que decorra a uma escala temporal que nos ultrapassa, este processo de formação de fajãs nunca está concluído. Em Outubro de 2012, uma derrocada no Corvo provocou o surgimento de uma fajã embrionária, que se persistir obrigará a alterar os mapas da ilha. E, quando visitámos São Jorge, em Junho passado, não pudemos descer À Fajã da Ribeira da Areia porque um deslizamento de terras tinha cortado a estrada durante a noite. O acerto com que o acaso escolheu a hora poupou vítimas humanas, pois ninguém mora nas fajãs nem a elas desce durante a noite, enquanto que de dia há sempre alguém a amanhar um campo ou a colher couves no quintal.

Na costa norte de São Jorge há talvez duas dezenas de fajãs com campos cultivados; dessas, cerca de metade têm casas de habitação, mas só em três delas (Fajã do Ouvidor, Fajã dos Cubres e Fajã de Santo Cristo) parece viver gente. A razão do fenómeno não está tanto na dificuldade dos acessos, embora à Fajã de Santo Cristo, a mais famosa da ilha, não seja possível chegar de automóvel. Explicação mais plausível talvez seja a oposta: uma vez que com uma robusta carrinha de caixa aberta os donos das fajãs se põem lá em baixo em três tempos, é com igual facilidade que fazem o caminho inverso uma vez cumpridas as tarefas do dia; não precisam de pernoitar numa aldeia fantasma que, apesar de arrumadinha, não terá as comodidades (electricidade, etc.) a que a civilização nos habituou.


São Jorge: Fajã da Caldeira de Santo Cristo
Na Fajã de Santo Cristo, ligada à Fajã dos Cubres por um caminho de terra batida pelo qual pode passar uma moto-quatro mas não um veículo mais volumoso, há um restaurante que só abre no Verão ou quando os astros se conjugam em alinhamento favorável. O mesmo estabelecimento promete excursões de barco às fajãs inacessíveis por terra, programa aliciante para quem, como nós, gostaria de ser como as gaivotas para ver que plantas se escondem nos recantos onde só chegam as aves. E assim ficou apalavrado que num dos nossos dias em São Jorge nos faríamos ao mar numa lancha, não sem antes enfardarmos um almoço de peixe, marisco e queijo da ilha. Dia de chuva mansa, mais refrescante do que incómoda, lá nos metemos a caminho, mas por prudência, faltando 2 ou 3 Km para a meta, telefonámos ao restaurante para saber se o programa se mantinha. Pois que não: nem passeio de barco às fajãs secretas, nem almoço, nem nada. Sem farnel e sem alternativa, avançámos o suficiente para saudar de longe a Caldeira de Santo Cristo, e toca de inverter a marcha. Coitados, que perda de tempo, há gente que não tem palavra — dirá o leitor num assomo de solidariedade. Agredecendo a simpatia, permitimo-nos discordar da perda de tempo. Posto que adulterada pela invasão do incenso (Pittosporum undulatum), a vegetação deste pedaço de costa apresenta-se ainda em estado razoável, com a Myrica faya e a Erica azorica a escoltarem-nos durante boa parte do trajecto, acompanhadas aqui e ali por Pericallis malvifolia, Scabiosa nitens, Lysimachia azorica e até (num único local) pela raríssima Tolpis succulenta. Como ingrediente inesperado, encontrámos um feto que nunca tínhamos visto, com frondes erectas de uns 20 cm de altura, textura rugosa e margens aculeadas. Sendo obviamente exótico, tinha indisfarçáveis semelhanças com o vulgar feto-pente (Blechnum spicant).


Doodia caudata (Cav.) R. Br.
Consultada a bibliografia, depressa lhe desvendámos a identidade: trata-se da Doodia caudata, um feto australiano da família Blechnaceae que no seu país de origem é conhecido como small raspfern — havendo por lá, além deste, outros e maiores raspferns, todos eles ásperos ao tacto e pertencentes ao género Doodia, que inclui umas 15 a 20 espécies distribuídas pela Austrália, Nova Zelândia e sudeste da Ásia. O nome Doodia refere-se a Samuel Doody (1656-1706), boticário londrino que se interessou particularmente por pteridófitas e foi, a partir de 1693 e até à sua morte, responsável pelo Chelsea Physic Garden. Já o epíteto caudata tem como explicação evidente a longa cauda com que as folhas do feto são rematadas.

Não menos do que Portugal continental, as ilhas atlânticas já suportam uma dose mortífera de invasoras vegetais australianas, e por isso a ocorrência de mais uma espécie exótica com essa origem não é motivo para festejos. Acontece, contudo, que a Doodia caudata está assinalada nos Açores desde os anos 50 do séc. XX, e tem-se mantido bastante rara no arquipélago. Em São Jorge vimo-la apenas em dois pequeníssimos núcleos. Talvez ela — que, devemos admitir, até é bonita — não tenha a índole agressiva que é indispensável para uma invasão bem sucedida.

22/07/2014

Queiró insular


Daboecia azorica Tutin & Warb.



A distribuição do género Daboecia, que alberga apenas duas espécies, subordina-se à exigência de uma elevada acidez do solo, mas ainda assim é curiosa: estas plantas são espontâneas apenas no sudoeste de França, norte de Espanha, noroeste de Portugal, ponta sudoeste da Irlanda, e Açores. A espécie das ilhas açorianas dá flores mais pequenas, com corolas glabras, mas igualmente caducas, num tom de carmim quase púrpura, que se dispõem em cachos de 3 a 7 flores e se detectam facilmente em matos ralos no fim da Primavera (a D. cantabrica floresce mais tarde, de Junho a Outubro). Há registos da presença deste queiró em quatro das nove ilhas, mas parece ser frequente apenas no Faial e na montanha do Pico. Tal como a versão europeia, de que por certo descende, é um arbusto baixo, perene, de base lenhosa e caules decumbentes; as duas apreciam urzais (embora nos Açores a urze em causa seja a endémica Erica azorica), mas a açoriana adaptou-se à intensa humidade atmosférica das ilhas e aparece também em encostas vulcânicas cascalhentas (geralmente acima dos 500 metros).

Há mais diferenças que justifiquem a independência da D. azorica como espécie? Os descritores desta planta, os britânicos Thomas Gaskell Tutin (1908-1987) e Edmund Frederic Warburg (1908-1966), co-autores da Flora of the British Isles e da Flora Europaea, assim o entenderam depois de uma visita de exploração botânica às ilhas do Faial e do Pico em 1929. Anunciaram a descoberta três anos depois, no Journal of Botany, British and Foreign. Publicaram dois artigos com o que viram nos Açores, e tempos depois receberam mais financiamento para novas expedições, algumas delas notáveis pelo contributo que trouxeram à salvaguarda da biodiversidade no mundo.

O estudo da flora açoriana, desde o século XIX até meados do século XX, deve-se sobretudo a cientistas estrangeiros. Na verdade, naquela época não havia universidade ou centros de investigação nos Açores, e no continente os botânicos (os que não andavam entretidos nas colónias) cuidavam de recuperar o atraso na descrição da flora local, para logo depois se começarem a preocupar com a dimensão das ameaças à natureza e com a necessidade de medidas de protecção. Além disso, desde a época dos descobrimentos que o apoio à pesquisa científica, sobretudo àquela que exige demorados trabalhos de campo, tecnologia avançada e redes alargadas de cooperação, tem o tamanho da pobreza do país. Que continua a ignorar para que serve a investigação em ciências naturais, ou não quer dar-lhe uso porque são outros os interesses que nos governam. É decerto por isso que ainda hoje são os cientistas estrangeiros que nos avaliam, que decidem qual o conhecimento que o país deve incentivar, que ditam o futuro da nossa ciência e, portanto, do nosso território.

19/07/2014

Ruiva das ilhas



Rubia agostinhoi Dans. & P. Silva


A ruiva-brava, ou Rubia peregrina de seu nome científico, é uma das plantas da flora portuguesa que se encontra amiúde de norte a sul do país, em lugares onde ainda subsiste alguma vegetação natural. Outra é a gilbardeira (Ruscus aculeatus), misteriosamente protegida por lei apesar da sua óbvia abundância. Que do Minho ao Algarve haja traços constantes é uma evidência da pequenez do nosso território e só pode reforçar a ideia da unidade nacional. Voltando à ruiva-brava, que é esse o nosso assunto, trata-se de uma trepadeira algo lenhosa na base, muito ramificada, reconhecível pelos seus verticilos de quatro a oito folhas por nó e pelos cachos de bagas pretas. Ainda que a ruiva-brava não tenha usos tradicionais, uma das suas congéneres, a asiática Rubia tinctoria, a que poderíamos chamar ruiva-mansa, foi amplamente cultivada na Europa pelo corante vermelho extraído das raízes.

Se do continente saltarmos para os arquipélagos atlânticos da Madeira e dos Açores, continuamos a ver a ruiva, embora, olhando bem (fotos acima), a planta tenha feito alguns ajustes na sua indumentária: os saiotes dos nós são agora formados por folhas mais estreitas e numerosas (em geral 8, mas podem ir de 6 a 10), e as flores são mais diminutas e escassas, em cachos mais discretos. Esta ruiva-das-ilhas, que porém também existe no sul de Espanha (Cádiz e Málaga) e em Marrocos, é assaz distintiva para merecer dos taxonomistas a graça de um nome só seu. Justiça feita em 1973, quando o português Pinto da Silva e o francês P. M. Dansereau publicaram na Agronomia Lusitana a descrição da nova espécie, a que chamaram Rubia agostinhoi. Não sendo talvez tão comum nos Açores como a sua congénere é no continente, a ruiva-das-ilhas encontra-se com alguma facilidade, ocupando habitats variados desde florestas e matos naturais até muros e plantações de criptomérias. Contudo, nunca lhe vimos os frutos, ou porque eles são poucos, ou porque os pássaros os comem todos, ou porque o nosso calendário de visitas ao arquipélago não o permitiu.

Pinto da Silva e Dansereau descreveram a Rubia agostinhoi a partir de exemplares colhidos em São Miguel, na lagoa das Sete Cidades, e o epíteto escolhido sublinha a ligação aos Açores, prestando homenagem ao tenente-coronel José Agostinho (1888–1978). Nascido em Angra do Heroísmo, onde também morreu, José Agostinho combateu na 1.ª guerra mundial como militar de carreira, mas regressou aos Açores (a São Miguel) em 1918 para trabalhar nos serviços metereológicos locais, que dirigiu durante mais de 30 anos, até se aposentar em 1958. Distinguiu-se como cientista na sua área de especialidade, mas também se interessou por múltiplos outros temas, como a sismologia, o estudo das aves, a conservação da natureza, a história e a etnologia. Foi um naturalista versátil e, em vocação exercida ao longo de vinte anos de palestras radiofónicas na Rádio Clube de Angra, um pedagogo que muito teria honrado a universidade açoriana se ela tivesse existido à época em que esteve activo.

15/07/2014

Ponta das labaças


Rumex azoricus Rech. f.


Popularmente conhecidas como azedas, vinagreiras ou labaças, as plantas do género Rumex compensam o seu défice de formosura com uma abnegada dedicação ao bem-estar humano. Assim, as folhas comestíveis acrescentam um travo ácido às saladas, e podem ser usadas como purgativo; se aplicadas externamente, são úteis contra queimaduras e picadas de urtiga; e, à falta de melhor, servem até para embrulhar manteiga. Já quanto à formosura, é mais avisado não sermos tão taxativos ao atribuir-lhes nota negativa. O que estas plantas não possuem é flores chamativas, pois o vento, único polinizador de cujas boas graças dependem, não precisa de engodos ou cantos de sereia para se apresentar ao serviço. Contudo, o R. bucephalophorus, uma espécie de pequeno porte, prova que a união também faz a beleza ao formar, nos areais, vistosos aglomerados com as cores da bandeira nacional. E do mesmo princípio da beleza das multidões se servem espécies de maior envergadura para construir inflorescências vistosas, agrupando milhares de flores que, individualmente, são insignificantes. É o caso deste gigantesco R. azoricus, cujas inflorescências parecem nuvens douradas.

Talvez seja bom quantificar o adjectivo gigantesco quando aplicado a esta labaça-das-ilhas, sabendo-se que labaça, de um modo geral, é nome reservado aos Rumex de tamanho respeitável dotados de uma haste principal bem definida (contrastando, por exemplo, com o R. induratus, vulgarmente conhecido como azedão, que forma uma moita muito confusa). O R. azoricus ultrapassa facilmente os 1,5 m de altura, no que se compara a algumas espécies continentais, mas singulariza-se pelas folhas que podem medir um metro de comprimento, com pecíolos longos e grossos, e pela espaventosa inflorescência, pontuada por longas brácteas que, distribuídas de modo tão irregular (ver foto 2), parecem facas lançadas de longe por artista pouco habilidoso.

A labaça-das-ilhas não é a labaça que mais facilmente se encontra nos Açores: muito mais comuns do que o R. azoricus em campos e bermas de estradas são espécies ruderais como o R. obtusifolius e o R. crispus. E é a essas mesmas labaças sem eira nem beira que o leitor açoriano deverá deitar a mão se quiser experimentar-lhes os usos culinários ou medicinais. Não porque a labaça-das-ilhas seja desprovida de tais qualidades (talvez seja, não sabemos), mas porque é planta rara, um dos endemismos do arquipélago que mais carecem de protecção. Tem uma distribuição de todo peculiar: ocorre em São Miguel, mas não em Santa Maria; existe em São Jorge, Terceira e Faial, mas não nas restantes ilhas do grupo central; e, tendo-se instalado no Corvo, recusou a vizinha (e bem mais ampla) ilha das Flores. Não há nada nas suas preferências de habitat (caldeiras, margens de cursos de água, prados naturais) que explique tais caprichos, pois o Pico e as Flores, duas das ilhas onde ela não quis morar, albergam das mais bem conservadas áreas naturais dos Açores.


São Jorge: farol da Ponta dos Rosais
A acreditar no testemunho de terceiros e nas nossas próprias observações, é provável que as melhores populações da labaça-das-ilhas se encontrem em São Jorge. Lá, ela dá provas de uma versatilidade ecológica que lhe falta nas outras ilhas: aparece junto ao leito de ribeiras sazonais nas vertentes debruçadas sobre as fajãs; sobe aos cumes da ilha para ver passar o nevoeiro; e, desejando talvez completar a sempre malograda travessia para o Pico, ou simplesmente observar baleias, desce até ao extremo ocidental da ilha, à Ponta dos Rosais, de onde a ilha em frente é tão sedutoramente visível.

12/07/2014

A borboleta de Hochstetter

2013 foi um ano de novidades para a flora açoriana, que tem desde então um capítulo mais bem arrumado. Recapitulemos. No início de Dezembro do ano passado ficámos a saber que uma equipa de botânicos encontrou, num único local do Pico da Esperança, na ilha de São Jorge, uma nova orquídea do género Platanthera que é endémica do território. Ao procurarem uma designação apropriada para esta nova planta, consultaram os exemplares de Platanthera colhidos em 1838 por Karl Hochstetter e depositados no herbário da Universidade de Tubinga. Nesse ano, inicialmente com o pai e depois sozinho, Karl percorreu algumas ilhas do arquipélago (não se sabe exacatamente quais) em visita de exploração botânica. No herbário havia afinal material recolhido de três espécies de orquídeas, distintas sobretudo no tamanho e morfologia das flores, mas na Flora Azorica, de 1844, Seubert só havia nomeado duas delas. Mas quais? Excelente pergunta cuja resposta pôs fim a um erro com quase dois séculos: Seubert havia nomeado as menos frequentes, faltando uma designação válida para a mais comum, que existe em todas as ilhas e em populações numerosas.

Resolvido o imbróglio, eis as três espécies de Platanthera endémicas dos Açores que agora se conhecem:

* Platanthera pollostantha, a que tem as flores menores e é a mais abundante, pontuando todas as ilhas açorianas.

* Platanthera micrantha, de flores um pouco maiores, com o labelo revirado para cima a tapar o centro da flor. Há registo da sua presença em seis das nove ilhas (Corvo, Flores, Faial, Pico, São Jorge e Terceira).

* Platanthera azorica, de flores grandes, com o labelo vertical e igualando em tamanho as sépalas laterais. Só são conhecidas populações na zona central de São Jorge. É essa a espécie recém-(re)descoberta.


Platanthera azorica Schltr.


Para ver esta "nova" orquídea, estivemos em São Jorge no início de Junho. No dia seguinte à chegada, preparámo-nos para a subida ao Pico da Esperança, um monte de respeito que se ergue a uns mil metros de altitude, mas o nevoeiro espesso, a chuva miudinha e o vento forte (que, em 1999, terão contribuído para um acidente com um avião da Sata, que colidiu com a montanha) fizeram-nos desistir da ideia. Sem preocupações, afinal tínhamos mais seis dias para repetir a tentativa. No retorno à parte mais baixa da ilha, com sol e gado a passearem animados pelos prados, fomos parando para ver de perto os taludes elevados de beira de estrada, lugares muitas vezes favorecidos por flora admirável. Num deles, a cerca de 650 metros de altitude, detectámos uma planta que procurávamos: a salsa-das-nuvens. E, a meio do talude, eis outra surpresa: vários pés de P. azorica. O que nos leva a ter esperança de que a famosa orquídea talvez esteja mais disseminada pela ilha do que os registos actuais fazem crer.

A lista de polinizadores destas orquídeas é mal conhecida. Mas, sendo adeptas obstinadas da auto-fecundação, não é de admirar que haja poucos híbridos entre elas. É quase certo, porém, que há insectos a visitá-las: algumas fotos mostram pólen disperso, como se espalhado por algum insecto a bater asas; além disso, a P. micrantha é bastante perfumada. E as fotos seguintes mostram um exemplar de P. azorica (ou coisa parecida) bastante robusto e em que as pétalas superiores das flores não formam o tradicional capuz, variações morfológicas que sugerem estarmos em presença de um híbrido ou então de uma planta com desenvolvimento anómalo.



Quando, dias depois, o tempo amainou (enfim, o verbo talvez seja excessivo; digamos que o nevoeiro e o vento ainda por lá se mantinham, mas já não chovia) e pudemos subir ao Pico da Esperança, já conhecíamos a orquídea, mas ali o núcleo delas que se deixa adivinhar entre a névoa é muito maior. Vimos umas duzentas plantas, em plena floração, rodeadas de centenas de exemplares de P. pollostantha e uma dúzia de pés de Euphrasia grandiflora. Esta Euphrasia, de flores maiores do que as da ilha das Flores, ainda só exibia folhas. Um bom motivo para voltarmos a São Jorge.

08/07/2014

Serapião queimou o bico


Serapias cordigera subsp. azorica (Schltr.) Soó. [= Serapias atlantica D. Rückbr. & U. Rückbr.]


Quem visita o arquipélago açoriano na Primavera ou no Verão não demora a reparar que, embora seja invulgar o dia em que não chove, as temperaturas máxima e mínima diferem pouco e são amenas, rondando frequentemente os 21ºC. É o clima ideal para quem aprecia passeios pelo campo ou pela praia, embora nos primeiros se deva acautelar contra nevoeiros densos e repentinos, e, optando pela beira-mar, tenha de se resignar a uma areia escura feita dos grãos grossos em que o mar vai desfazendo a pedra vulcânica. Nestas ilhas de paisagem paradisíaca, a estabilidade do clima parece ser um traço distintivo na sua curta história geológica: ao contrário de outras ilhas da Macaronésia, os Açores não parecem ter sofrido transições climáticas abruptas, nem períodos de aridez a entremear outros de dilúvio que, noutras paragens, são responsáveis pela diversificação da flora. As plantas que lá se instalaram tiveram apenas de fazer um esforço inicial de adaptação aos novos polinizadores, ao novo solo e à nova ecologia. Se os endemismos açorianos são escassos, isso talvez se deva em parte às extinções locais que a intervenção humana tem vindo a provocar.

No que respeita à flora, as ilhas são (estranhamente, aliás) muito semelhantes. As excepções são poucas, e algumas em vias de desaparecer, seja pela voracidade dos inúmeros coelhos, seja pela agilidade das cabras ou pelo incentivo mal gerido dado à pastorícia. Mas os relógios das ilhas não são idênticos. Na ilha de Santa Maria, mais seca e mais próxima do continente, o início de Junho é já tarde para ver orquídeas, e nesse mês do ano passado não conseguimos ver nenhuma Serapias em flor. Pelo contrário, no grupo central do arquipélago, é em Junho que elas estão no auge da floração; e é em São Jorge que é mais fácil fotografá-las. Não temos dúvidas em reconhecer nas flores das fotos, pelo labelo vermelho escuro e grande, o parentesco desta Serapias com a europeia Serapias cordigera. Contudo (e parecendo desse modo seguir uma regra a que as outras orquídeas açorianas também obedecem), as flores desta Serapias são muito menores do que as da prima continental; e, na ilha do Pico, as flores tendem a surgir, com elevada percentagem, em versões rosadas ou brancas. Por isso, alguns botânicos propõem que se autonomize como espécie (sugerindo o nome Serapias atlantica), enquanto outros optam cautelosamente por uma diferenciação ao nível de subespécie (adoptando a designação Serapias cordigera subsp. azorica).

Não é surpresa que nos Açores haja poucas espécies de orquídeas e cada vez menos efectivos de algumas delas. Afinal, a grande maioria destas plantas prefere solos calcários, e esse tipo de substrato não existe nos Açores. Além disso, as ilhas estão bastante longe do continente europeu ou do americano, e a colonização das ilhas por plantas e animais não terá sido aventura fácil. Ainda assim, das cinco orquídeas conhecidas nas ilhas açorianas, quatro são consideradas endémicas. A mais frequente é, sem dúvida, a Platanthera pollosthanta, talvez por ser menos exigente quanto a fungos e microrrizas. A das fotos, pelo contrário, que ocorre em todas as ilhas com excepção das do grupo oriental, está ameaçada em todas elas pelo uso intensivo dos prados pelo gado, e talvez à beira da extinção em São Jorge. Nesta ilha, resta-lhe o bordo magro dos matos, uns pastos minguados sem acesso fácil para vacas e alguns taludes elevados de estrada.


São Jorge: estrada do Topo
Há ainda, felizmente, uns raros refúgios como o desta última foto. Isso, e cientistas estrangeiros preocupados com a sobrevivência da flora açoriana.


São Jorge: cimo da Fajã dos Vimes

05/07/2014

Salsa das nuvens

São Jorge é a ilha açoriana com formato mais peculiar, lembrando um charuto apagado que alguém atirou quase intacto às águas do Atlântico. Desenvolvendo-se em linha recta, com 54 Km de comprimento e 7 de largura máxima, mais estreita nas pontas, é uma ilha onde o mar está sempre à vista (desde que o nevoeiro o permita) mas as distâncias por estrada são consideráveis. As duas extensas linhas de costa, em regra recortadas de forma abrupta, são separadas por uma cordilheira central banhada quase em permanência por chuva e nevoeiro e sacudida por ventos impenitentes. Em Velas, sede do principal concelho da ilha, o casario desce até junto do mar, e o mesmo acontece na Calheta, mas a maioria dos povoados situam-se no topo das falésias, a uns 300 ou 400 metros de altitude, amiúde com sucursais desabitadas lá em baixo, em fajãs às quais se chega por íngremes estradas em ziguezague.

A sucessão de picos que forma a espinha dorsal da ilha tem o seu ponto culminante no Pico da Esperança, com uma altitude máxima de 1053 metros. Quem quiser observar muitas das preciosidades da flora endémica açoriana deve reservar várias horas para percorrer os 9 Km do estradão que, começando no Pico do Pedro e terminando no Pico Pinheiro, liga uma dezena dessas elevações, entre elas o Pico da Esperança. O ideal seria fazer o passeio a pé, mas esse feito, embora não apresente dificuldades, é pouco agradável de cometer com o agressivo cocktail de nevoeiro, frio, chuva e vento que costuma prevalecer no local. Mas, como as raridades botânicas se acumulam em profusão mesmo nas bermas do estradão, não é o nevoeiro cerrado que nos impede de vê-las e fotografá-las. No que ele é intransigente é em vedar-nos as anunciadas vistas de perder o fôlego, incluindo (asseveram aqueles cuja função é vender paisagens aos turistas) todas as ilhas vizinhas e mais aquelas que o não são.


São Jorge: Fajã dos Cubres; o Pico visto da Ponta dos Rosais
Compreende-se pois que sejamos forçados a escolher imagens de outros locais da ilha para ilustrarmos o texto. O nevoeiro, como nos ensinaram os álbuns do Asterix, é igual e branco em todas as latitudes. Contudo, se não se distingue pela fotogenia, o nevoeiro do Pico da Esperança vale pela persistência, e é graças a ele que plantas como o Ranunculus cortusifolius e o Chaerophyllum azoricum proliferam de modo assombroso. À falta de um nome comum, chamamos salsa-das-nuvens a este último, mas a escolha é algo desajustada, pois as folhas de quase um metro de comprimento só serviriam para temperar a refeição de um ciclope vegetariano. Certo é que o C. azoricum, um endemismo açoriano que ocorre apenas em São Jorge, São Miguel, Pico e Flores, e que em geral é tido por raro e ameaçado, aqui forra quase continuamente largas extensões da encosta.



Chaerophyllum azoricum Trel.


Já antes assinalámos o fenómeno do gigantismo que atingiu várias das estirpes vegetais que se instalaram nas ilhas, descendentes de plantas que no continente nunca se destacaram pela envergadura. A comparação entre este colosso açoriano e o débil e continental Chaerophyllum temulum não podia ser mais eloquente.

Planta perene ou bienal, florescendo de Maio a Julho, o C. azoricum reconhece-se facilmente pelas folhas imparipinadas, com folíolos grandes, de margens irregularmente serradas. A disposição das flores em umbelas terminais é típica da família das umbelíferas, que inclui espécies comestíveis como a salsa e a cenoura, e outras muito venenosas como o Oenanthe crocata. Em São Jorge, embora se dê melhor nos picos enevoados, o C. azoricum também aparece esporadicamente a menores altitudes.