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10/04/2020

Calçada das Carquejeiras

A carqueja (Pterospartum tridentatum), de que já aqui falámos, é uma planta subarbustiva muito ramificada e áspera, com folhas rudimentares reduzidas a três picos. Quando secos, os talos de abas onduladas são capazes de magoar quem lhes passe a mão. Está agora em flor (acredite, apesar de não poder ir confirmá-lo).



A designação carqueja é de facto ambígua pois há registo de três subespécies espontâneas em Portugal (ssp. tridentatum, ssp. cantabricum e ssp. lasianthum), que se distinguem facilmente pela largura das asas dos talos e pela penugem, ou falta dela, no estandarte das flores. A carqueja que abunda nas serras e matos em redor do Porto, sobretudo onde o solo é seco e rico em sílica, pertence à subespécie cantabricum.


Pterospartum tridentatum subsp. cantabricum (Spach) Talavera & P. E. Gibbs


Já quase não se usa em culinária, mas foi outrora um bem precioso. Não por ser rara, mas por ter sido essencial para acender os fornos das padarias e as lareiras, e por isso ter permitido a muitas mulheres pobres ter trabalho. Dito assim, parece ter sido um privilégio. Mas não: esta mão-de-obra feminina no transporte da carqueja para a cidade decorreu em condições próximas da escravatura, sem que o país oferecesse alternativa para a sobrevivência dessas mulheres. No caso do Porto, a história resume-se a isto. A tarefa de recolher a carqueja seca e a agrupar em molhos era feita nas serras, como a da Boneca, viajando então de barco até ao cais da Ribeira. Aí começava a dura servidão feminina (e também de alguns, poucos, homens), porque era preciso levar os molhos da beira-rio para o topo da cidade. Calcorreando uma calçada muito íngreme de piso escorregadio (uns 300 metros com um declive de cerca de 22%), mulheres e crianças descalças subiam em ziguezague, derreadas por fardos gigantescos de carqueja espinhosa (diz-se que alguns pesariam 50 quilos), como gigantescos ouriços a cambalear ladeira acima.



As carquejeiras chegavam ao topo sem fôlego, mas havia ainda que ir vender longe a carqueja, para de novo descerem a calçada e repetirem a viagem, pois o magro salário media-se em molhos transportados. José Rentes de Carvalho descreve assim, no seu livro Ernestina (Quetzal, 2009), esta estranha paisagem: “Via mais longe as mulheres da carqueja, curvadas sob molhos incríveis, subindo dos barcos «rabelos» para o cais e, Calçada da Corticeira acima, aos rodeios, com uma lentidão e persistência de insectos. A Calçada da Corticeira, ruim de subir, ruim de descer, tão íngreme que parecia um traço quase vertical na encosta.” A alternativa a este esforço desumano seria o uso de carros-de-bois que seguissem por outras vias, mas isso encareceria o preço da carqueja, do pão e dos biscoitos, ou, pior, reduziria os lucros de meia dúzia. Só em 1931 o governador civil do Porto proibiu este trabalho indigno, embora se saiba que ele persistiu por mais duas dezenas de anos pois, em Dezembro de 1951, uma inspeção sanitária às «profissionais do transporte de carqueja na cidade do Porto» dá conta de que a tragédia continua porque o desemprego se mantém avassalador.

Por iniciativa louvável de alguns portuenses genuinamente preocupados com a memória da cidade, a ladeira chama-se hoje Calçada das Carquejeiras; e, junto ao topo, foi inaugurada no passado dia 1 de Março uma estátua do escultor José Lamas que é uma homenagem e um pedido de desculpas da cidade às mulheres-de-carga.


24/07/2019

O tempo rasurado

Feto-do-Gerês (Woodwardia radicans) nos jardins do Palácio de Cristal, Porto (Foto: © Daniel Ferreira)

Um antiquário adquiriu por atacado o espólio de um falecido. Entre muita poeira e bricabraque, deparou-se com várias caixas de jóias e adereços femininos. Após rápido exame, atirou ao lixo um colar de ouro que, baço de sujidade, lhe pareceu de latão, e separou com amoroso cuidado, por se lhe afigurarem valiosos, uns brincos de plástico dourado com incrustações de vidro.

Negociante dessa estirpe não mereceria certamente o nome de antiquário. Desacreditado pelos seus pares e pelos seus potenciais clientes, rapidamente se veria obrigado a abandonar uma actividade para a qual não tinha a menor competência.

Os jardins do Palácio de Cristal, no Porto, estão entregues a "jardineiros" que de plantas sabem tanto como esse antiquário sabia de jóias. Move-os uma irreprimível vocação para guardar o pechisbeque e deitar fora o ouro.

A gruta de Camões, rústica estrutura de pedra e betão ao gosto oitocentista de imitação da natureza, dotada de um pequeno lago artificial para recreio dos patos, sombreada por grandes padreiros e castanheiros-da-Índia, está situada no patamar inferior dos jardins, a sul do recinto infantil. Desde há muitos anos (provavelmente desde meados do século passado) que sobre a gruta pendiam as ornamentais folhas do feto-do-Gerês (Woodwardia radicans), que, beneficiando da proximidade da água e da frescura proporcionada pelas árvores, se aclimatou perfeitamente ao lugar, lançando todos os anos abundância de folhas novas. Era um cenário artificial que evocava, de modo notável, as cascatas do Gerês ou dos Açores onde esse feto legalmente protegido em Portugal continental tem o seu habitat.

Nem a beleza do feto, nem a sua óbvia adequação ao local, nem o seu estatuto de espécie protegida: nada pôde salvá-lo da acção ignorante, cega e destruidora dos "jardineiros" do Palácio de Cristal. Na Primavera de 2018, talvez no âmbito de uma renovação de treta cujo ponto alto foi a instalação de uns pindéricos tapetes de relva para disfarçar os estragos causados pelas barracas de feira, todos os exemplares de feto-do-Gerês existentes no Palácio foram cortados e, para garantir que não voltavam, arrancados pela raiz.

A mesma mão bruta que destruiu o ouro deixa em paz o pechisbeque. Plantas invasoras como Acanthus mollis, Tradescantia fluminensis, Ailanthus altissima e Acacia melanoxylon proliferam alegremente em canteiros desmazelados. Nada se planta, nada se cultiva. A única "jardinagem" que ali se pratica, sempre com grande estardalhaço de máquinas, é o corte periódico da vegetação desordenada para que ela não ultrapasse a altura regulamentar.

É por isso moderado o nosso entusiasmo pelas obras de recuperação do Jardim Emílio David, agora em fase de conclusão. O projecto é, com toda a certeza, tecnicamente correcto e historicamente informado, respeitador do histórico jardim e das suas memórias. Mas, sem jardineiros que conheçam e estimem as plantas, que metam as mãos na terra, não haverá jardim digno desse nome, e o Jardim Emílio David recuperado pouco mais será do que uma instalação efémera.



Rhododendron maddenii Hook. f.


A herança de Emílio David não se resume ao desenho, agora escrupulosamente recuperado, dos jardins formais à entrada do Palácio de Cristal. A ele se devem também os dois bosquetes laterais compostos por árvores e arbustos das mais variadas proveniências; e, se parte desse arvoredo é de plantio posterior a 1865 (ano em que os jardins foram inaugurados), é verdade que camélias, rododendros, metrosíderos, ciprestes-de-Lawson e ginkgos denunciam pelo porte uma idade respeitável. Quem por certo lá mora desde o início é o rododendro de flores brancas e tronco avermelhado descascando-se em tiras que se esconde no bosquete do lado nascente. Rodeado que está por árvores de maior envergadura, e florindo apenas entre Maio e Junho, não espanta que este Rhododendron maddenii seja desconhecido até pelos frequentadores mais atentos do jardim.

À data da inauguração dos jardins do Palácio de Cristal, estava no auge entre a elite portuense o entusiasmo pela jardinagem e pelo coleccionismo botânico. O afamado horticultor José Marques Loureiro, estabelecido na Quinta das Virtudes, publicou o seu primeiro catálogo precisamente em 1865. A diversidade das plantas listadas para venda era simplesmente inimaginável: entre inúmeras outras plantas (árvores, arbustos, palmeiras, herbáceas, fetos...) que não cabe aqui nomear, contavam-se mais de 700 variedades de camélias, 75 de rododendros, cerca de 110 azáleas e umas 250 roseiras.

Na pág. 11 do catálogo, e entre sete "espécies novas" de Rhododendron originárias "do Assam e do Butão", aparece o R. jenkinsii, que hoje é tido como sinónimo de R. maddenii. É pois plausível que Marques Loureiro tenha fornecido o exemplar dos jardins do Palácio. Outros rododendros que ainda hoje se mantêm no recinto poderão ter passado pelas suas mãos, entre eles o vistoso Rhododendron arboreum (chamado Rhododendron windsorii no catálogo), que produz grandes cachos de flores cor-de-rosa no início da Primavera.


Polypodium cambricum num muro da Quinta da Macieirinha
A renovação do Jardim Emílio David provocou um dano colateral que pouca gente terá notado; ou, se notou, por certo não considerou importante. É que o solo debaixo dos bosquetes e junto ao gradeamento, onde crescia uma mistura rala de relva, musgos, flores miúdas e fetos, valia como testemunho da passagem dos anos. Ou, se quisermos puxar da erudição, era uma amostra, ainda que em escala diminuta, do trabalho minucioso do tempo, esse grande escultor. Viam-se lá plantas espontâneas que seriam comuns na região quando havia mais espaço para a natureza, mas que no centro da cidade faziam figura de raridades. Eram prova de que, se lhe dermos tempo (um tempo que se mede em décadas), o que é artificial acaba por ser contaminado pelo que é natural. Eis uma lista incompleta dos emissários da natureza que por lá se haviam instalado: morangueiros (Fragaria vesca), violetas silvestres (Viola riviniana), erva-toira-das-heras (Orobanche hederae), fetos variados (Polypodium cambricum, Athyrium filix-femina, Polystichum setiferum), verónicas (Veronica serpyllifolia), e diversos juncos e ciperáceas (Luzula forsteri, Carex divulsa, etc.). Esse solo velho e ricamente infectado pela natureza foi revolvido e obliterado por novas camadas de substrato com os nutrientes na proporção certa para acolher buxos, gilbardeiras e camélias. Nada temos contra esses recém-chegados, mas o tempo foi rasurado, talvez desnecessariamente, e já não estaremos cá para o ver recuperar as décadas perdidas.

02/04/2015

O lince e a sequóia

Imagine-se que, depois de toda a comoção e efervescência mediática com o retorno do lince-ibérico a Portugal, é chegado o momento de soltar na natureza os primeiros linces criados em cativeiro. Com muitos jornalistas, fotógrafos, operadores de câmara, políticos e biólogos a postos para a ocasião, eis que os bichos que saem das jaulas de transporte, algo sobressaltados por tanta gente à sua volta, são simples gatos domésticos e não os desejados linces. Contudo, não se ouve qualquer reparo. Talvez apenas ao ministro pareça que alguma coisa nas orelhas dos felinos agora postos em liberdade (e que rapidamente desaparecem de vista) não bate certo com as fotos que consultou à socapa na Internet antes de vir para a cerimónia. O ministro, porém, acha prudente calar-se: não lhe cabe pôr em dúvida a competência dos técnicos especializados que ajudaram a criar os alegados linces, e que agora se quedam emocionados vendo-os ir à sua vida. Quanto aos jornalistas, estão ali para propagar a boa nova e não para fazer perguntas impertinentes. E assim acontece: televisões, redes sociais, imprensa escrita — toda a comunicação social, mostrando imagens dos gatinhos, garante que os linces estão de volta a Portugal. Como de costume, há um ou outro São Tomé empedernido que duvida até do que vê, mas felizmente ninguém leva a sério esses poucos incréus que tentam refutar a notícia chamando a atenção para o pormenor das orelhas.

Se um tal episódio de ignorância e credulidade colectivas é manifestamente improvável quando se trata de animais (embora seja comum a confusão entre lobos e cães assilvestrados), já o mesmo não sucede com as árvores. De facto, a história que a Câmara do Porto engendrou à volta do abate e substituição da sequóia-gigante do Jardim do Carregal teve um desfecho não menos burlesco do que a história imaginária do lince-que-afinal-era-gato. Nem sequer faltaram jornalistas para amplificar o dislate. Jornalistas que, quando para ele alertados, responderam com o silêncio que as pessoas de bem reservam aos interlocutores inconvenientes.

A Câmara Municipal do Porto (CMP) não trata as árvores com especial carinho, sendo bem mais lesta a abatê-las (por razões que nem sempre se entendem) do que a substituí-las. As tílias que há três ou quatro anos foram cortadas à frente dos jardins do Palácio de Cristal nunca foram substituídas. Pelo contrário, encheram-se as caldeiras com paralelipípedos. Noutros locais da cidade onde se fez o mesmo (e foram muitos) usou-se cimento ou alcatrão, mas o resultado foi idêntico: desapareceram não só a árvore mas o próprio lugar da árvore. E o modo como a CMP lida com as suas árvores em nada se alterou com a mudança do poder político.

Mas houve uma coisa que mudou. Se ao vereador faltam força política, competência ou vontade para melhorar os serviços sob a sua tutela, já lhe sobra argúcia para entender que, muito mais do que fazer as coisas bem, importa noticiá-las bem. Entre nós, o desvelo encenado pela árvore ou pela natureza, mesmo sendo oco (coisa que nenhum jornalista se dá ao trabalho de averiguar), garante sempre boa imprensa. Em vez de se plantarem as árvores que fazem falta nas ruas que a CMP se encarregou de despir, o vereador determina que será plantada uma só árvore, mas essa árvore e os eventos criados a propósito dela hão-de ser notícia do maior destaque.

E as coisas pareciam correr a preceito. A morte da sequóia-gigante (Sequioadendron giganteum) do Jardim do Carregal e a sua longamente anunciada substituição renderam, só no jornal Público, nada menos que quatro notícias ao longo de 15 meses (1, 2, 3, 4). Era o vereador a lamentar a perda de uma árvore classificada (coisa que ela nunca foi), era a promessa de que seria substituída por outra da mesma espécie, era o painel com a foto da falecida em contra-luz, era a colaboração dos alunos de Belas Artes.

O leitor por certo já adivinhou o desfecho da história. No meio de tanta festa e animação cultural à volta da árvore, ninguém se lembrou de olhar para ela com olhos de ver. No lugar da anunciada Sequoiadendron giganteum (sequóia-gigante), o que mora no Jardim do Carregal desde 19 de Março é mais um exemplar de Sequoia sempervirens (sequóia-sempre-verde). A segunda destas espécies, ao contrário da primeira, é frequente nos jardins do Porto e de outras cidades portuguesas. No próprio Jardim do Carregal há mais uns vinte exemplares de sequóia-sempre-verde, alguns deles a meia dúzia de metros do exemplar agora plantado.

As duas sequóias têm folhagens muito diferentes, e não é preciso ser-se um fino conhecedor de árvores para as distinguir. Isso mesmo é ilustrado pelas fotos que se seguem, tiradas esta semana nos jardins do Carregal e da Cordoaria (é no último que vegeta uma das duas únicas sequóias-gigantes do Porto; a outra está no Parque de Serralves).


Sequoia sempervirens (D. Don) Endl. — plantada em 19 de Março de 2015 no Jardim do Carregal


Sequoiadendron giganteum (Lindl.) J. Buchholz — fotografada no Jardim da Cordoaria

03/02/2014

Tremuras de um feto


Pteris tremula R. Br.


Enquanto imigrantes clandestinos, os fetos têm uma capacidade para passar incógnitos que as outras plantas só podem invejar. E não é por mérito próprio, mas sim pela dificuldade que nós, humanos, temos em distingui-los. Se, num país pouco dado à observação da vida natural, as plantas são, na maioria das vezes, um adereço a que não prestamos atenção, o caso agrava-se desmedidamente quando se trata de fetos, que têm o inconveniente de não florir e por isso quase nunca sobressaem pelo colorido vistoso. Mesmo entre pessoas que professam algum interesse por plantas, não é raro encontrar quem pense que os fetos são todos iguais, ou que no máximo deles haverá duas ou três espécies diferentes.

Os fetos são capazes de se adaptar aos ambientes mais diversos, e também de sobreviver à negligência e ao abandono. Quando o jardim de um palacete arruinado é invadido por silvas em renhida disputa com as demais plantas oportunistas, já sabemos que em poucos anos as flores requintadas e os arbustos exóticos que fizeram o orgulho de gerações de jardineiros se irão perder para sempre. Por vezes nem as árvores resistem ao assalto. Não é incomum, porém, que os fetos, também eles adquiridos a bom preço em algum horto (houve um tempo, há mais de um século, em que os fetos estiveram na moda), tenham artes de se empoleirar nalgum muro e daí procurar poiso menos ameaçado. Quando o matagal tiver sido obliterado pelo betão e convertido em condomínio fechado, já eles estarão a salvo noutras paragens.

É essa a história de vida do Pteris tremula, um feto originário da Austrália, Nova Zelândia e África do Sul, enquanto imigrante na cidade do Porto. Já o vi em jardins decadentes, onde além dele só havia relva porque tudo o resto morrera sem ser substituído. Já o vi a colonizar muros velhos. Por duas ou três vezes tentou crescer nos jardins do Palácio de Cristal: a motosserra dos motojardineiros sempre lhe frustrou os intentos, mas desistir não é com ele. Sem se importar com o trânsito atroador da VCI, encontrou o seu refúgio mais seguro no canteiro de fetos do Jardim Botânico do Porto, e por lá se tem multiplicado livremente.

Dizem que, nos climas tropicais ou subtropicais onde teve berço, o feto-tremedor pode lançar frondes que chegam aos 2 metros de comprimento; mas, no nosso clima e nas condições algo precárias em que por cá é forçado a viver, elas atingem não mais que uns 70 cm. Tal como sucede com todos os outros fetos do género Pteris (entre eles o P. vittata e o macaronésio P. incompleta), o P. tremula ditingue-se pela disposição linear dos esporângios, protegidos pelas margens recurvadas das pínulas (4.ª foto).

28/01/2014

Polipódio gigante


Phlebodium aureum (L.) J. Sm. [= Polypodium aureum L.]


Na faixa litoral do país, que é onde faz a sua vida uma percentagem cada vez maior de portugueses, a geada, o granizo e a neve são fenómenos pouco frequentes. Daí que a queda de granizo em Lisboa seja notícia de destaque em todos os telejornais nacionais, para grande enfado e encolher de ombros de quem vive no interior. Mas o efeito temperador da proximidade do oceano, além de nos privar de um Inverno branco como vemos nos filmes, também possibilita o cultivo em jardins de plantas tropicais que não foram feitas para suportar temperaturas baixas. Não que isso suscite grande entusiasmo aos portugueses, dado o fraco interesse que eles revelam pela jardinagem. Quem visite o Jardim Botânico do Porto, porém, gostará talvez de saber que certas plantas que lá vegetam estão provavelmente no limite das suas capacidades de sobrevivência, dificilmente podendo ser cultivadas ao ar livre a uma latitude superior ou num clima mais continental.

Uma delas é esta versão agigantada do polipódio, um feto rizomatoso que por cá é muito comum, até nas cidades, empoleirado em árvores, muros e telhados. Se o nosso modesto polipódio (de que em Portugal existem três espécies muito semelhantes) já fornece abundante cabeleira suplementar às árvores, não as deixando ficar carecas no Inverno, imaginem o efeito que ele teria se as suas folhas, em vez de uns 20 a 30 cm de comprimento, medissem mais de um metro. São essas as dimensões do tropicalíssimo Phlebodium aureum (já se chamou Polypodium aureum), um feto que, na sua região de origem (costa leste das Américas desde a Florida até ao Paraguai, incluindo Caraíbas), também tem o costume de subir às árvores. No Botânico, por falta de árvores capazes de o acolher, essa vocação para as alturas está ainda por cumprir, e ele deixa-se ficar rente ao chão, algo tolhido pelo frio ocasional.

Ensinam os manuais que este polipódio-gigante se mantém sempre verde em condições de boa humidade, com folhas que podem persistir durante dois anos. É, contudo, capaz de tolerar alguma secura, optando nesse caso por largar as folhas. O nome genérico Phlebodium, proveniente do grego phlebos (= nervuras, veias), refere-se à densa venação das folhas, que forma um reticulado bem distintivo (visível na terceira foto). Já o epíteto aureum é justificado pelo castanho dourado das escamas que revestem o rizoma, e que podem ser vistas nesta foto.

25/03/2013

Mãe galinha


Asplenium X lucrosum Perrie & Brownsey [ = A. bulbiferum G. Forst. X A. dimorphum Kunze]



Junto à entrada dos jardins do Palácio de Cristal, no Porto, mora à sombra das camélias, julgamos que desde sempre, um grande feto muito decorativo, de frondes numerosas, escuras e rendilhadas. Resiste à chuva, ao frio, ao calor e aos maus tratos ocasionais; sobreviveu à instalação do sistema de rega que fez apodrecer as raízes das magnólias; e vai lançando, ano após ano, folhas sempre novas para substituir as que vão secando.

Desvendar a identidade de uma planta possivelmente tão antiga no seu canteiro como as mais velhas árvores do jardim tornou-se-nos imperativo. E o feto apresenta peculiaridades que deveriam facilitar a tarefa. As frondes sofrem de um claro dimorfismo: comparem-se as pínulas largas e achatadas na segunda foto com as pínulas quase lineares nas fotos seguintes. As pínulas largas são estéreis, enquanto que as estreitas são fertéis, com o verso preenchido por uma tira de esporângios (3.ª foto). Outro carácter distintivo é a presença de plantas-bebés produzidas por bolbilhos agarrados à página superior de algumas frondes (última foto): são novas plantas completas, prontas a enraízarem-se quando se soltarem da planta-mãe. Esse comportamento de cada folha funcionar como maternidade, afinal não tão raro no mundo das pteridófitas, acabou por ser decisivo na identificação do feto. Os anglo-saxónicos chamam-lhe mother fern ou hen and chicken fern. É popular em jardinagem e, sendo tão fácil de reproduzir (ele próprio, sem ajuda, se encarrega da tarefa), aparece com frequência no comércio hortícola. Com surpresa por causa do seu porte avantajado, embora a disposição linear dos esporângios esteja de acordo com o normal no género, aprendemos que se trata de um Asplenium: de seu nome completo A. bulbiferum, é originário da Nova Zelândia, Austrália e (segundo algumas fontes) de grande parte da Ásia.

Acontece que esta história, repetida em vários guias de identificação de plantas, está cheia de equívocos que só foram cabalmente esclarecidos em artigo publicado em 2005, na revista Plant Systematics and Evolution, por três botânicos neo-zelandeses: L. R. Perrie, L. D. Shepherd e P. J. Brownsey (veja também aqui). Concluíram os autores que a planta habitualmente cultivada em jardins e vendida um pouco por todo o mundo como Asplenium bulbiferum é na verdade um híbrido estéril, produzido talvez acidentalmente em Inglaterra durante o século XIX, que terá resultado do cruzamento do verdadeiro A. bulbiferum com o A. dimorphum. Estas duas espécies, apesar de geneticamente próximas, nunca teriam oportunidade de produzir um híbrido em condições naturais, pois a primeira é endémica da Nova Zelândia (não tem a ampla distribuição que alguns lhe atribuem) e a segunda da ilha australiana de Norfolk. Curiosamente, o híbrido que durante tanto tempo usurpou o nome de A. bulbiferum é mais cultivado do que o seu progenitor até na própria Nova Zelândia, onde chegou a ser usado em programas de regeneração de espaços naturais. Os estragos resultantes do erro não foram irreparáveis porque a esterilidade da planta, que só lhe permite reproduzir-se por bolbilhos, a manteve confinada a áreas relativamente pequenas. Morfologicamente, o híbrido é uma média perfeita dos seus dois pais, herdando de cada um deles uma característica crucial e distintiva: o dimorfismo foliar veio do A. dimorphum, e a produção de bolbilhos do A. bulbiferum.

O epíteto lucrosum com que os autores do artigo baptizaram o até então mal identificado feto presta jocosa homenagem às qualidades comerciais de uma planta cultivada em cinco continentes. Em Portugal, porém, a sua venda dificilmente seria negócio lucrativo, e por isso os bolbilhos das plantas do Palácio estão a salvo da nossa cobiça.

25/01/2013

Reviver em Cádiz


Christella dentata (Forssk.) Brownsey & Jermy [= Cyclosorus dentatus (Forssk.) Ching]



Qual a importância de preservar populações naturais de plantas amplamente cultivadas ou que subsistem livres de ameaças noutras paragens? A primeira resposta é de ordem quase emocional. Gostamos de acreditar que aqui e ali, mesmo no mais civilizado dos continentes, existem retalhos de natureza mais ou menos intocados, em que plantas e animais se mantiveram por milénios, indiferentes ao cerco que lhes foi montado pela espécie humana. A erradicação local de espécies é um rombo nessa visão ingénua, dir-se-ia desesperadamente idílica, da imutabilidade da natureza. Alguma da mais valorizada biodiversidade europeia está ligada a práticas humanas ancestrais de agricultura, pastoreio e silvicultura. Um lameiro, que é um habitat artificial, pode ser mais rico em espécies vegetais do que um bosque de velhos carvalhos. Não será então para preservar a "natureza no seu estado puro", como dizem os maus textos de promoção turística, que insistimos na sobrevivência das populações silvestres ameaçadas. Mais correcto será falar da preservação da diversidade genética. As plantas cultivadas representam, em geral, apenas uma fracção ínfima do património genético de cada espécie. Há casos em que todas essas plantas são clones umas das outras, tornando-se altamente susceptíveis a pragas e doenças; para descobrir novas variedades mais resistentes, é imprescindível recorrer às populações espontâneas. Outro aspecto da diversidade genética é o de, por exemplo, um carvalho-roble (Quercus robur) em Portugal não ser idêntico às árvores da mesma espécie que crescem noutros países da Europa, ou até noutros pontos do país. Para evitar a poluição genética, as campanhas de reflorestação de espaços naturais devem sempre usar árvores obtidas a partir das que já existem no local.

A Christella dentata, que hoje ocupa o escaparate, foi fotografada no Jardim Botânico do Porto, onde vegeta, plena de vigor, em lugar umbroso continuamente atroado pelo trânsito da VCI. Também há notícia do seu cultivo na Estufa Fria, em Lisboa. É um bonito feto que só tangencialmente faz parte da flora europeia: existe ou existia apenas em Creta, na Galiza e na Andaluzia. Na Galiza já se extinguiu; e na Andaluzia (ou mais precisamente no Parque Natural dos Sobreirais [= Alcornales], em Cádiz) quase tinha o mesmo destino, mas houve gente perspicaz e dedicada que o fez regressar à vida (história completa aqui). No resto do planeta a sua sorte é bem diferente, pois encontra-se espalhado por regiões tropicais ou sub-tropicais de mais quatro continentes: África (incluindo Madagáscar), Ásia (Índia, China e Japão), Oceânia (Austrália e Nova Zelândia) e América (onde está naturalizado na faixa que vai do sudoeste dos EUA ao norte da Argentina). Em vários pontos do globo a desmatação das florestas indígenas criou condições para que a Christella dentata seja hoje mais abundante que nunca. Na Madeira e nos Açores, onde também ocorre, há dúvidas sobre se a sua presença é espontânea ou se se deve ao cultivo em jardins. Rui Teles Palhinha, em artigo de 1943 sobre os Pteridófitos do arquipélago dos Açores, assinala que a presença deste feto (a que o autor chama Dryopteris dentata) em quase todas as ilhas do arquipélago (a excepção é o Corvo) o leva a admitir que ele não seja introduzido. Desde então não parece ter sido feito nenhum estudo que esclarecesse o assunto. Hanno Schäfer, no seu Flora of the Azores — A Field Guide (2.ª edição, 2005), opina que nos Açores o feto é exótico; mas, na Checklist da Flora de Portugal, ele é considerado nativo tanto da Madeira como dos Açores.

Como se adivinha pelo facto de os dois já terem integrado o mesmo género, a Christella dentata, que tem frondes que podem chegar a um metro de comprimento, apresenta algumas semelhanças com o feto-macho (Dryopteris filix-mas ou D. affinis). A diferença mais evidente é que, ao contrário do que sucede nesse feto (conferir aqui), na C. dentata duas pínulas contíguas estão separadas apenas até cerca de metade da profundidade; além disso, a venação tem um desenho peculiar, ligando-se sem quebras de uma pínula à seguinte (ver foto 6). E a C. dentata tem um aspecto felpudo que o feto-macho não compartilha.

Em jeito de conclusão, diga-se que o resgate in extremis da Christella dentata andaluza foi um feito conservacionista da maior importância, uma daquelas coisas que nos alimentam a esperança. Em contrapartida, o cultivo da espécie em jardins botânicos ou em jardins particulares não tem qualquer significado ou impacto na conservação de uma espécie que, globalmente, atravessa um período próspero. Se não tivesse sido possível recuperar a população de Cádiz, ninguém se lembraria de lá introduzir plantas cultivadas de outra origem. De modo semelhante, ter um azevinho ou um teixo no jardim não resolve nem alivia o problema (grave no caso do teixo) da conservação dessas espécies na natureza. Apenas satisfaz o nosso legítimo desejo de nos rodearmos de coisas belas.

09/04/2012

Cabrinhas no Prado

Davallia canariensis (L.) Sm. epífita em Melia azedarach L. no cemitério do Prado do Repouso (Porto)
Cabrinhas & caracóis
Evocação do poeta e naturalista Augusto Luso (1827-1902) 
— texto originalmente publicado no Casal das Letras

Na freguesia de Cedofeita, no Porto, há dois liceus que distam 400 metros um do outro: o Rodrigues de Freitas, que noutros tempos era só para rapazes, e o Carolina Michaëlis, que era só para meninas. É uma distância para fazer toda em linha recta, não fossem as pequenas correcções de trajectória a que obrigam os seis lanços de escadaria no final. A rua que possibilita o rápido trânsito do masculino ao feminino tem o nome de Augusto Luso: poeta e professor 1827-1902, é o que diz a placa. Nada mais apropriado do que homenagear um professor com uma rua que liga duas escolas.

A imortalidade toponímica é algo ingrata, pois uma rua não é um compêndio de história e não guarda memória de feitos nem de obras publicadas. Custa a crer que certos nomes petrificados em placas de ruas tenham pertencido a gente de carne e osso. Mas de Augusto Luso – de seu nome completo Augusto Luso da Silva, e que também se assinou A. Luso, A. Luso da Silva ou simplesmente Luso – é possível, graças à Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e a outras obras de referência, conhecer o essencial da vida e obra. Podemos até, nas páginas do portal TriploV, ler uma boa amostra do que escreveu em prosa e e em verso sobre, por exemplo, caracóis e ornitorrincos. Se a isto juntarmos que Augusto Luso foi professor de geografia e autor de compêndios para o ensino, compreendemos que ele não foi um literato convencional. O seu estudo pioneiro sobre moluscos terrestres e fluviais de Portugal, publicado em fascículos entre 1868 e 1872, é ainda hoje citado por malacologistas.

Outra prova de que Augusto Luso foi um naturalista sério e minucioso está no Herbaryum Cryptogamicum do Porto e seus arredores, aparecido em 1872 e 1873 (volumes III e IV) no Jornal de Horticultura Prática, influente revista mensal sobre jardinagem e agricultura que se publicou no Porto entre 1870 e 1892 (e que está disponível on-line neste endereço). Confessa o autor no preâmbulo que a sua ambição era fazer um levantamento do país inteiro, mas, por lhe faltarem apoios, vê-se limitado aos arrabaldes da sua cidade. Ainda assim, a lista de fetos, musgos, hepáticas, líquenes e algas por ele herborizados ultrapassa a centena de espécies – e, pelo menos nos fetos (dos outros nada sei dizer), inclui quase todos aqueles que são hoje conhecidos, alguns sob outros nomes, como espontâneos na região do Porto. De cada planta, o autor faz uma breve descrição e indica alguns locais de ocorrência. É talvez o primeiro texto em língua portuguesa que torna acessível a leigos aquilo que estava confinado a tratados científicos como a Flora Lusitanica (1804) de Brotero e a Flore Portugaise (1809-1840) de Hoffmannsegg & Link.

Se o fascínio por lírios, narcisos e outras plantas vistosas é facilmente contagiante, já o mesmo não se pode dizer de fetos, musgos e afins; e, ao contrário do que sucede com pássaros, observar lesmas ou caracóis nunca foi uma ocupação com muitos adeptos (comê-los já será outra história). Valorizar a natureza para além de uma concepção estreita do que é «belo» ou «útil» para nós, humanos, é um passo que ainda hoje muitos são incapazes de dar. Eis o que escrevia Augusto Luso em 1872: Assim como, entre os animais do nosso país, os moluscos e, principalmente, os terrestres e fluviais, são ignorados de quase todas as pessoas, da mesma sorte as Criptogâmicas não são mais conhecidas entre os vegetais, que enriquecem e adornam o nosso Portugal. Desejando eu conhecê-las e dá-las a conhecer, forçoso me era uma exploração e uma classificação.

Está bom de ver, portanto, que Augusto Luso não demandou Áfricas. De facto, não foi além de Aguiar de Sousa e de Avintes: o seu âmbito de exploração cabe num raio de 13 quilómetros em redor do Porto. Mas, além de a observação e recolha de plantas exigirem tempo e paciência, viajar no terceiro quartel do século XIX não era o mesmo que fazê-lo hoje. Augusto Luso fala do vale do rio Ferreira, em Valongo, como se reportasse as maravilhas de um lugar longínquo: Se não fora outro o meu fim e o temer abusar da paciência dos leitores, descreveria, como pudesse, alguns destes sítios, magníficos e surpreendentes quadros, escondidos à maior parte das pessoas, convidando-as ao passeio, aonde o belo horrível do despenhadeiro, às vezes se apresenta, trazendo sempre o sublime. Sendo ele porém um poeta, não pede licença aos leitores para encabeçar a sua listagem com um intróito de 14 quadras em verso decassilábico. Eis uma delas:

Cresce a alegre Davallia nos rochedos
Sobre os rios pendentes, e fendidos
Pela força do gelo. Eis reunidos
Gratos Aspídios e Asplénios ledos.

Não podíamos estar mais longe da aridez impessoal que hoje é de lei em artigos científicos. E impõe-se a pergunta: que é feito da alegre Davallia, dos Asplénios ledos, dos gratos Aspídios? Em geral estão bem e recomendam-se. Os fetos do género Asplenium são dos mais comuns em muros e fendas de rochas de norte a sul do país. Os Aspídios também se vêem muito, mas mudaram de nome: um deles, vulgarmente conhecido por fentanha, chama-se agora Polystichum setiferum; outros, como o feto-macho, integram o género Dryopteris. São fetos que lançam tufos de longas folhas arqueadas, às vezes com mais de um metro de comprido, e que vivem em bosques sombrios e junto a linhas de água. Quem perdeu grande parte da alegria foi a Davallia canariensis, que Augusto Luso considerava, numa apreciação ainda hoje consensual, como «o mais formoso feto do nosso país». Conhecido por feto-dos-carvalhos (por gostar de se empoleirar nessas árvores) ou cabrinha (por causa do rizoma lenhoso revestido de escamas bronzeadas), as suas folhas lembram os naperons de renda com que as nossas avós enfeitavam cristaleiras. A cabrinha é espontânea na Península Ibérica, Marrocos, Madeira e Canárias; e, ainda que no continente português seja escassa e esteja confinada ao litoral, chega a ser abundante na serra de Sintra e em alguns velhos carvalhais do Alto Minho. Nos rochedos pendentes sobre o rio Sousa ou o seu afluente Ferreira é que ela já pouco salta. As serras em volta converteram-se em eucaliptais, o bucolismo foi ferido de morte por postes de alta tensão e viadutos de auto-estrada. Mas o desfiladeiro da Senhora do Salto, em Aguiar de Sousa, ainda é capaz de provocar arrepios; e, se varrermos as medonhas escarpas com um par de binóculos, encontramos aqui e ali o inconfundível recorte das folhas da Davallia, cabrinha feita águia no seu último e inacessível refúgio.

Um reencontro difícil que remata esta evocação de Augusto Luso, nome de rua, naturalista, poeta romântico e professor de geografia. Talvez ele gostasse de saber que a cabrinha, se quase desapareceu de Valongo nos 140 anos decorridos desde a publicação do seu Herbaryum Cryptogamicum, teve contudo artes de se instalar – resultado provável do seu uso em arranjos florais – em meia dúzia de árvores em Agramonte e no Prado de Repouso, os dois maiores cemitérios do Porto.

Porto, 2 de Abril de 2012

09/06/2011

Azul intermitente

Veronica serpyllifolia L.
No ano passado descobri esta verónica camuflada entre a relva do Parque das Virtudes, no Porto. Quando quis lá voltar na Primavera para a fotografar em melhores condições encontrei o portão fechado. O vigilante, com indisfarçável regozijo por fazer valer a sua pequena autoridade, não me deixou entrar. Explicou que o parque estava fechado porque tinha caído uma palmeira: de facto, a falta da Washingtonia filifera era tão notória como um sorriso com um dente a menos. A palmeira caída já havia sido retirada, e era estranho que a sua ausência fosse perigosa a ponto de obrigar ao encerramento do espaço, mas com vigilantes que cumprem ordens não adianta discutir. Além do mais, confiou-me ele cheio de misteriosa importância, o Parque estaria à espera de «projecto». Encolhi os ombros, pois já é hábito o Parque das Virtudes encerrar com razão ou sem ela durante meses ou anos. Quase ninguém lá vai, por isso o impedimento não é muito notado. Talvez entretanto já tenha reaberto, e deste «projecto», como de todos os outros «projectos» anteriores, só tenha sobrado uma vaga intenção sem data marcada.

Julgava pois que a verónica, morando do lado de lá dos portões trancados, me tinha fugido de vez. Mas não a haveria também noutros relvados mais acessíveis? Uma breve inspecção aos jardins das proximidades, desde o Palácio de Cristal à Praça da Galiza e aos palacetes do Campo Alegre, deu-me como resposta um enfático sim. A verónica-de-folhas-de-tomilho está firmemente estabelecida nos relvados dos jardins portuenses. Tem é uma vida intermitente, como todas plantas que colonizam relvados. De três em três semanas, lá vem a brigada dos cortadores de relva (seria descabido chamar-lhes jardineiros) apará-las à escovinha; nesse curto intervalo, as plantas têm que levantar o pescoço, florir e frutificar. Quem conseguir apanhá-las pouco antes de mais uma carecada, pode detectar as verónicas pelo contraste do verde da relva com as manchas azuis formadas pelas minúsculas flores (que têm cerca de 7 mm de diâmetro).

A Veronica serpyllifolia é uma planta vivaz, nativa de Portugal e de grande parte do hemisfério norte (Europa, Ásia e América). Além de frequentar relvados, também se encontra em certos ambientes naturais de montanha, como sejam bosques e margens de regatos.

05/03/2011

XVI Exposição de Camélias do Porto



No próximo fim-de-semana, dias 12 e 13 de Março, terá lugar na Galeria do Palácio (Biblioteca Almeida Garrett, jardins do Palácio de Cristal) a tradicional Exposição de Camélias do Porto, agora na sua 16.ª edição. Trata-se de uma organização conjunta da Associação Portuguesa das Camélias e da Porto Lazer, E.M. O evento abre ao público às 14h30 de sábado, fechando nesse dia às 20h00. No dia seguinte, domingo, mantém-se aberto entre as 10h00 e as 18h00. (Além de admirar as flores em exposição, o visitante esclarecido não deixará de percorrer demoradamente os jardins, onde, a juntar às muitas que já existiam, foram em anos recentes plantadas dezenas de novas camélias.)

20/01/2011

Estrela com escamas

Aster squamatus (Spreng.) Hieron. [= Symphyotrichum squamatum (Spreng.) G.L.Nesom]
As estrelas caídas gozam de elevada reputação no reino vegetal. Afinal são elas, as plantas do género Aster (palavra latina que significa estrela), que dão nome à maior família botânica à face da Terra, composta por quase 23.000 espécies. São, por assim dizer, generais de um magno exército — ou, para quem não goste de comparações bélicas, líderes de uma grande e pacífica irmandade. E ao prestígio do comando juntam o lustro da beleza, como exemplifica o Aster tripolium do nosso litoral. A mesma garbosidade, já um pouco tingida de afectação, é patente em plantas cultivadas como este Aster amellus.

Vem a propósito comentar as declarações botânico-chauvinistas do americano Donald C. Peattie (1898-1964) transcritas pela nossa vizinha. Mesmo não atendendo à sua substância, há duas ideias profundamente erradas na frase «Europe has no asters at which an American would look twice». A primeira é a aplicação do conceito de nacionalidade às plantas. Dizer que uma planta é americana ou europeia é fornecer uma simples indicação geográfica, e é bem diferente de dizer que certa pessoa é americana ou europeia. As plantas não juram pela constituição americana nem defendem a unidade europeia. Não são patriotas, não sabem o que é um país, não respeitam fronteiras. Tudo isso são convenções para uso estrito da espécie humana. Do mesmo modo, valorar as plantas pelos nossos voláteis e subjectivos conceitos de beleza é por certo desculpável num jardineiro, mas não em alguém que se afirmou como naturalista. As flores não existem para nos agradar, e a sua importância na natureza não deve ser medida por padrões estéticos. E há os pormenores subtis que só se apreendem quando se educou o olhar, e que são uma forma menos imediata de beleza. Por que há-de um feto ser menos do que uma orquídea? Ou, retomando a sentença de Peattie, por que há-de um Aster «europeu», só porque não é tão vistoso, ser menos do que um Aster «americano»?

Entende-se, portanto, que seria um despropósito embarcarmos na defesa das plantas europeias face às americanas. Sabendo, aliás, que na América há centenas de espécies de Aster, e que na Europa elas não chegarão às duas dezenas, compreendemos que não seja necessário a um americano atravessar o Atlântico para ver estas plantas no seu habitat. Porém, se cá vier, não perderá nada em olhar para elas.

Acontece que o Aster de hoje — o qual, se não fosse a doutrina que preventivamente expusémos, desdenharíamos como pouco gracioso — não é nativo da Europa, embora por cá abunde em terrenos ruderais ou salgados. De facto, a sua presença em sapais (estuários do Cávado e do Douro, ria de Aveiro) começa a ser suficientemente notória para ele merecer o estatuto de invasor indesejável. Indesejável não por ser «feio» (também não será de uma beleza cativante, pese embora a sua origem americana), mas por tirar espaço às plantas autóctones.

Proveninente da América Central e do Sul, o Aster squamatus é uma planta anual ou bienal, glabra, com folhas lanceoladas, hastes erectas que podem atingir um metro de altura, e capítulos florais de 6 a 8 mm de diâmetro. O exemplar acima, com uma floração um pouco fora de época (ela vai em regra de Agosto a Janeiro, as fotos são de Fevereiro), morava clandestinamente no Jardim Botânico do Porto.

03/01/2011

Memórias de um feto


Pteris vittata L.


FÉTOS, E LYCOPODIOS. Lindissima planta vivaz que a moda tem entroduzido para adorno das sallas, pela elegância e colorido de sua rica folhagem — a maior parte são entroduzidas dos paizes tropicaes, e carecem de resguardo nos nossos invernos. (in Catálogo n.º 1Estabelecimento de Horticultura de José Marques Loureiro, 1865)

Por que será que num jardim, lugar de eleição do exotismo vegetal, as plantas exóticas que se propagam sozinhas, ocupando recantos inesperados, nunca são bem vistas? Talvez seja efeito da moda, fraqueza a que a jardinagem pode ser tão susceptível como o pronto-a-vestir. Houve um tempo em que aquele arbusto, vendido em todos os hortos e viveiros, era uma peça de ostentação de que qualquer jardim se orgulharia. Agora, porém, há outras novidades holandesas que reclamam a sua vez nos canteiros, e ao velho e ultrapassado arbusto resta ser transformado em lenha. Nessas condições, é algo irritante que ele tenha criado descendência, proliferando caoticamente no jardim e fora dele. É como uma senhora ter envergado ao sair de casa um tailleur de corte impecável e descobrir-se de repente no meio da rua com o xaile da avó pelos ombros.

Há que reconhecer, no entanto, que episódios destes só são possíveis onde a jardinagem é levada mais a sério do que em Portugal. Por cá, e sobretudo na jardinagem pública, não há modas, mas apenas um alastrar do esquecimento. As plantas não são retiradas para darem lugar às últimas novidades: simplesmente desaparecem e são esquecidas. Nos canteiros renovam-se trimestralmente as plantas sazonais, sempre as mesmas ano após ano, e quanto a novidades estamos conversados.

O Pteris vittata, um feto que desponta ocasionalmente nos velhos muros dos jardins do Palácio e das ruas circundantes, é uma relíquia da época em que a jardinagem portuense era coisa séria. Foi um tempo que atingiu o seu auge com José Marques Loureiro (1830­-1898) e que teve o seu fim simbolicamente assinalado pela demolição do Palácio de Cristal em 1951. Um feto que não é espontâneo em Portugal (embora o seja nalguns países da Europa mediterrânica, incluindo o sul de Espanha), que não é vendido em nenhum garden center, que não é cultivado em nenhum jardim — um tal feto só pode ter surgido naqueles muros vindo de outra época. Uma época em que a curiosidade pelas plantas e o desejo de experimentar moldavam tanto a jardinagem pública como a privada.

E ele só se aguentou estes anos todos porque é prolífero e de esporulação precoce. Cada indivíduo tem três ou quatro meses de esperança de vida antes de os jardineiros o arrancarem do muro: nesse curto prazo, tem que garantir a perpetuação da espécie. O exemplar acima fotografado, por exemplo, já não existe. Se o tivessem deixado crescer, as suas frondes poderiam ter atingido um metro de comprimento; assim, ficaram-se pelos 20 ou 30 centímetros.

Os dois sinais particulares que permitem identificar facilmente o Pteris vittata estão bem patentes nas fotos: o folíolo terminal muito mais comprido do que os restantes, e os esporângios dispostos linearmente e protegidos pelas margens dobradas. Esta última característica é partilhada pelos demais fetos do género Pteris, de que há 250 espécies mas apenas três europeias.