25/04/2022

Sapinho fimbriado



A ilha de Fuerteventura tem uma espinha dorsal montanhosa que, por ser intermitente e de altura moderada, não representa obstáculo sério à deslocação entre a costa oriental, virada para África, e a costa ocidental aberta ao infinito azul. As estradas esquivam-se agilmente por vales e planícies, servindo o recorte das montanhas para proporcionar um horizonte menos monótono a quem por elas transite. Com poucas excepções, os cumes mais escarpados não têm acesso por estrada, e quem queira ascender a eles terá que se lançar em caminhadas que o calor e a falta de sombra podem tornar penosas. A montanha Cardón, erguendo-se acima dos 660 metros de altitude, está situada a sul da vila de Pájara, e é a última elevação importante antes do istmo arenoso que faz a ligação à península de Jandía. Subindo por um trilho não muito declivoso, são apenas dois quilómetros para chegarmos a uma pequena ermida encravada na vertente oeste da montanha, num lugar onde as paredes rochosas ressumam uma humidade permanente. É o toque de reunir para umas tantas plantas de outro modo incapazes de sobreviver à aridez das encostas circundantes. Até a avenca (Adiantum capillus-veneris), que tão bem conhecemos de muros e fontes em latitudes mais benignas, teve a arte e ousadia de aqui se instalar. A ela se juntam pequenas amostras de vegetação endémica, com destaque para o malmequer arbustivo Asteriscus sericeus e para a crucífera Crambe sventenii, nenhum dos dois com disposição para florir no período natalício, o da nossa visita a Fuerteventura. Lá em cima, na crista rochosa a que só chegaríamos, e com esforço redobrado, se tivéssemos tomado outro trilho, a cobertura vegetal anunciava-se mais rica — valeria bem a visita em época do ano mais propícia, mas desta vez reservámos todo o nosso fôlego para a subida ao pico da Zarza.

Spergularia fimbriata Boiss. & Reut.


Sapinho é o nome comum em português para as plantas do género Spergularia e outras com elas aparentadas. São plantas rasteiras, com folhas lineares, carnudas, e flores pequenas, de cinco pétalas, em tons que vão do branco ao rosa ou ao roxo. Em Portugal continental, a Spergularia purpurea é muito frequente em sítios secos e pedregosos, aparecendo até em caminhos e outros sítios pisoteados; em rochas de beira-mar, surge a S. rupicola (ou, se estivermos nos Açores, a S. azorica); em sapais e estuários, aparecem a S. media e a S. marina.

Embora preferíssemos ter encontrado maior variedade de plantas floridas, foi reconfortante que tenha sido um sapinho a dar um fugaz apontamento de cor à nossa subida à montanha Cardón. Com base lenhosa e flores de um rosa vivo, a Spergularia fimbriata distingue-se facilmente das suas congéneres com que estamos familiarizados, não deixando de ser óbvia a sua inscrição na mesma linhagem. Dessa vez vimos apenas um exemplar, mas é de supor que mais houvesse a altitudes mais elevadas, e atestando isso mesmo a planta novamente se deixou ver (não em flor) no pico da Zarza. É provável, assim, que em Fuerteventura a espécie se restrinja aos picos montanhosos, mas nas outras ilhas onde ocorre (Tenerife, Grã-Canária e Lanzarote) a sua ecologia diversifica-se, e a planta surge também em zonas de baixa altitude próximas da costa.

A S. fimbriata não é exclusiva das Canárias, pois tem presença reportada em Marrocos e na Península Ibérica. De facto, ela integra oficialmente a flora portuguesa, por ter sido, em várias ocasiões (todas remontando à década de 80 do século passado), encontrada nas Berlengas e na Ria Formosa. É de recear que esteja extinta no nosso país, mas, se não for esse o caso, talvez um controlo mais empenhado do chorão (Carpobrotus edulis) nas Berlengas possibilite o seu reaparecimento.

17/04/2022

Fim da estação

Cansado de perder suas folhas, o camaleão saiu de cima do outono.
Marina Colasanti, Hora de alimentar serpentes (Global Editora, 2013)

05/04/2022

A soagem que não quis crescer

Echium bonnetii Coincy


Os arquipélagos atlânticos das Canárias e da Madeira têm a fama de proporcionar às plantas com vergonha de serem pequenas as condições ideais para se tornarem grandes. O género Echium foi dos que melhor proveito souberam tirar desse programa de agigantamento; e, na era em que nos calhou viver, são às dezenas as espécies que dão testemunho desse sucesso: entre as nossos favoritas contam-se o Echium portosanctensis (do Porto Santo), o E. famarae (de Lanzarote e Fuerteventura) e o E. wildpretii (de Tenerife). Contudo, seja por azar, inabilidade ou espírito de contradição, há sempre quem fique para trás. Das muitas espécies de Echium endémicas das Canárias, há três ou quatro herbáceas que, na envergadura, não excedem a nossa vulgar soagem (Echium plantagineum), que tão profícua é a pintar de roxo os prados primaveris.

Presente em quatro ilhas (Tenerife, Grã-Canária, Lanzarote e Fuerteventura), o Echium bonnetii (nas fotos) é o mais disseminado representante dessa estirpe que não quis avantajar-se aos seus antepassados. Nas duas primeiras dessas ilhas ele até convive com o próprio Echium plantagineum; e, se as nossas fotos não fossem de Fuerteventura, um olhar menos atento poderia confundir a planta retratada com a soagem comum. De facto, as flores do E. bonneti, além de terem a corola mais densamente coberta de pêlos, são bastante menores do que as do E. plantagineum; e as folhas basais híspidas e lanceoladas do E. bonneti contrastam vivamente com as do E. plantagineum, que formam rosetas semelhantes às da tanchagem (Plantago major).

Nas condições desérticas de Fuerteventura, nenhuma planta prolifera a ponto de contrariar o castanho dominante com uma paleta alternativa de cores. Acresce que Dezembro, mês em que visitámos a ilha, não é o período de floração mais indicado para o Echium bonneti. Tivemos que nos contentar com dois ou três exemplares refugiados numa berma de estrada onde a humidade acumulada em ligeiras depressões de terreno encorajou uma variedade de plantas a florir precocemente.