02/07/2024

Margarida dos pés curtos

Serra da Boneca (Penafiel, Portugal)
Erguendo-se na margem norte do Douro, a pouco mais de vinte quilómetros do Porto, a serra da Boneca atinge uma altitude máxima de 520 metros, o que representa 500 metros de desnível em relação ao leito do rio. Seria exagerado qualificar a paisagem de vertiginosa; mas, com a descoberta de que os adultos gostam de baloiçar-se sobre pequenas amostras de abismo (tirando copiosas fotos para imortalizar o feito), a serra ganhou popularidade nos últimos anos. Tanta que o afluxo de veículos ao fim-de-semana, entupindo o acesso ao parque eólico, obrigou à retirada do baloiço. Voltou o sossego, e quem gosta simplesmente de passear num lugar bonito, que não exige caminhadas longas nem proezas de escalada, continua a ter bons motivos para visitar a serra. Como seja o de apreciar, entre Março e Abril, a floração da margarida-sulfurosa (Leucanthemopsis flaveola), que tem nesta modesta cumeada a sua maior população portuguesa (ou mesmo mundial).

Serra Nevada (Granada, Espanha)
Deslocando-nos 620 quilómetros para sudeste estamos na serra Nevada, que multiplica por sete a altitude da serra da Boneca e cujas paisagens suscitam todos os adjectivos denotadores de grandiosidade (vertiginosa, esmagadora, imponente, abissal, etc.) que seria descabido aplicar à nossa serra-de-trazer-por-casa. Tal como na serra portuguesa, há na serra andaluza uma margarida-sulfurosa; e, se em qualidade (ou beleza) não há defeito a apontar-lhe, já em quantidade ela fica muito aquém do nosso produto nacional. Na verdade, e ainda que as diferenças sejam subtis, essa margarida é de outra espécie, de seu nome Leucanthemopsis pectinata. E há uma boa razão para na serra Nevada a margarida em questão (seja ela de que espécie for) ser menos abundante do que na Boneca: a serra espanhola detém uma diversidade vegetal sem paralelo em toda a Península Ibérica; e, com centenas de espécies competindo pelo mesmo espaço, o protagonismo de cada uma fica inevitavelmente diminuído.

Leucanthemopsis pectinata (L.) G. López & C. E. Jarvis


Sendo ambos endemismos ibéricos, o facto de terem distribuições disjuntas impossibilita-nos de alguma vez vermos lado a lado exemplares vivos destes dois Leucanthemopsis: o L. flaveola mora no noroeste peninsular, enquanto que o L. pectinata é exclusivo da serra Nevada, onde ocorre entre os 2000 e os 3200 metros de altitude. Assim, ainda que o segundo seja mais pequeno do que o primeiro (capítulos menores, hastes consideravelmente mais curtas, folhagem mais miúda), isso de pouco nos serve quando comparamos fotos de um e de outro. Mais útil é saber que as folhas do L. pectinata apresentam uma cor glauca e são revestidas por pêlos ásperos; as folhas do L. flaveola, por contraste, são verdes e podem ser glabras ou ter uma penugem macia. Além disso, as flores do L. pectinata ficam avermelhadas quando secam, o que não acontece às do L. flaveola.

Leucanthemopsis pectinata (L.) G. López & C. E. Jarvis
Joan Pedrol i Solanes, revisor do género para a Flora Iberica, reconhece que as linhas de separação entre as diversas espécies de Leucanthemopsis são amiúde difusas, por inexistência de caracteres diferenciadores de valor taxonómico claro e pela grande variabilidade de certas populações. Por esse motivo, de início foi tudo metido no mesmo saco, ou quase: em meados do século XIX, o botânico alemão Heinrich Moritz Willkomm considerou que haveria apenas três espécies do género (então chamado Pyrethrum) em toda a Península. Na Flora Iberica são agora reconhecidas nove, mas apenas duas em Portugal. Para nosso sossego, a distinção entre elas é trivial: uma (L. pulverulenta) tem flores brancas, a outra (L. flaveola) tem-nas de um amarelo pálido. É só quando cruzamos a fronteira que o assunto se complica.

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