São Jorge: Fajã da Penedia (em baixo, ermida de Santa Filomena; as flores brancas em 1.º plano são de Silene uniflora)
Em vez de descerem suavemente para o mar, as ilhas dos Açores são cortadas a pique, como se fossem fatias de um bolo que já foi muito maior mas entretanto o Atlântico mordiscou. As falésias quase verticais desprendem-se de tempos a tempos, e os detritos que assim se acumulam na costa vão juntar-se às lavas e escórias vulcânicas que as ilhas foram cuspindo ao longo dos milénios. Assim se formam as fajãs, pequenas bolsas de terra plana e fértil encravadas entre o mar e as encostas vertiginosas, e de que São Jorge, muito mais do que as restantes ilhas do arquipélago, está copiosamente fornecida. Ainda que decorra a uma escala temporal que nos ultrapassa, este processo de formação de fajãs nunca está concluído. Em Outubro de 2012, uma derrocada no Corvo provocou o surgimento de uma
fajã embrionária, que se persistir obrigará a alterar os mapas da ilha. E, quando visitámos São Jorge, em Junho passado, não pudemos descer À Fajã da Ribeira da Areia porque um deslizamento de terras tinha cortado a estrada durante a noite. O acerto com que o acaso escolheu a hora poupou vítimas humanas, pois ninguém mora nas fajãs nem a elas desce durante a noite, enquanto que de dia há sempre alguém a amanhar um campo ou a colher couves no quintal.
Na costa norte de São Jorge há talvez duas dezenas de fajãs com campos cultivados; dessas, cerca de metade têm casas de habitação, mas só em três delas (Fajã do Ouvidor, Fajã dos Cubres e Fajã de Santo Cristo) parece viver gente. A razão do fenómeno não está tanto na dificuldade dos acessos, embora à Fajã de Santo Cristo, a mais famosa da ilha, não seja possível chegar de automóvel. Explicação mais plausível talvez seja a oposta: uma vez que com uma robusta carrinha de caixa aberta os donos das fajãs se põem lá em baixo em três tempos, é com igual facilidade que fazem o caminho inverso uma vez cumpridas as tarefas do dia; não precisam de pernoitar numa aldeia fantasma que, apesar de arrumadinha, não terá as comodidades (electricidade, etc.) a que a civilização nos habituou.
São Jorge: Fajã da Caldeira de Santo Cristo
Na Fajã de Santo Cristo, ligada à Fajã dos Cubres por um caminho de terra batida pelo qual pode passar uma moto-quatro mas não um veículo mais volumoso, há um restaurante que só abre no Verão ou quando os astros se conjugam em alinhamento favorável. O mesmo estabelecimento promete excursões de barco às fajãs inacessíveis por terra, programa aliciante para quem, como nós, gostaria de ser como as gaivotas para ver que plantas se escondem nos recantos onde só chegam as aves. E assim ficou apalavrado que num dos nossos dias em São Jorge nos faríamos ao mar numa lancha, não sem antes enfardarmos um almoço de peixe, marisco e queijo da ilha. Dia de chuva mansa, mais refrescante do que incómoda, lá nos metemos a caminho, mas por prudência, faltando 2 ou 3 Km para a meta, telefonámos ao restaurante para saber se o programa se mantinha. Pois que não: nem passeio de barco às fajãs secretas, nem almoço, nem nada. Sem farnel e sem alternativa, avançámos o suficiente para saudar de longe a Caldeira de Santo Cristo, e toca de inverter a marcha.
Coitados, que perda de tempo, há gente que não tem palavra — dirá o leitor num assomo de solidariedade. Agredecendo a simpatia, permitimo-nos discordar da
perda de tempo. Posto que adulterada pela invasão do incenso (
Pittosporum undulatum), a vegetação deste pedaço de costa apresenta-se ainda em estado razoável, com a
Myrica faya e a
Erica azorica a escoltarem-nos durante boa parte do trajecto, acompanhadas aqui e ali por
Pericallis malvifolia,
Scabiosa nitens,
Lysimachia azorica e até (num único local) pela raríssima
Tolpis succulenta. Como ingrediente inesperado, encontrámos um feto que nunca tínhamos visto, com frondes erectas de uns 20 cm de altura, textura rugosa e margens aculeadas. Sendo obviamente exótico, tinha indisfarçáveis semelhanças com o vulgar feto-pente (
Blechnum spicant).
Doodia caudata (Cav.) R. Br.
Consultada a bibliografia, depressa lhe desvendámos a identidade: trata-se da
Doodia caudata, um feto australiano da família
Blechnaceae que no seu país de origem é conhecido como
small raspfern — havendo por lá, além deste, outros e maiores
raspferns, todos eles ásperos ao tacto e pertencentes ao género
Doodia, que inclui umas 15 a 20 espécies distribuídas pela Austrália, Nova Zelândia e sudeste da Ásia. O nome
Doodia refere-se a Samuel Doody (1656-1706), boticário londrino que se interessou particularmente por pteridófitas e foi, a partir de 1693 e até à sua morte, responsável pelo Chelsea Physic Garden. Já o epíteto
caudata tem como explicação evidente a longa cauda com que as folhas do feto são rematadas.
Não menos do que Portugal continental, as ilhas atlânticas já suportam uma dose mortífera de invasoras vegetais australianas, e por isso a ocorrência de mais uma espécie exótica com essa origem não é motivo para festejos. Acontece, contudo, que a
Doodia caudata está assinalada nos Açores desde os anos 50 do séc. XX, e tem-se mantido bastante rara no arquipélago. Em São Jorge vimo-la apenas em dois pequeníssimos núcleos. Talvez ela — que, devemos admitir, até é bonita — não tenha a índole agressiva que é indispensável para uma invasão bem sucedida.