"A pátria das camélias"
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No Jornal de Notícias
«Em 1890, o escritor francês Georges de Saint-Victor (em "Souvenirs et Impressions de Voyage") inventou uma das mais belas - senão a mais bela - designações para esta cidade "O Porto é a pátria das camélias". E acrescentava: "Até nos cemitérios as há". A ideia seria, depois, retomada por Alberto Pimentel (1925): "Camélias ou rosas do Japão, o que é certo é que elas fizeram do Porto a sua pátria adoptiva". Poder-se-á dizer coisa mais emocionante sobre algum lugar? Sobretudo sobre um espaço que nos habituámos a olhar sem, muitas vezes, nos apercebermos dos pormenores significativos que definem uma cultura e afirmam uma identidade.
Disse cultura. E que outra palavra poderíamos utilizar englobando o amor, o jeito, a arte, a ciência, o convívio que enraizaram a tradição de cultivar a rosa japónica (conforme os românticos), japoneira (conforme o povo), a camélia (conforme todos nós), tão firmemente enraizada no burgo? Cultura, sim, desde - ao que sabemos - o século XVI, quando as primeiras camélias foram plantadas na Península, nos jardins ainda hoje esplendorosos do Paço de Campo Belo. (Já estou a ouvir alguns "Mas isso é Gaia. Não é Porto". Interessam-me pouco tais autarcias. É o mesmo rio, a mesma terra, o mesmo falar, a mesma gente, a mesma génese, a mesma história. As mesmas camélias).
Cultura, sim. Pois que outra aptidão, outro saber poderiam ter produzido uma colecção de espécimes que o Horto das Virtudes, à volta de 1900, catalogava em cerca de 606 variedades (184 das quais de criação portuguesa)? Cultura e, claro, chão. Chão de solos fundos, antigos, bem molhados e drenados sob céus chuvosos. Chãos musguentos. De húmus fértil. Invernos agrestes, morrinhas trespassantes, nevoeiros pesados, chuvas embirrentas. Tudo junto formando o ambiente perfeito para o crescimento da Alba-plena- (a minha camélia branca), da Reticulata, da Gouveia Pinto, da Saudade Martins Branco (que agora soube ter sido dedicada - honra de uma cidade insubmissa - à memória do estudante João Martins Branco, assassinado pela polícia nos confrontos da véspera de 1 de Maio de 1931), da Aunt Rosalie, da Perfeição de Vilar d'Allen, etc., etc.
Não consigo entender a razão porque, na pátria das camélias, não tem lugar, anualmente, no melhor recinto, um grande festival das camélias. Competente e rodeado de condições logísticas e promocionais de modo a atrair visitantes nacionais, galegos, espanhóis e, por aí fora. Um festival chamando ao burgo os apaixonados europeus das camélias? E não é isso que uma cidade economicamente deprimida exige? Acontecimentos relevantes, que a relancem, prestigiem e transformem em pólo de sedução, entretenimento e requinte, através da projecção do seu património? E mais estamos à espera de quê, para, em comum com a pátria-irmã galega, organizar um festival europeu da camélia, repartido anualmente entre o Porto e uma cidade daquele outro chão das japoneiras?
Estamos à espera de ver camélias transplantadas para o Terreiro do Paço, para depois nos queixarmos do centralismo?
Depois de uns anos de luto, em que a pátria das camélias se esqueceu que o era, graças à iniciativa de uns quantos amantes do "juvenil frescor" das rosas do Japão, de uns esforçados que não perderam o respeito por uma faceta essencial da personalidade portuense, as camélias vão regressar, este fim-de-semana, ao Mercado de Ferreira Borges. Retomando a tradição das exposições dedicadas à mais bela das flores, que pinta, nos invernos tripeiros, a beleza das "suas manchas alvas como a neve e rubras como o sangue" (Armando de Lucena) aí teremos as camélias, durante dois dias.
Faço votos para que a resposta do público - de todos os que ainda não se submeteram à civilização do plástico e à mentalidade do cimento - seja demonstrativa do apego da cidade à flor que, por excelência, a simboliza e torne evidente o absurdo desinteresse pela nossa própria alma, que a não realização destas exposições de camélias tem demonstrado.»