30/04/2008

Flor com estacionamento


Macfadyena unguis-cati

Como é usual entre os grandes abastecedores de bens essenciais, as flores encomendam estudos de mercado para conhecer o perfil e as necessidades dos seus fregueses, e investem sobretudo nos acessos às suas lojas e no espaço onde os clientes comprovam, lambendo gulosamente as pontas dos dedos, a qualidade dos produtos. As instalações florais desta trepadeira lenhosa da América tropical são amarelas, com amplo espaço para os polinizadores aterrarem, seguindo depois por baias bem vincadas até às caves onde se guarda o néctar - assinaladas a laranja para que não haja clientes mal estacionados à entrada da loja.

As folhas da Macfadyena unguis-cati são pinadas, com um folíolo terminal transformado em gavinha (veja a foto da direita) que lembrou, a quem nomeou a espécie, três unhas de gato. O que revela que essa pessoa não tinha gato, ou não lhe consultou as patas sobre o assunto. Nós, e os gatos que se comovem com estes agrados, preferimos chamar-lhe pé-de-canário.

29/04/2008

Não parece quem é



Cornus controversa - Kew Gardens

Talvez o epíteto controversa se deva à vincada diferença no tipo de floração entre esta pequena árvore asiática e as suas congéneres mais famosas, como a Cornus florida e a C. kousa. Nas duas últimas, as flores são minúsculas, agrupando-se em inflorescências rodeadas por quatro brácteas vistosas; na C. controversa, as flores são mais convencionais, com pétalas e estames perfeitamente visíveis, e dispõem-se em umbelas parecidas com as do folhado (Viburnum tinus), muito embora as duas plantas não tenham qualquer relação entre si. Ressalve-se, porém, que há outras espécies de Cornus, como a C. kas, com floração em umbela semelhante à da C. controversa. A divergência na floração reflecte-se na morfologia dos frutos: as espécies mais tradicionalistas, como a C. florida, a C. kousa e a C. capitata, dão frutos carnudos e avermelhados que lembram morangos, ao passo que a C. controversa se contenta em produzir pequenas bagas pretas.

As fotos foram tiradas há um ano, na última visita que fizemos aos Kew Gardens, em Londres.

28/04/2008

Beco do Paço



O beco do Paço é uma curta viela sem saída que desemboca na rua de Clemente Menéres, mesmo ao lado do Jardim do Carregal. É um lugar sem dignidade suficiente para homenagear algum ilustre falecido, e por isso nunca nenhuma comissão de toponímica lhe quis mudar o nome. Ninguém lá mora: a ilha que lá existia foi demolida em 1999, e sobram, à face do beco, duas casas de dois pisos, desocupadas e em ruínas. A única utilidade da viela é servir de estacionamento gratuito a meia-dúzia de habitués que trabalham nas redondezas. Há também os gatos, moradores dos pardieiros, que vêm apanhar sol nos tejadilhos dos carros ou, em dias de chuva, abrigar-se debaixo deles. Logo à entrada do beco, vedada por desengonçado portão de chapas de zinco, há uma rampa de acesso a um terreno semi-arborizado que se estende até às traseiras da rua de Miguel Bombarda. O terreno já foi estaleiro de obras, e dessa sua ocupação sobraram materiais de construção, vários montes de entulho, e duas placas de cimento que a vegetacão espontânea vem metodicamente rompendo. Enquanto durar este fértil abandono, poderão vegetar tranquilamente as árvores que vejo da minha janela: palmeira-das-Canárias, sequóia, nespereira, plátano, ácer, figueira, ligustros, sabugueiros. À lista devo juntar a casuarina de que aqui falei vai para quatro anos (foto da esquerda) e que, entretanto, para orgulho de quem a apadrinhou, mais que duplicou de envergadura.

27/04/2008

Bandeira azul


Lathyrus angulatus L. - vale do Tua

....O calor, como uma roupa invisível, dá vontade de o tirar.

Fernando Pessoa

26/04/2008

Tremoceiro-azul


Lupinus angustifolius - vale do Tua

É com um tremoceiro, o nosso segundo, que encerramos em pleno azul uma semana fotograficamente preenchida com a ameaçada flora do vale do Tua. Talvez não valha a pena explicar em detalhe como o tremoceiro-azul é diferente do seu congénere amarelo: nem quem desdenhe as nossas explicações correrá o risco de os confundir. Mas pode dar gosto a alguns fazer as coisas do modo mais difícil - e é para esses que, de seguida, ensinamos como distinguir as duas plantas sem olhar à cor das flores.

As folhas de ambas são compostas digitadas, mas, como indica o epíteto angustifolius, os folíolos do tremoceiro-azul são notoriamente mais estreitos. Além disso, este último dispõe as flores na haste alternadamente, enquanto que as flores do tremoceiro amarelo se agrupam em andares sucessivos, com as flores de cada piso formando varandas circulares em torno da haste.

No que respeita à vida em sociedade, a atitude destes dois tremoceiros não podia ser mais constrastante. O tremoceiro-amarelo é por natureza gregário e reivindicativo: todos os anos, pela Primavera, haja ou não motivo para protesto, organiza grandes manifestações onde insiste em agitar as bandeiras amarelas de sempre. O tremoceiro-azul, pelo contrário, é de carácter reservado e individualista, odeia multidões, e pouco ou nada faz para ser notado. A sua distribuição em território português é escassa e irregular: perto do Tua, vimos alguns indivíduos marginando a estrada; atentos à raridade, tivemos que nos apear para o registo fotográfico. Antes disso, só o tínhamos visto, mirrado pelos maus ares da vizinhança, junto a uma das ribeiras (ou esgotos) que desaguam na poluidíssima Lagoa de Paramos, a sul de Espinho.

25/04/2008

25/IV/74


Lavandula pedunculata - vale do Tua

....Tinha a língua de sabão.
....Lavou as palavras e calou-se.

Frederico García Lorca, Canções para terminar

24/04/2008

Ansarina-dos-campos


Linaria spartea - vale do Tua

Esta é a quarta linária que figura neste blogue - e, depois da Linaria amethystea, a segunda que trazemos do vale do Tua. Sobre o género Linaria, nada há a acrescentar ao que a Maria aqui escreveu; mas, sobre a espécie de hoje, diga-se que, apesar de a termos encontrado perto de um rio, ela prefere terrenos abertos e secos, encontrando-se espalhada por boa parte do sul da Europa. O epiteto spartea refere-se à sua semelhança com a giesta-dos-jardins (Spartium junceum): ambas as plantas têm folhagem escassa e, com as suas numerosas hastes, formam maciços salpicados pelo amarelo vivo das flores. Como acontece na maioria de tais casos, a semelhança é apenas superficial, pois as duas plantas pertencem a famílias botânicas muito distintas.

23/04/2008

Posições no mundo


Amendoeira (Prunus dulcis) - vale do Tua

«No fundo, havia a sensação de que depois de muito se andar, depois das espantosas invenções técnicas, o homem continuava a depender de a árvore dar ou não frutos, apesar de já não haver árvores e de os frutos já não serem arrancados ou apanhados do chão, mas simplesmente negociados. Onde estava então a nova árvore? E que árvore era essa que fazia, subitamente, os preços subirem e a fome instalar-se em vários pontos do país, para depois, passados alguns anos, começar, sem justificação, a dar frutos em excesso?»

Gonçalo M. Tavares, Aprender a rezar na Era da Técnica (2007)

22/04/2008

Noite da Terra

Nunca estivemos no vale do Tua à noite. Imaginamos que o silêncio que ouvimos lá de dia, enrugado por conversas de passarinhos, se ri, nessas horas longas, do rio arrepiado e galopa com ele a contar estrelas num céu de ardósia. Nas margens, a terra descansa perfumada pelos jacintos-das-searas que lembram candelabros de palácio a convocar fantasmas de histórias de embalar.


Muscari comosum

As inflorescências desta planta que aprecia solos cultivados, sobretudo olivais, são encimadas por um tufo (comosum) vistoso de flores globosas, azuis-violeta e estéreis, que atraem as abelhas para o perfume almiscarado e os potes de néctar das flores tubulares castanhas situadas mais abaixo na ráquis. Neste eixo com cerca de 30 cm, os sinos, com brácteas minúsculas e corolas de seis dentinhos, dobram em sequência a partir da base.

Os bolbos, cebolinhos-de-flor-azul, são apreciados na culinária grega. A que saberão?

21/04/2008

As árvores não sabem nadar


Choupos - Abreiro, rio Tua

aqui falámos da barragem com que o governo e a EDP querem destruir irreversivelmente o vale e a linha do Tua. Os estragos do empreendimento, contudo, não se ficarão por aí. A grande bolha de água estagnada alastrará ainda a afluentes do Tua como o rio Tinhela; na margem esquerda do Tinhela, perto da junção dos dois rios, situam-se as Caldas de Carlão, que foram modernizadas há poucos anos e serão, também elas, inundadas pelas águas da barragem. Do rio Tinhela, e da galeria de freixos que o acompanha [ver abaixo], ficarão apenas a memória e algumas fotos: as árvores, apesar de não serem inertes como são os desenhos gravados na pedra, morrerão por não saberem nadar.

«As gravuras não sabem nadar» foi o slogan criado em Vila Nova de Foz Côa, nos idos de 1995, pelos opositores à construção da barragem que iria submergir o valioso núcleo de arte rupestre então recém-descoberto no vale do Côa. A palavra de ordem propagou-se pelo país como incêndio em mato ressequido: marcou uma fronteira clara entre dois campos, e foi bandeira de António Guterres na campanha eleitoral de 95. Empossado como primeiro-ministro em Outubro, anunciou de imediato que a barragem não se faria. As gravuras estavam salvas do afogamento.

Agora que o slogan entrou na adolescência, o pequeno mundo português está menos permeável ao idealismo. Embora se anunciem para os próximos anos afogamentos ainda mais graves, pela magnitude dos prejuízos patrimoniais e ambientais, do que o das gravuras do Côa, de pouco adianta reciclar a frase e tentar insuflar-lhe nova vida mediática. O beco sem saída a que chegámos pode traduzir-se numa pergunta: em quem devemos votar para termos um governo que não construa as barragens do Tua e do Sabor? Ou, numa formulação mais geral: dos dois partidos que nos têm governado, qual deles defende que já temos quanto basta de betão e de asfalto, e que é urgente pormos termo à depredação do território?

A adopção de chavões ambientalistas pelo discurso político é um verniz que estala logo ao primeiro embate, deixando a descoberto as velhas ideias desenvolvimentistas da nossa perdição. Mas, mesmo que as escolhas políticas actuais pareçam ser entre uma coisa e a sua igual, o alheamento não é uma atitude sensata, e da desistência não podemos esperar qualquer mudança. Pode ser que o clamor daqueles que não se sentem representados no nosso mainstream político obrigue algum dia os partidos a renovarem-se e a diferenciarem-se.

É por isso - e também por acreditarmos que uma barragem na foz do Tua é um erro monstruoso - que apoiamos a petição lançada pelo Movimento Cívico pela Linha do Tua. Não falta muito para as assinaturas atingirem as 4000, garantindo-se assim que a petição é discutida no plenário da Assembleia da República.



Freixos - rio Tinhela

19/04/2008

Pequenos vícios

«"Dá-me a tua mão". A mão (explica-me Daniel) era o prolongamento da intimidade, a memória dum corpo retido em cinco dedos esguios e trémulos. Mas a dele, pela prontidão com que respondia à de Cecília, era o nó sensível com que a rapariga podia medir o cansaço, a indiferença, a idade, em suma, do amor, tal como o perfeito marceneiro, medindo de facto um nó de madeira, premindo-o e afagando-o, sabe avaliar os anos duma árvore e a sua resistência.»

José Cardoso Pires, Lavagante (2008)


Vicia hirsuta

Os dotes de trepadeira da Vicia hirsuta superam a fadiga de ser tão pequenina. A foto da esquerda mostra-a decidida a içar alto a bandeira, de gavinhas enliçadas a tudo o que lhe está ao alcance da mão.

As flores em cachos são como cabeças de alfinete (~4 mm), de tom branco com sombras roxas, mas semelhantes às que vimos nas espécies V. angustifolia e V. sativa. Apesar de ser uma ervilhaca em miniatura, a folhagem é densa e pode criar um tapete espesso. A designação comum cizirão, do latim cicer, eris, grão-de-bico, é sugerida pelo formato das sementes.

Temíamos chegar a este ponto. Prevemos mesmo o risco de, abandonados pelas árvores em descanso de Inverno, baixarmos os olhos e nos encantarmos com as plantas miúdas, de curta e ávida vida. Por este caminho não tardaremos a ser dançarinos-de-prado, calcorreando os campos sempre em bicos-de-pés para poupar o veludo das ervas tenras. E um dia repararemos nos saiotes dos musgos, iniciando outro capítulo de descoberta, cedendo a mais um vício da curiosidade. Ou talvez cruzemos uma estreita porta da floresta sem retorno.

18/04/2008

Mirtilo-americano


Vaccinium corymbosum

Nas nossas visitas ao Jardim Botânico não costumamos levar cesta para ir apanhando fruta, mas talvez devêssemos fazê-lo. Cientes de que nem tudo se come, tomaríamos as devidas cautelas para evitar intoxicações. Não seríamos culpados de avidez gulosa, e nenhum pássaro passaria fome por nossa causa. Mas a passarada não come tudo, e dói ver apodrecer no chão coisas com que nos poderíamos deliciar. Falamos por exemplo dos frutos deste arbusto, chamados blueberries nos EUA, onde são, no seu género, dos mais consumidos e apreciados. A espécie mais disseminada na Europa e na Ásia é a Vaccinium myrtillus, dando-se entre nós o nome de mirtilo tanto ao arbusto como ao fruto. No norte da Europa essa espécie é de tal modo abundante que colher mirtilos é passatempo vulgar; mas, pela mesma razão, não é compensador cultivá-la. O clima português, menos frio, não é tão propício ao seu desenvolvimento, e só na Serra do Gerês ela sobrevive na forma espontânea; e aí, por motivos óbvios, a colheita dos frutos está proibida. Por contraste, a produção comercial de mirtilos no nosso país, iniciada há poucos anos, parece ser bom negócio, embora o seu consumo não se tenha ainda generalizado.

Os arbustos do género Vaccinium são estimados tanto pelos frutos como pelas qualidades ornamentais. Entre as mais de 400 espécies, a maioria delas das zonas mais frias do hemisfério norte, contam-se arbustos grandes e pequenos, uns de folhagem caduca e outros perenifólios. Os mais populares em cultivo são de origem norte-americana, mas uma espécie endémica em território português, a caducifólia açoriana V. cylindraceum, tem ganho adeptos pelo mundo fora. Na Madeira é endémica a espécie V. padifolium, de folhas persistentes, conhecida na sua ilha natal como uveira ou uva-da-serra, nomes que servem igualmente à sua prima açoriana.

17/04/2008

Mesuras


Silene nutans subesp. nutans (nutans = inclinada, obsequiosa, reverente)

«Quem viveu tempo bastante para comparar costumes velhos com costumes novos concluirá que foi mais simples ontem do que hoje a maneira de tratar pó levantado. Os prenomes, isto é, os títulos que precedem nomes próprios ou apelidos (...) eram adminículos simples como rosas bravas. Hoje, dobram-se e redobram-se com sete camadas de pétalas multicores. Antes de cada nome, devem figurar todos os arreios, franjas e campainhas que berrem à vista e ao ouvido. (...)

Eram mais simples os tempos de ontem. O título de doutor não compreendia, como agora, três espécies: Doutor por extenso, Dr. abreviado e dr. minúsculo, reduzido a duas cíbalas de pulga indecentes. Havia um, que era o Dr. - fosse ou não fosse de borla.

Ninguém sabe distinguir, na pronúncia, as três espécies. Há quem proponha, para remediar, uma vénia para o dr. pequenino, duas para o Dr. mediano e três para o Doutor de via larga - único verdadeiro.

Respeitem-se os prenomes, que a sociedade não pode viver sem eles. São, como dizia o Abade de Baçal, o chocalho que distingue o indivíduo. Mas, não se respeite mais o chocalho que a pessoa - como sucede a cada passo.

João de Araújo Correia, Ecos do País (Imprensa do Douro, 1967)

16/04/2008

Edital


Aesculus hippocastanum

Avisam-se todos os interessados (e quem, lendo este blogue, poderá não estar interessado?) de que os castanheiros-da-Índia estão em flor. Antes disso, é claro, as mesmas árvores deram folhas novas, fenómeno que, embora nos alegrasse o coração, não assinalámos na altura própria. Como as folhas, ao contrário das flores, não desaparecem tão cedo, as duas coisas podem agora ser vistas em simultâneo, embora a tenra languidez das folhas acabadas de nascer (foto da esquerda, tirada na Quinta da Aveleda) já se tenha desvanecido. A árvore à direita, fotografada há poucos dias, mora no jardim da Casa Burmester, à rua do Campo Alegre, no Porto.

15/04/2008

Pimpinela



Sanguisorba minor

A maioria dos dicionários portugueses, quando questionados sobre a palavra pimpinela, respondem, piscando nervosamente, que se trata de:

1. herbácea da família Rosaceae, espontânea e frequente em Portugal, com uso medicinal;
2. plantas da família Apiaceae a que pertence o anis.

Anis?

anis - planta herbácea, da família Umbeliferae, também denominada erva-doce, que tem aplicações em farmácia, culinária e na preparação de algumas bebidas alcoólicas.

Mas este anis não pode ser o ilustre e caro [Illicium verum, da família Illiciaceae], pois não? E por que chamam à pimpinela - nome lindo - anis, e a qual das três famílias (Apiaceae, Umbelliferae, Rosaceae) afinal pertence? Sigamos para mais esclarecimentos em dicionários brasileiros. O Aurélio, enxuto como lhe convém, não hesita:

pimpinela - do latim pimpinella, alteração de pepinella, do latim pepo, «melão»; anis.
sanguissorba - ?
anis - erva da família das umbelíferas, Pimpinella anisum, originária do Egipto, a qual fornece a essência de anis usada na fabricação de licores e xaropes; erva-doce, pimpinela.

Bem, a pular assim entre as duas palavras, não vamos a lado nenhum! Consultemos os verbetes do Houaiss, que regista:

pimpinela - designação comum às plantas do gênero Pimpinella, da famíla das umbelíferas; deriva do latim pipinella, «planta medicinal»;
pimpinela - de pepinella, pepino, pepo, «melão», aludindo ao uso em salada, como o pepino, das folhas da sanguissorba.

Ah, pepinella e pipinella! E a sanguissorba era onde queríamos chegar:

sanguissorba - do latim sanguis, sangue, e sorbare que conduziu a absorver, indicando o uso desta planta para ajudar a conter hemorragias; designação comum da Sanguisorba minor: coentrela.

Conclusão: O anis-estrelado [Illicium verum, Illiaceae] pouco tem a dizer à planta acima designada por "anis ou erva-doce" [Pimpinella anisum, Umbelliferae], de flores brancas ou rosadas e folhagem parecida com a da salsa; dela também se faz um licor popular, com cheiro e sabor que lembram os do anis-estrelado porque contém anetol, substância responsável pelo aroma em ambas.

E a pimpinela [Sanguisorba minor, Rosaceae], de flores com sépalas verdes, estames longos e avermelhados com anteras amarelas, e sem pétalas, afinal não é uma Pimpinella.

Vêem como é preciso uma ensaboadela nos dicionários e na língua? O acordo ortográfico vai tratar disso, não se preocupem: as manchinhas, como os cês, pês, o trema e outros acentos incómodos, que, como repararam, foram o maior entrave ao nosso conhecimento da pimpinela, serão prontamente lavadas. Joeirar é a meta. A nós resta a tarefa menor de reaprender.

14/04/2008

Kousa nunca vista


Cornus kousa

Conforme prometido na semana passada, aqui vão, na falta de fotos que a mostrem no seu rubro vestido outonal, as imagens possíveis desta outra Cornus no Parque Florestal de Amarante. Várias diferenças há entre a Cornus florida e a Cornus kousa. A que não salta à vista é serem originárias de continentes diversos: a primeira, como indica o epíteto específico, da costa leste dos EUA; a segunda da China e do Japão, sendo aliás kousa o seu nome japonês. As duas são de folhagem caduca, mas - como já vimos - a C. florida, mais pressurosa em exibir-se, faz brotar as flores antes das folhas. Em ambas as espécies as verdadeiras flores são verdes e discretas, formando pequenos bouquets rodeados por quatro brácteas semelhantes a pétalas; mas as brácteas da C. kousa são lanceoladas (foto em cima), ao passo que as da C. florida têm reentrâncias nas pontas, como se alguém as tivesse mordido (foto aqui). Finalmente, as folhas da C. kousa têm margens serradas e as da C. florida têm margens lisas. Tanto uma como outra espécie deram origem a numerosos cultivares ornamentais, quase todos eles inéditos em jardins portugueses. De facto, o Parque Florestal de Amarante é o único local do país onde alguma vez vimos exemplares de qualquer destas duas espécies de Cornus.

13/04/2008

Sobre o verde do trevo


Trifolium arvense

«De alguns corpos se diz que são transbordantes, quando se deitam é raro não deixarem sinais: pequenas manchas de sol recente ou delicadas sementes de alegria. Da substância vertida sobre o verde do trevo se diz também que é eloquente (eu diria irradiante), não sei se pelo cheio ao oiro da palha humedecida, se pelo brilho de seda acariciada. O que sei é que fascina as formigas e põe em cólera as éguas que nenhum vento emprenhou.»

Eugénio de Andrade, Memória de outro rio (1978)

12/04/2008

O princípio da aliança*

«Como uma esperança negra, qualquer coisa de mais antecipador pairou: a mesma chuva pareceu intimidar-se, um negrume surdo calou-se sobre o ambiente. E súbito, como um grito, um formidável dia estilhaçou-se. Uma luz de inferno frio visitara o conteúdo de tudo, e enchera os cérebros e os recantos. Tudo pasmou. Um peso caiu de tudo porque o golpe passara. A chuva triste era alegre com o seu ruído bruto e humilde. Sem querer, o coração sentia-se e pensar era um estonteamento. Uma vaga religião formava-se no escritório. Ninguém estava quem era, e o patrão Vasques apareceu à porta do gabinete para pensar em dizer qualquer coisa. O Moreira sorriu, tendo ainda nos arredores da cara o amarelo do medo súbito. E o seu sorriso dizia que sem dúvida o trovão seguinte deveria ser já mais longe. Uma carroça rápida estorvou alto os ruídos da rua. Involuntariamente o telefone tiritou. O patrão Vasques, em vez de retroceder para o escritório, avançou para o aparelho da sala grande. Houve um repouso e um silêncio e a chuva caía como um pesadelo. O patrão Vasques esqueceu-se do telefone, que não tocara mais. O moço mexeu-se, ao fundo da casa, como uma coisa incómoda.

Uma grande alegria, cheia de repouso e de livração, desconcertou-nos a todos. Trabalhámos meio tontos, agradáveis, sociáveis com uma profusão natural. O moço, sem que ninguém lho dissesse, abriu amplas as janelas. Um cheiro a qualquer coisa fresca entrou, com o ar de água, pela grande sala adentro. A chuva, já leve, caía humilde. Os sons da rua, que continuavam os mesmos, eram diferentes. Ouvia-se o som dos carroceiros, e eram realmente gente. Nitidamente, na rua ao lado, as campainhas dos eléctricos tinham também uma socialidade connosco. Uma gargalhada de criança deserta fez de canário na atmosfera limpa. A chuva leve decresceu.

Eram seis horas. Fechava-se o escritório. O patrão Vasques disse, do guarda-vento entreaberto, «Podem sair», e disse-o como uma benção comercial. Levantei-me logo, fechei o livro e guardei-o. Pus a caneta visivelmente sobre a depressão do tinteiro, e, avançando para o Moreira, disse-lhe um «até amanhã» cheio de esperança, e apertei-lhe a mão como depois de um grande favor.»

Fernando Pessoa, Livro do desassossego (Assírio & Alvim, 2001)

*Letras em Lisboa - Portugal, Brasil, África
Casa Fernando Pessoa / Teatro Municipal de São Luiz
(só até amanhã)


Na foto: Daucus carota (cenoura-brava)

11/04/2008

Arbusto-pérola



Exochorda x macrantha - Parque Florestal de Amarante

A tendência geral da moda Primavera/Verão nos jardins da cidade tem-se centrado mais no corte do que na decoração, acentuando o minimalismo e reforçando a melancolia dos tempos brumosos, toldados por chuva e vento, com que Abril se iniciou. Pelo contrário, os estilistas que cuidam das nossas prateleiras têm apostado numa colecção onde sobressaem padrões florais, estampados e acessórios de algum exotismo, vestindo silhuetas de assinalável exuberância e frescura. E a nossa noiva é um arbusto de ritidoma alaranjado e folhagem caduca, agora enfeitado de flores grandes com delicadas tiaras de estames. Agrupadas em cachos vistosos, criam uma máscara branca, pura e vaporosa, que lhe cobre a recente nudez. E as flores não desabotoadas são pérolas que dão um toque requintado ao traje.

A Exochorda x macrantha "The Bride" é uma selecção de um híbrido de dois estilos, a E. racemosa e a E. korolkowii, de ramagem verde-azulada e arqueada, pétalas estreitas na base e separadas, o que distingue esta rosácea dos exemplares do género Prunus abundantes em outras vitrines. Com estas propostas mantemos o investimento no mercado asiático, da China à Coreia, ambiente natural deste género que se apresenta em quatro versões.

Sussurram-me, enquanto me puxam vigorosamente pela manga, que a noiva costuma encerrar o desfile - e o nosso ainda vai no adro -, que os críticos da casa pequena notarão a pressa no casamento, apontando com os olhos no céu, enquanto a cabeça escreve a condenação, o óbvio pecadilho da mocinha. Ora, esse mesmo céu perdoar-lhe-á no Outono, garantindo-lhe numerosa prole com formato de estrela, objectámos nós.

10/04/2008

Camarinha em flor


Corema album

O aviso desta vez vem tarde, pois as fotos, tiradas na Reserva de São Jacinto, são de meados de Março, altura em que a floração das camarinhas já ia adiantada. Como essa fase é de curta duração, já deve ter sido por completo ultrapassada. As fotos são um pretexto para revelar que a camarinheira é dióica: há plantas que só dão flores masculinas, e outras que se encarregam das flores femininas. Só as plantas femininas produzem aquelas refrescantes bagas brancas que são os frutos. As inflorescências masculinas e femininas são semelhantes, surgindo ambas na extremidade dos galhos, mas observando-as de perto podemos distingui-las sem grande dificuldade. Na foto da direita, por exemplo, os estames encimados por anteras comprovam que se trata de uma planta masculina; como na planta da esquerda essas estruturas estão ausentes, concluímos que ela é feminina. Agora que estão apresentadas uma à outra, podem já combinar casamento, embora não tenham que jurar fidelidade mútua.

Apesar de ser comum em boa parte do litoral português, a camarinha tem uma distribuição global restrita, estando confinada à costa atlântica ocidental da Península Ibérica e às ilhas açorianas de São Miguel, Graciosa, São Jorge, Pico e Faial. Concluíu-se, porém, que a camarinha açoriana não é exactamente igual à do Continente, tendo por isso sido arrumada numa subespécie autónoma: Corema album subesp. azorica.

09/04/2008

Junco-dos-prados

"Menina Custódia, preencha lá essa folha com o número de pirilampos que calcula que existem." E a menina Custódia, com os olhos baixos de castidade, responde: "Senhor presidente, eu não costumo sair à noite, mas, pelo que tenho ouvido zumbir por aí, punha uns 79." "Ponha 99", responde o presidente, "pode ser que ainda tenhamos algum subsídio."

Eduardo Prado Coelho, Público, 11 Setembro de 2003




Luzula campestris (L.) DC.

Em 2003 o Parque Biológico de Gaia solicitou às câmaras municipais que «percorressem matas, pradarias, margens de rios e ribeiros, orlas de campos agrícolas e jardins e assinalassem as suas observações numa folha apropriada.» Objectivo: registar a presença e distribuição de pirilampos em território português. Nesse ano o país indignava-se com o recente escândalo ligado à Casa Pia e, em Setembro, fazia contas à calamitosa onda de incêndios. Mas nem tudo foram más notícias: temos um número muito razoável de pirilampos distribuídos de uma forma harmoniosa. Ao menos isso, suspirámos, mesmo que, por este processo, não se evitasse que algum pirilampo fosse contado duas ou mais vezes.

Há outros seres luzentes que, como os vaga-lumes, se põem em sincronia sem ajuda de maestro. Para cortejar o vento, seu polinizador, a Luzula campestris está em flor. É ver agora este pequenino junco cosmopolita nos prados húmidos porque a meio do Verão desaparecerá, para só ressurgir na Primavera de 2009.

A palavra luzula deriva da italiana lucciola, vaga-lume. E as fotos da inflorescência, que tem entre 4 e 12 flores, justificam a escolha desta designação. As seis pétalas castanhas lembram as asas de um insecto; os seis estames, em posição oposta a cada pétala, são amarelos como lâmpadas fluorescentes; e o estilete contém três estigmas cintilantes, como um mini-relâmpago emitido por cada flor. Mais tarde, as cápsulas sedosas dos frutos atrairão as formigas, que farão o favor de dispersar as sementes em troca deste espectáculo de fogo-de-artifício e de algum alimento.

08/04/2008

É uma olaia? É uma cerejeira?

Nem uma coisa nem outra, é claro. As vivas manchas cor-de-rosa que enfeitam por estes dias o Parque Florestal de Amarante são de duas Cornus florida. Uma delas já tinha sido aqui festejada em anos anteriores; posteriormente, a mesma árvore forneceu o material pedagógico para explicarmos que nas Cornus, tal como nas buganvílias, o colorido vistoso é das brácteas e não exactamente das flores. Este ano notámos que a árvore não está sozinha: outro exemplar da mesma espécie (na foto) vive em lugar mais discreto, fora do circuito dos visitantes, num declive entre campos de cultivo. Tivemos que a ver de perto para tirar a teima sobre que árvore seria ela. Era a cara chapada de uma olaia, um bocadinho atrasada na floração, é certo - só que não era olaia, e com isso perdi uma aposta. Mas como olaias há muitas e as Cornus são raras, no fim de contas também ganhei.


Cornus florida

Embora as «flores» se mantenham na árvore por algum tempo, a cor viva vai-se gradualmente esbatendo à medida que a árvore faz brotar as folhas novas. Daqui a duas ou três semanas, o rosa terá desmaiado para branco, ainda mais atenuado pelo verde da folhagem. Também em Amarante, perto destas duas, vegeta uma pequena e bonita árvore da espécie C. kousa, a qual, por nunca fazer o espalhafato das suas congéneres, nunca aqui trouxemos: as suas flores, rodeadas por brácteas brancas, surgem ao mesmo tempo que as folhas. A terceira espécie de Cornus cultivada em Portugal, presente no Jardim Botânico do Porto e em alguns jardins privados, é a C. capitata, que é igualmente pouco dada a exibicionismos primaveris e se distingue das outras duas por ser de folhagem perene.

07/04/2008

À pesca do sábado perdido




É sabido que não existem dias felizes, mas tão só a memória nostálgica de dias que nunca foram ou a esperança ingénua de outros que nunca serão, como diria Fernando Pessoa se tivesse escrito sobre o assunto. (Coisa que na verdade ele fez insistentemente, mas seria trabalhoso desenterrar agora uma citação à propos, e sendo para o que é a pastiche serve muito bem.) Toda a poesia lírica nasceu do carácter ilusório e fugidio da felicidade. Os poetas lamentavam o que supunham ter perdido, mas era a falta de introspecção que os iludia: na realidade, choravam o que nunca haviam tido. Todas as qualidades raras dos grandes momentos que recordavam provinham das cores mágicas com que a memória, essa sentimentalona, os tingia.

O lirismo não era só alimentado pelos males-de-amor; também nele concorriam os lembrados prazeres do bucolismo. O peixe que se pescou e de que nunca mais se viu igual era tão legítimo motivo poético como a alma gentil que se partiu. Nem a alma era assim tão gentil nem o peixe tão formidável, mas quem iria desdizer o lacrimoso poeta?

Nunca pesquei, quer à linha, quer de qualquer outro modo, mas julgo que quem arma a sua cana num sábado soalheiro persegue, mais do que o peixe, uma tarde de tranquilidade ininterrupta igualzinha àquela que nunca viveu. E a margem esquerda do Tâmega, dois ou três quilómetros abaixo de Amarante, parece o cenário ideal para essa mítica tarde, com águas fartas e limpas rodeadas de árvores e de sossego. Mas logo adiante do pescador estaciona uma família piquenicante que, insatisfeita com o pipilar dos pássaros, o cri-cri dos grilos e o cantar das águas, resolve acrescentar música à natureza e põe aos berros no auto-rádio o CD do Tony Carreira. Um pelotão de BTT's com mais de uma centena de vigorosos pedalantes levanta grossa nuvem de pó acompanhada de muita conversa e gargalhada. Passam os ciclistas, mas voltam pouco depois, que o caminho não tem saída. Duas motas ruidosas aceleram em despique. Um fotógrafo intrometido (eu) aponta a máquina quando o pescador enrola a linha: não vem nada, como é óbvio, pois desde o monstro de Loch Ness que os fenómenos sub-aquáticos se esquivam à objectiva.

Encolho os ombros e passo adiante, deixando o pescador com os destroços do seu sábado. Recolho imagens de águas fartas e limpas rodeadas de árvores e de sossego, para falsa memória futura.



Rio Tâmega: salgueiros-pretos (Salix atrocinerea) e amieiros (Alnus glutinosa)

05/04/2008

No flowers for Karajan


Aquilegia vulgaris

.......Herbert von Karajan (1908-1989)