31/07/2024

Época de soldas



É a crise no comércio tradicional que faz com que haja saldos o ano inteiro? Mas também no comércio electrónico, ou até nos supermercados pequenos ou grandes, o fenómeno é idêntico: nunca pagamos as coisas pelo preço tabelado, pois há sempre um desconto a amaciar a compra. A época de saldos caiu em desuso, ou deixou de ter importância por se ter transformado num requisito permanente das trocas comerciais. Nós, os consumidores, fazemos sempre a escolha mais inteligente por termos aproveitado aquela ocasão única, e os comerciantes sabem bem que só ganham em gratificar a nossa ingénua vaidade.

Já a época de soldas tem um calendário mais definido, decorrendo, grosso modo, entre Maio e Julho, com as naturais variações induzidas pelos factores climatéricos. Para começar, as soldas — que é como chamamos às espécies do género Galium — são muitas: mais de cinquenta espécies na Península Ibérica (incluindo ilhas Baleares), umas vinte em Portugal. O que complica a questão é serem muito parecidas umas com as outras: folhas reunidas em verticilos (ou saiotes) regularmente espaçados ao longo das hastes, flores geralmente brancas, pequenas (menos de 5 mm de diâmetro), de quatro pétalas, em panículas densas ou lassas, ou às vezes axilares, agrupadas em pequeno número. Caracteres diferenciadores são quantas folhas há por verticilo (por exemplo, no Galium broterianum, frequente em margens pedregosas de ribeiras, elas são sempre em número de quatro), o aspecto mais ou menos compacto da inflorescência, e a forma ou rugosidade dos frutos (duas espécies com frutos muito distintivos são o G. verrucosum e o G. murale).

Galium rosellum (Boiss.) Boiss. & Reut.


As duas soldas que mostramos hoje, ambas fotografadas num mês de Julho nos cumes da serra Nevada, em Granada, não nos exigiram lupa nem consulta de chaves dicotómicas para as identificarmos com absoluta certeza. A circunstância de as termos encontrado a 2500 ou 3000 metros de altitude já nos restringia as hipóteses, mas em todo o caso o aspecto delas é inequívoco. O Galium rosellum, endémico da serra Nevada, tem flores rosadas, e nisso se distingue de todas os seus congéneres ibéricos (só poderia confundir-se com o G. balearicum, mas esse é exclusivo de Maiorca e tem quatro folhas por nó); além disso, o tom verde-escuro da folhagem é característico. O G. pyrenaicum, por seu turno, apesar de as suas flores brancas não destoarem do que é norma no género, tem hábito rasteiro e distingue-se pelas folhas pontiagudas, que ocultam por completo as hastes e parecem formar cachos. Preferindo sempre altitudes elevadas, esta solda-branca não é exclusiva da serra Nevada, como aliás o próprio epíteto específico dá a entender: vive também nos Pirenéus e na Cordilheira Cantábrica.

Galium pyrenaicum Gouan

26/07/2024

Couve do inferno

Moricandia moricandioides (L.) (Boiss.) Heywood
Reparou nas folhas da planta das fotos? Parecem folhas de couve-galega, embora de margens menos onduladas. As flores, num tom mais ou menos intenso de lilás, têm o formato usual na família Brassicaceae, mas aparecem no topo de uma haste alta que, abanando, se nota muito bem mesmo ao longe (em taludes de estradas, por quem vai a circular de carro, digamos). Esta espécie de Moricandia é perene e um endemismo espanhol, ocorrendo em locais áridos ou semi-áridos do centro e sul de Espanha. Se no inferno servirem sopa, será decerto caldo-verde de folhas de Moricandia.

O género Moricandia tem recebido uma atenção redobrada dos botânicos pela capacidade invulgar de algumas das suas espécies de se adaptarem a habitats em condições extremas. Estudos da Moricandia arvensis, que é anual, revelaram que as folhas destas plantas são capazes de realizar a fotossíntese sem suar de mais, sobrevivendo sob calor tórrido. Com uma floração prolongada e uma coloração vistosa das pétalas (o que tem um custo energético elevado para as plantas), a Moricandia arvensis possui um mecanismo genético de poupança que ajusta a cor das flores às condições atmosféricas do habitat e aos polinizadores mais eficientes em cada estação do ano. Na Primavera, as flores são grandes e de tons intensos, reflectindo os raios ultravioleta, o que atrai bastantes abelhas. No Verão, seco e muito quente, as flores são mais pequenas, de formato mais arredondado e com pétalas esbranquiçadas que absorvem os tais raios e, por isso, conseguem atrair outros polinizadores. É inevitável pensar quantas arrelias e queimaduras de pele nos pouparia um tal botão de ajuste de cor, mudando-nos de brancos para negros, e vice-versa, anualmente.

O nome do género foi proposto em homenagem ao naturalista suíço, e comerciante de relógios, Moise Moricand (1780-1854).

Vale do rio Dúrcal (Granada, Espanha)

16/07/2024

Brancura das neves



O branco mais puro é o da neve, e é o Inverno a estação que melhor combina com a alta montanha. Sorte têm os picos que, de tão elevados, só conhecem a brancura imperecível. Mas a serra Nevada, esse inchaço descomunal no sul da Península, tem aos pés o mar Mediterrâneo; e, apesar dos seus quase 3500 metros de altitude máxima, o manto branco que lhe dá nome não resiste às temperaturas estivais. Os cumes rochosos ficam nus, o verde molhado dos prados acolhe as águas do degelo, por todo o lado assomam plantas que despertam da letargia hibernal. Algumas são brancas, como se a neve, antes de se ausentar, as tivesse incumbido da função branqueadora. É o caso da estrella de las nieves, uma tanchagem endémica da serra Nevada que é característica de solos pedregosos e húmidos acima dos 2300 metros de altitude. Apesar de ter uma floração discreta (como é regra no género a que pertence), as suas rosetas em formato de estrela, densamente revestidas por lanugem branca, têm um efeito ornamental inegável, sobretudo quando se juntam em grupos numerosos. Por saber que a união faz a força (ou, neste caso, a formosura), a estrela-das-neves não se faz rogada em salpicar profusamente os prados e os cumes da serra Nevada. É de inteira justiça que seja reconhecida como o mais genuíno símbolo botânico deste maciço, cumprindo papel análogo ao do edelweiss nos Pirenéus e nos Alpes.

Plantago nivalis (L.) Boiss.


Plantago nivalis é o nome científico da planta nevadense, e é de assinalar que o mesmo epíteto reaparece no bilhete de identidade do edelweiss, cujo nome erudito é Leontopodium nivale. Trata-se apenas de uma coincidência, pois as duas plantas pertencem a famílias botânicas muito díspares, e só têm em comum a cor esbranquiçada e a preferência por altitudes elevadas. Dentro do género Plantago, a estrella de las nieves não destoa do figurino habitual: folhas em roseta achatada, desprovida de caule, do centro da qual emergem várias hastes florais de 2 a 6 cm de altura, cada uma delas rematada por uma única espiga quase esférica, com cerca de 1 cm de diâmetro. As flores hermafroditas, compactamente dispostas, têm pétalas e sépalas pouco vistosas; no auge da floração (que, no caso do P. nivalis, decorre entre Julho e Agosto), é o amarelo das anteras que sobressai do conjunto (veja as fotos nesta página).

02/07/2024

Margarida dos pés curtos

Serra da Boneca (Penafiel, Portugal)
Erguendo-se na margem norte do Douro, a pouco mais de vinte quilómetros do Porto, a serra da Boneca atinge uma altitude máxima de 520 metros, o que representa 500 metros de desnível em relação ao leito do rio. Seria exagerado qualificar a paisagem de vertiginosa; mas, com a descoberta de que os adultos gostam de baloiçar-se sobre pequenas amostras de abismo (tirando copiosas fotos para imortalizar o feito), a serra ganhou popularidade nos últimos anos. Tanta que o afluxo de veículos ao fim-de-semana, entupindo o acesso ao parque eólico, obrigou à retirada do baloiço. Voltou o sossego, e quem gosta simplesmente de passear num lugar bonito, que não exige caminhadas longas nem proezas de escalada, continua a ter bons motivos para visitar a serra. Como seja o de apreciar, entre Março e Abril, a floração da margarida-sulfurosa (Leucanthemopsis flaveola), que tem nesta modesta cumeada a sua maior população portuguesa (ou mesmo mundial).

Serra Nevada (Granada, Espanha)
Deslocando-nos 620 quilómetros para sudeste estamos na serra Nevada, que multiplica por sete a altitude da serra da Boneca e cujas paisagens suscitam todos os adjectivos denotadores de grandiosidade (vertiginosa, esmagadora, imponente, abissal, etc.) que seria descabido aplicar à nossa serra-de-trazer-por-casa. Tal como na serra portuguesa, há na serra andaluza uma margarida-sulfurosa; e, se em qualidade (ou beleza) não há defeito a apontar-lhe, já em quantidade ela fica muito aquém do nosso produto nacional. Na verdade, e ainda que as diferenças sejam subtis, essa margarida é de outra espécie, de seu nome Leucanthemopsis pectinata. E há uma boa razão para na serra Nevada a margarida em questão (seja ela de que espécie for) ser menos abundante do que na Boneca: a serra espanhola detém uma diversidade vegetal sem paralelo em toda a Península Ibérica; e, com centenas de espécies competindo pelo mesmo espaço, o protagonismo de cada uma fica inevitavelmente diminuído.

Leucanthemopsis pectinata (L.) G. López & C. E. Jarvis


Sendo ambos endemismos ibéricos, o facto de terem distribuições disjuntas impossibilita-nos de alguma vez vermos lado a lado exemplares vivos destes dois Leucanthemopsis: o L. flaveola mora no noroeste peninsular, enquanto que o L. pectinata é exclusivo da serra Nevada, onde ocorre entre os 2000 e os 3200 metros de altitude. Assim, ainda que o segundo seja mais pequeno do que o primeiro (capítulos menores, hastes consideravelmente mais curtas, folhagem mais miúda), isso de pouco nos serve quando comparamos fotos de um e de outro. Mais útil é saber que as folhas do L. pectinata apresentam uma cor glauca e são revestidas por pêlos ásperos; as folhas do L. flaveola, por contraste, são verdes e podem ser glabras ou ter uma penugem macia. Além disso, as flores do L. pectinata ficam avermelhadas quando secam, o que não acontece às do L. flaveola.

Leucanthemopsis pectinata (L.) G. López & C. E. Jarvis
Joan Pedrol i Solanes, revisor do género para a Flora Iberica, reconhece que as linhas de separação entre as diversas espécies de Leucanthemopsis são amiúde difusas, por inexistência de caracteres diferenciadores de valor taxonómico claro e pela grande variabilidade de certas populações. Por esse motivo, de início foi tudo metido no mesmo saco, ou quase: em meados do século XIX, o botânico alemão Heinrich Moritz Willkomm considerou que haveria apenas três espécies do género (então chamado Pyrethrum) em toda a Península. Na Flora Iberica são agora reconhecidas nove, mas apenas duas em Portugal. Para nosso sossego, a distinção entre elas é trivial: uma (L. pulverulenta) tem flores brancas, a outra (L. flaveola) tem-nas de um amarelo pálido. É só quando cruzamos a fronteira que o assunto se complica.