Exorta-nos o Guia do Visitante a Dartmoor (jornal em formato A3, com 22 páginas a cores, distribuído gratuitamente nos postos turísticos) a largar o carro, pois, diz-nos ele, o parque nacional está bem servido de transportes públicos e a sua beleza desfruta-se melhor a pé. Quem não conduz, como eu, não tem outro remédio senão acatar tal conselho; mas deve preparar-se para longas caminhadas (a parte boa) e ainda mais longas esperas (a parte má).
Os autocarros no sudoeste de Inglaterra, em Devon e na Cornualha, são uma delícia e um susto. Delícia pelas paisagens que desvendam: rios, charnecas, bosques de carvalhos e áceres roçando-se nas vidraças, casas com telhados de colmo saidinhas de alguma velha ilustração infantil, o vislumbre inesperado do mar ao desfazer-se uma curva. Susto porque as estradas são estreitas e cheias de ziguezagues, e muitas vezes não têm largura para se cruzarem dois veículos. Um dos motoristas que me transportou, muito jovial na sua condução trepidante, ria-se de cada vez que algum carro guinava para a valeta à sua aproximação: têm um medo de mim que se pelam, comentava para os passageiros entre gargalhadas.
Moretonhampstead
Dartmoor fica no condado de Devon, e tem o formato aproximado de um quadrado com 31 quilómetros de lado, com as urbes de Exeter e Plymouth nas proximidades dos seus vértices nordeste e sudoeste. É em Exeter, cidade nas margens do rio Exe com uma antiquíssima catedral e uma atraente vida ribeirinha (lojas, jardins, esplanadas, casas), que confluem os transportes públicos que servem tanto o interior rural do condado como o cordão de povoações costeiras que formam a «Riviera inglesa». Uma combinação de dois autocarros, de Exeter à pequena vila de Moretonhampstead, e desta à ainda mais pequena Postbridge, deixa-nos bem no centro de Dartmoor. O óbice é que o segundo destes autocarros só presta serviço duas vezes por dia em cada sentido, e apenas de segunda a sexta: é preciso madrugar e, depois, aguardar pelo fim da tarde para o regresso.
É verdade que um dia só não dá para quase nada, mas as dez horas que intermedeiam entre um transporte e outro são uma dose excessiva de natureza para quem, sedentário incorrígivel, não veio preparado para acampar. A solução foi chamar um táxi da lojinha que combina mercearia com posto de correios: mesmo que atenuada, a civilização nunca está longe.
Dartmoor: pastagem com tojo; Bellever Tor
São as ondulantes charnecas de tojo (Ulex) e urze (Erica e Calluna), numa sucessão de outeiros a perder de vista, que fazem a paisagem de Dartmoor. Moor ou moorland são aliás as designações para os lugares onde predomina este tipo de vegetação rasteira - que encontramos também, com certas diferenças, nas serras de Portugal. Coroando muitos dos cerros vêem-se formações graníticas estratificadas, a que é costume chamar tors. Entre as singularidades de Dartmoor avultam ainda as turfeiras, terrenos baixos com um solo quase sempre encharcado, por vezes perigosamente pantanoso, constituído por matéria vegetal fossilizada. E, claro, há o tempo: imprevisível é como o descrevem, querendo com isso dizer que, mesmo no pico do Verão, em Agosto, é avisado contarmos com dias encobertos e chuvosos. Quando visitei Dartmoor não chovia, mas a água tombara copiosamente nos dias anteriores; o único calçado realmente adequado ao terreno teriam sido galochas, nunca os sapatos leves que comigo trazia. Foi com estranheza que vacas e ovelhas me viram saltitar desgraciosamente sobre poças e charcos, buscando - e muitas vezes falhando - as ilhotas de terra firme no meio do lamaçal.
Dartmoor - East Dart River
A inépcia na decifração do mapa do percurso foi o que me levou até ao rio. Tê-lo-ia visto em qualquer caso, pois ele cruza a estrada junto a Postbridge, mas foi preciso perder-me a sério, treslendo todas as indicações, para chegar ao fundo deste vale onde o East Dart vai preguiçando rodeado por salgueiros e pinheiros-silvestres. O estado lastimoso dos sapatos foi um preço de pechincha por esta paisagem mágica, a que a névoa acrescentava um toque de sonho. Nada de postiço maculava o horizonte: nem casas, nem estradas, nem postes eléctricos, nem ventoinhas; só rio e arvoredo aninhados entre colinas.
É por aqui perto que nasce o rio Dart, de que Dartmoor tomou o nome. São dois cursos de água - o East Dart e o West Dart - que, depois de uma dezena de quilómetros a deslizar cada um no seu leito, juntam os trapinhos em Dartmeet (óbvio, não é?) para formarem um rio só. Daí até ao Atlântico o rio unificado tem ainda uma trintena de quilómetros a percorrer. E onde fica a foz do rio Dart? Em Dartmouth, pois então. A lógica destes ingleses é irrepreensível.