24/11/2023

Giesta ressuscitada



Embora nos desagrade a ideia, é bastante provável que, se os humanos desaparecessem da Terra, parte do planeta rejubilaria, recuperando do impacto nocivo da nossa estadia. Não ignoramos que a destruição de inúmeros habitats e a extinção de várias espécies se devem sobretudo ao péssimo uso que fazemos da nossa casa comum. Por isso, face a uma tempestade de proporções inéditas, tememos que seja a natureza, por essa via, a castigar-nos pelos nossos excessos, tentando expulsar-nos daqui. Nesses momentos de pânico, juramos que iremos poluir menos, cuidar melhor das florestas, proteger as fontes de água, implementar programas eficazes de preservação do ambiente, combater a desinformação e manter sob vigilância todos os infractores. Claro que, mal chega a bonança, das promessas só resta a notícia delas nos jornais, que assim as recriam, para os mais desatentos, como juras cumpridas. Tudo em vão, portanto? Nem sempre.

Genista benehoavensis (Bolle) del Arco


A leguminosa das fotos é um endemismo das Canárias e a única espécie conhecida do género Genista neste arquipélago. A sua distribuição restringe-se à metade norte da ilha de La Palma, entre os 2000 e os 2500 m de altitude, em ladeiras escarpadas e soalheiras da caldeira do vulcão Taburiente e redondezas. Esteve há uns anos quase à beira da extinção. Sendo estes arbustos (de 2 a 4 metros de altura) tão vigorosos e ramificados, soa estranho que as cabras, os coelhos, a ventania e os deslizamentos de terra os conseguissem dizimar. Mas não custa acreditar que a acção conjunta destes elementos, a par dos incêndios, seja capaz de destruir a maioria dos indivíduos novos e impedir a fixação em solo favorável das sementes, já de si lentas a germinar. Mais alguns anos sujeita a estas ameaças, e esta giesta teria desaparecido de La Palma.

Contudo, um programa de recuperação na caldeira do Taburiente, criando cercas de protecção, refazendo taludes, reintroduzindo a planta em locais propícios, vigiando os exemplares menos bem desenvolvidos e controlando a presença de herbívoros, conseguiu inverter o declínio desta espécie. Contam-se hoje mais de 3 mil indivíduos maduros, que no Verão florescem abundantemente. As fotos de detalhes morfológicos destas plantas foram mais difíceis de obter por causa das vedações, mas no Roque de los Muchachos o número de indivíduos não plantados e fora de resguardos é, felizmente, já significativo.

Notem como as folhas destas plantas são sésseis e elípticas, e como as flores amarelas e solitárias se agrupam nos ápices dos ramos. Isto é o usual no género Genista. Todavia, reparem também na textura sedosa, prateada por tanta penugem, dos ramos, cálices e exterior dos estandartes e quilhas. Estas primas do arranha-lobos nem um gatinho machucariam.

13/11/2023

Arroz cristalizado

Montes de Luna — La Palma, Canárias
O género Monanthes — que, descontando uma espécie nas Selvagens, é exlusivo das Canárias — tem muitas qualidades para merecer o apreço de quem gosta de cultivar suculentas em casa. Sobretudo se a casa for pequena, pois até numa embalagem de iogurte é possível acomodar estas miniaturas. Talvez os detalhes delicados das pequenas jóias que são as flores (de uns 4 a 8 mm de diâmetro) só à lupa se apreciem com justeza, mas o efeito de conjunto é de uma harmonia e simetria inegáveis. Para completar o mostruário que há quatro anos dedicámos ao género, trazemos duas espécies de méritos desiguais, fotografadas nos seus habitats nas ilhas de que são endémicas: a primeira (Monanthes subrosulata) em La Palma, a segunda (Monanthes anagensis) em Tenerife. Ambas são desprovidas de rosetas basais (nisso contrastando com a M. polyphylla, talvez a favorita dos coleccionadores) e apresentam caules ramificados rastejantes ou às vezes pendentes, com as folhas carnudas dispostas em espiral.

Monanthes subrosulata Bañares & A. Acev.-Rodr.


É improvável que a Monanthes subrosulata ganhe concursos de beleza ou atraia o interesse dos aficionados por suculentas, mas deve ressalvar-se que não a fotografámos no seu melhor momento. Vivendo no sul de La Palma, na zona mais árida da ilha, resguarda-se do sol inclemente procurando fendas de grandes rochas vulcânicas. Como precaução adicional, usa os meses mais frescos do ano para florir e frutificar, e em Maio, com as tarefas reprodutivas já cumpridas, mostra-se quase petrificada, como se fosse feita da mesma rocha que lhe serve de casa (quem quiser vê-la com melhor cara pode espreitar esta foto). As folhas rugosas, cobertas de papilas proeminentes, parecem arroz cristalizado, e não permitem confundir esta espécie com nenhuma das suas congéneres. Contudo, ela foi apenas baptizada em 2013, muitos anos depois das restantes espécies do género, a maioria das quais foi descrita ainda durante o século XIX.

Monanthes anagensis Praeger


Se para uma em Maio o ano já acabou, para a outra mal começou. À M. subrosulata chegámos tarde para ver as flores, e à M. anagensis chegámos cedo, mas em ambas as ocasões viajámos no início de Maio. Não haverá outros meses no calendário para visitar as Canárias? Como o nome indica, a M. anagensis vive no maciço de Anaga, no extremo norte de Tenerife, beneficiando da frescura e da sombra da laurissilva: mesmo que não chova, há sempre a humidade trazida pelo nevoeiro e captada pelo arvoredo. Quem quiser observar a planta sem se estafar em caminhadas pode parar o carro em algum dos miradouros da serpenteante estrada de Chamorga e inspeccionar os taludes rochosos. Não precisa de muita sorte para dar com ela: os seus caules pendentes, com folhas estreitas de formato elíptico tingidas de vermelho, formam densos tapetes que se estendem por muitos metros. É bonita de se ver mesmo que não esteja em plena floração, e de facto parece sempre florir com parcimónia. Com alguma paciência, se a visita for entre Maio e Julho, lá se conseguirá ver uma ou outra florita despontando entre a folhagem.

06/11/2023

Orégão de enganar

O mundo tem andado com o pano de fundo bastante esborratado. Sem arte para repintar o planeta, são muitos os que ponderam, opinam, alertam e inquietam os demais sobre o que vai mal, como piorará e já não tem remédio. Por isso, continuemos nós a conversar de flores: as plantas estão habituadas a ser observadas e nós precisamos do sossego delas. Dirão alguns que é um momento impróprio para gastar tempo a nomear folhas e fotografar paisagens — que é essencialmente o que sobra lá fora depois das tempestadas recentes —, e ainda apreciar descaradamente esse privilégio. Têm razão, claro.



aqui escrevemos sobre o género Bystropogon, endémico dos arquipélagos da Madeira e das Canárias. Mostrámos então fotos do B. canariensis e mencionámos as duas espécies deste género endémicas da ilha da Madeira, B. maderensis e B. punctatus. São ambos arbustos pequenos, perenes e raros, que vivem em zonas húmidas na orla da floresta laurissilva e têm fortes parecenças entre si, na folhagem, na vilosidade e nas panículas ramificadas de flores pequeninas.

As Canárias, bafejadas que foram com maior diversidade botânica, contam com cinco espécies endémicas e outras tantas subspécies de Bystropogon. O que vos mostramos hoje é um endemismo de La Palma, fotografado em Maio no sul da ilha, na base do vulcão de San Antonio.

Bystropogon origanifolius var. palmensis Bornm.


Ao longe, parecia um exemplar bem desenvolvido (mais de 1 metro de altura) de orégão com uma nuvem em cima. Já perto, confirmámos que as folhas tinham o aroma inconfundível do orégão, mas algo não batia certo: o orégão não tem as sépalas (folhas modificadas que protegem as flores e os frutos de predadores, da seca e de outros desastres) penugentas, espinhosas e estreladas. Nesse pormenor, a planta que víamos era mais parecida com o tomilho Thymus mastichina. Esta hesitação em posicionar este arbusto numa lista de flora conhecida não foi todavia só nossa. Julgou-se outrora, com base em semelhanças morfológicas, que o género Bystropogon seria parente de outro da América do Sul — um indício interessante de colonização da Macaronésia pelo continente americano. Contudo, estudos genéticos mais recentes, com o objectivo de estabelecer o parentesco e origem deste género, foram inconclusivos: parece que o Bystropogon tem família próxima também na Europa e em montanhas de África. Como todos nós, aliás.